No pânico que se seguiu, Gustavo encontrou um diário que eu "acidentalmente" deixei cair. Era o diário da irmã falecida dele, contendo a verdade que provava que as mentiras de Kiara haviam destruído toda a minha família.
Agora, consumido pela culpa, ele está implorando por uma segunda chance. Ele acha que pode comprar meu perdão. Ele não faz ideia de que estou prestes a tirar tudo dele, assim como ele fez comigo.
Capítulo 1
Ponto de Vista: Juliana Campos
Meu ex-marido, Gustavo Medeiros, o homem que me trancou e roubou meu filho, estava do outro lado do ginásio da escola. Ele reconheceu meu rosto, mas não a criança que segurava minha mão. Nossa filha. Aquela que ele nunca soube que existia.
Um grito estridente rasgou a assembleia barulhenta. Era Arthur, nosso filho, o rosto contorcido em uma carranca furiosa. Ele tinha seis anos, assim como Íris. Ele a empurrou. Com força.
Íris tropeçou, seu corpo pequeno batendo no piso de madeira polida com um baque surdo. O vestido fino que ela usava, remendado de tantas lavagens, não oferecia proteção alguma. Uma onda de suspiros percorreu os pais reunidos para a feira de artes da escola.
"Sua ladra!" Arthur gritou, apontando o dedo para Íris. Sua voz era aguda, ecoando a autoridade retumbante de seu pai, mesmo naquela idade. "Você copiou meu desenho!"
Íris, com lágrimas brotando em seus grandes olhos escuros - os olhos de Gustavo -, agarrou um desenho de um pássaro azul feito com giz de cera. Era idêntico ao que Arthur segurava, só que o dela parecia possuir um tom mais profundo e rico.
Meu coração martelava contra minhas costelas, um ritmo familiar de medo e fúria. Corri para frente, meus tênis gastos rangendo no chão. Ajoelhei-me ao lado de Íris, puxando-a para perto, procurando por arranhões. Sua respiração estava superficial, um leve chiado escapando de seus lábios. A condição cardíaca. Sempre a condição cardíaca.
"Arthur", uma voz de mulher, afiada e açucarada, cortou o ar. Kiara. Claro. Ela estava sempre lá, pairando como uma sombra, reforçando a mentira. Ela alisou o uniforme perfeitamente passado de Arthur, lançando um olhar desdenhoso em minha direção. "Um Medeiros nunca se rebaixa a esse tipo de baixaria."
Gustavo, imponente sobre todos, finalmente se moveu. Seus olhos, do mesmo azul penetrante dos de Arthur, fixaram-se nos meus. Ele parecia mais velho, mais afiado, mais formidável. Seis anos. Seis anos desde que ele destruiu meu mundo. Ele se transformara no impiedoso magnata da Faria Lima que eu sempre soube que ele poderia ser, mas o homem diante de mim era um estranho. Um estranho monstruoso.
Eu não sentia nada além de um vazio frio e calculista. A dor era agora uma pontada surda, enterrada sob camadas de sobrevivência. Ele era apenas mais um obstáculo.
"Juliana", sua voz era um murmúrio grave, tingido de uma surpresa que ele não conseguia esconder completamente. Era uma calma ensaiada, do tipo que ele usava para pacificar investidores.
Eu não respondi. Apenas ajudei Íris a se levantar, limpando a poeira de seu vestido. Ela se apoiou em mim, sua mãozinha segurando a minha com força.
"Arthur, peça desculpas", ordenou Gustavo, seu olhar alternando entre minha filha e eu. Havia um brilho de algo indecifrável em seus olhos enquanto eles se demoravam no rosto de Íris. Um fantasma de familiaridade, talvez.
Arthur apenas mostrou a língua para Íris e se escondeu atrás da perna de Kiara, coberta de seda. Kiara me ofereceu um sorriso apertado e piedoso. "Algumas crianças são simplesmente... naturalmente inclinadas a problemas, não é, Juliana?"
Eu me levantei, meu olhar firme. "Íris não é um problema, Kiara. Arthur apenas carece de disciplina." Minha voz era plana, desprovida de emoção. "E de um senso de originalidade, aparentemente."
Gustavo se aproximou, sua presença avassaladora. "O que você quer, Juliana?", ele perguntou, indo direto ao ponto, como sempre fazia nos negócios.
"O que eu quero", comecei, minha voz firme apesar do tremor em minhas mãos, "é que minha filha tenha as mesmas oportunidades que seu filho. Uma educação adequada. Uma vida estável." Meus olhos encontraram os dele. "E para isso, preciso de recursos."
Ele ergueu uma sobrancelha, um leve sorriso zombeteiro brincando em seus lábios. "Você está insinuando que eu te devo alguma coisa?"
"Estou afirmando um fato", corrigi, meu tom inabalável. "Você criou esta situação. Você tirou tudo de mim. Agora, você vai prover."
Ele fez uma pausa, estudando Íris. Seu olhar vagou para o cabelo dela, do mesmo tom ruivo profundo que o meu, depois para a curva de sua bochecha, antes de voltar para mim. Seus olhos se estreitaram. Uma leve ruga vincou sua testa.
"Ela... ela me parece familiar", ele murmurou, quase para si mesmo. Ele deu um passo involuntário em direção a Íris, sua mão parcialmente estendida.
Meu corpo enrijeceu, um escudo instintivo. Puxei Íris sutilmente para trás da minha perna, criando uma barreira. "Não toque nela", avisei, minha voz um sussurro baixo e feroz.
"Por quê?", ele pressionou, seu olhar penetrante. "Ela é... minha?"
A pergunta pairou no ar, uma acusação carregada, uma verdade perigosa. Eu ri, um som áspero e frágil que atraiu olhares dos pais próximos. "Sua? Depois do que você fez comigo? Depois de garantir que eu fosse trancada, grávida e sozinha?" Minha voz se elevou, cada palavra um dardo venenoso. "Você acha que eu daria à luz voluntariamente a outro de seus filhos?"
Ele recuou, a acusação atingindo o alvo. "Você me odiava", ele afirmou, uma estranha mistura de reconhecimento e dor em seus olhos. "Você me odiava o suficiente para lutar para sair daquela... clínica."
"Ódio é exaustivo demais, Gustavo", menti, minha voz caindo para um suspiro cansado. "Estou apenas cansada. E quero o melhor para minha filha." Enfiei a mão na minha bolsa de lona gasta, com a intenção de pegar um lenço para Íris. Meus dedos roçaram um pequeno diário encadernado em couro. O diário. O diário da irmã dele.
Eu o deixei cair "acidentalmente". Ele escorregou da minha mão, caindo aberto no chão entre seus sapatos de couro polido. As páginas se agitaram, revelando a caligrafia elegante em seu interior.
Os olhos de Gustavo, atraídos pelo movimento, fixaram-se imediatamente no diário. Reconhecimento, depois um flash de emoção intensa - luto, talvez, ou choque - cruzou seu rosto. Era um couro velho e desbotado, com uma caligrafia elegante: Para meu querido irmãozinho, Gustavo.
Ele se abaixou, seus dedos pairando sobre as páginas delicadas. Era isso. O primeiro anzol.
Aproveitei o momento. "Vamos, Íris. Vamos embora." Eu a peguei no colo, ignorando Gustavo completamente. Movemo-nos rapidamente pela multidão crescente, em direção à saída.
"Juliana!" Sua voz cortou o clamor, afiada e insistente. Não era uma pergunta; era uma ordem. Ele estava me seguindo.
Eu não olhei para trás. Podia ouvir seus passos rápidos atrás de nós, mas sabia que ele não me alcançaria. Ainda não. Eu conhecia Gustavo. Ele era um tubarão. Ele farejaria a isca, mas levaria seu tempo circulando antes de morder.
Saímos pela porta, para o ar fresco do outono. Arrisquei um olhar por cima do ombro. Ele estava parado nos degraus, o diário apertado na mão, seus olhos varrendo a distância onde eu havia desaparecido. Ele parecia perdido, um homem poderoso momentaneamente desfeito por um fragmento do passado. Um sorriso triunfante, fugaz e sombrio, tocou meus lábios.
Íris se mexeu em meus braços. "Mamãe, por que você está sorrindo?", ela perguntou, sua voz pequena e inocente. "E por que você está tão... brilhante?"
Olhei para ela, depois vi meu reflexo na vitrine de uma loja. Meus olhos estavam ardendo, minhas bochechas coradas, meu corpo elétrico com adrenalina. Eu parecia quase saudável, quase vibrante. Era um contraste gritante com a mulher de olhos fundos que eu costumava ver. A mulher que sobrevivia de pão amanhecido e momentos roubados de descanso.
"Não é nada, querida", murmurei, puxando-a para mais perto. Meu sorriso desapareceu, substituído pela máscara familiar de cansaço. "Apenas... um truque da luz."
"Quem era aquele homem, mamãe?", Íris perguntou, sua mãozinha traçando o contorno da minha mandíbula. "Aquele que se parecia com o Arthur?"
Minha respiração falhou. Ela tinha cinco anos, mas era afiada como uma navalha. Sempre fora. "Ele era... um homem de muito tempo atrás", eu disse, escolhendo minhas palavras com cuidado. "Ele fez muitas escolhas ruins."
"Mas ele se parecia com o Arthur. E ele se parecia comigo também, um pouco", ela insistiu, seu olhar pensativo. Íris herdou os traços marcantes de Gustavo, suavizados pelos meus. Era uma cruel ironia do destino, um lembrete constante do passado.
"Ele não é nada para nós, Íris", afirmei com firmeza, embora as palavras tivessem gosto de cinzas. "Ele é apenas... uma ponte que precisamos atravessar para chegar onde precisamos estar."
Andamos pelo que pareceram quilômetros, o peso de Íris em meus braços ficando mais pesado a cada passo. Minhas velhas lesões, aquelas que sofri durante minha fuga, latejavam em meu quadril e ombro. As cicatrizes sob minhas roupas pareciam marcas de fogo. As solas finas dos meus sapatos não ofereciam conforto contra o pavimento duro. Minhas parcas economias estavam diminuindo, e uma nova consulta médica para o coração de Íris se aproximava.
Quando eu estava prestes a virar a esquina para nossa rua familiar e decadente, um carro preto elegante, caro demais para este bairro, parou ao meu lado. Meu coração saltou para a garganta.
A janela escura desceu, revelando Gustavo Medeiros. Sua expressão era uma mistura de preocupação e algo totalmente diferente - um desespero cru e frenético que eu não via desde... desde antes de tudo começar. Seus olhos, naquele momento, continham um brilho do homem que eu um dia amei.
"Juliana", ele disse, sua voz mais suave agora, quase suplicante. "Deixe-me ajudar você. Isso não é... não é como você deveria estar vivendo."
Instintivamente, apertei meu aperto em Íris. Meu corpo recuou, um instinto primitivo de proteger minha filha da fonte de toda a minha dor. "Eu não preciso da sua ajuda", cuspi, começando a andar mais rápido.
Ele saiu do carro em um instante, bloqueando meu caminho. "Juliana, por favor." Ele estendeu a mão, pairando perto da cabeça de Íris.
Íris, assustada com a parada súbita e o homem desconhecido, choramingou, enterrando o rosto mais fundo em meu ombro.
"Não faça uma cena", avisei, minha voz baixa e perigosa. Tentei passar por ele, mas ele foi surpreendentemente ágil, parando na minha frente novamente.
"Eu só quero conversar", ele insistiu. "E... eu quero vê-la." Seus olhos estavam fixos em Íris, uma estranha intensidade em suas profundezas.
Naquele momento, Íris, sentindo seu olhar, levantou a cabeça. Seus olhos grandes e curiosos encontraram os dele. Um momento de silêncio se estendeu entre eles, um reconhecimento mudo passando por seus traços compartilhados. Então, sua vozinha, clara como um sino, cortou a tensão.
"Papai?"
Gustavo congelou. Seu rosto ficou pálido, sua mandíbula frouxa. Sua respiração falhou, um tremor visível percorrendo seu corpo poderoso. Ele parecia ter sido atingido por um raio.
Minha fachada cuidadosamente construída ameaçou rachar. Eu não esperei. Passei por ele, a adrenalina correndo em minhas veias, e quase corri o resto do caminho para casa.
Ele seguiu, é claro. "Juliana, espere! O que ela acabou de dizer?" Sua voz estava rouca de choque.
Meu pequeno e dilapidado prédio de apartamentos, com sua pintura descascada e caixa de correio quebrada, parecia zombar de sua presença. Ele ficou no pavimento rachado, seu terno caro parecendo totalmente fora de lugar. Seus olhos percorreram as janelas sujas, o lixo transbordando. Nojo, depois incredulidade, nublaram suas feições.
"Você mora aqui?", ele perguntou, sua voz mal um sussurro, como se as próprias palavras estivessem contaminadas. "Juliana, o que aconteceu com você?"
O que aconteceu comigo? Eu quase ri. Você aconteceu, Gustavo. Você, e a Kiara, e seu senso distorcido de justiça. Lembrei-me da luxuosa casa que um dia chamei de lar, do apartamento na USP transbordando de livros e luz, da vida confortável que meus pais construíram para nós. Meu pai, Dr. Hélio Matos, um respeitado professor de história, um homem de integridade. Minha mãe, elegante e gentil. Tudo se foi. Destruído por sua ambição, por suas mentiras, por sua sede de vingança.
Lembrei-me do dia em que o escolhi, um estudante brilhante, mas rude, em vez da vida confortável e acadêmica em que nasci. Lembrei-me de seus olhos famintos, sua inteligência feroz, suas promessas de um futuro juntos. Deus, eu fui uma tola.
Meus pensamentos foram abruptamente interrompidos pelo toque insistente do telefone de Gustavo. Ele o pegou, seus olhos ainda arregalados de choque enquanto olhava para o meu prédio.
"Gustavo Medeiros", ele atendeu, sua voz recuperando uma aparência de controle, embora ainda estivesse tensa. "Sim, Kiara. O que foi?"
Kiara. O nome era uma cicatriz recente, latejando com dor renovada. Kiara Lacerda. A víbora. A arquiteta de tanto do meu sofrimento. Ela sempre foi a manipuladora, puxando as cordas de Gustavo, transformando suas inseguranças em armas. Uma aranha venenosa, tecendo teias de engano para sempre.
Esta era a minha chance. Deslizei pela porta destrancada do prédio, meu coração batendo um ritmo frenético contra minhas costelas. Ouvi a voz de Gustavo, abafada agora, enquanto ele discutia com Kiara. Não esperei para ouvir mais. Subi as escadas rangentes, minhas velhas lesões gritando em protesto, mas eu as ignorei. Cheguei ao meu apartamento, lutei com a chave e bati a porta, encostando-me nela, ofegante.
Eu escutei. Passos na escada, hesitantes, depois recuando. Ele se foi. Ele voltou para Kiara. Para sua outra vida.
Permiti-me um momento de satisfação perversa. Ele estava abalado. Ele estava confuso. Ele tinha o diário. E Kiara, sua cúmplice leal, já estava na defensiva. Meu plano, seis anos em construção, estava finalmente em movimento.
Ele seria consumido pela dúvida, por sua própria paranoia fabricada. Essa era sua fraqueza. Sua incapacidade de confiar verdadeiramente, sua necessidade de controlar. Ele analisaria cada palavra naquele diário, cada memória. E, ao fazer isso, ele se desvendaria.
Isso era apenas o começo. A primeira peça do dominó.