Me espreguicei com esforço e me sentei na beirada da cama por um segundo, tentei respirar fundo como se isso fosse organizar meus pensamentos, mas não funcionou.
Me levantei devagar, fazendo o mínimo de barulho possível para não acordar Noah no quarto ao lado e a última coisa que ele precisava, era ver minha cara de derrota logo pela manhã.
Na cozinha, preparei o café quase no automático. A cafeteira chiava e soltava aquele aroma que, em outros tempos, me trazia conforto, hoje, só me lembra das contas.
O envelope do banco ainda estava ali, sobre a bancada, como se me observasse. Me sentei à mesa com a caneca quente nas mãos, os olhos fixos naquela carta dobrada. Eu já sabia o que dizia, mas mesmo assim, abri mais uma vez, como se torturar minha esperança fosse um hábito matinal.
Prezada senhora Bonnie Dawson, informamos que o processo de execução hipotecária referente à propriedade, será iniciado em 30 dias, caso não haja regularização da dívida.
Casa e cafeteria, as duas coisas que me restaram dos meus pais. Trinta dias. Era tudo o que eu tinha.
Fechei os olhos e tentei manter a calma, meus pais não tinham deixado herança, fortuna ou garantias. Tinham me deixado esse prédio de dois andares, a cafeteria embaixo, lar em cima e um irmão de oito anos que ainda sonhava em pintar a fachada de amarelo com flores vermelhas na porta.
Trinta dias.
Passei as mãos no rosto, afastando o cansaço, Noah ainda dormia no quarto ao lado, respirei fundo, me obrigando a parecer forte quando abrisse a porta do quarto dele.
- Noah? Hora de acordar, amor - chamei com suavidade.
Ele se mexeu devagar, enfiando o rosto no travesseiro antes de se levantar com um bocejo enorme.
- Já? Mas eu estava sonhando que na cafeteria tinha um dragão! - murmurou, os cabelos bagunçados e os olhos ainda pesados de sono.
- Que bom! Talvez o dragão ajude com os boletos - respondi baixinho, mais para mim mesma.
Dei o café da manhã a ele, ajudei com o uniforme, penteei seu cabelo rebelde e conferi o lanche na mochila.
- Pronto, guerreiro? - perguntei, entregando a mochila nas costas dele.
- Pronto! Mas hoje você me leva com a joaninha, né?
- Claro. A joaninha sempre cumpre sua missão - forcei um sorriso.
Descemos juntos os fundos da cafeteria, e ele correu até o fusquinha vermelho estacionado no beco lateral. O carro tossia antes mesmo de ligar, como um velho ranzinza, mas ainda era nosso único meio de transporte.
- Vai, mana, acelera! - Noah gritou, animado, assim que entrou.
- Isso aqui não é uma Ferrari, pequeno - retruquei, dando partida e torcendo para o motor colaborar.
Pegamos a rua principal com o trânsito começando a esquentar. Noah cantava baixinho no banco de trás, e eu olhava de um lado para o outro, tentando prever os movimentos malucos dos motoristas ao redor.
Faltava apenas uma quadra para chegar à escola, quando meu telefone vibrou no painel. Olhei por um segundo e era do Banco Central, o meu coração acelerou, a respiração ficou curta. Seria um retorno? Uma chance?
E foi nesse segundo, um único segundo que quando voltei os olhos para a frente, o carro já estava perto demais.
- Merda! - gritei, pisando no freio.
Mas era tarde.
O som do impacto me fez gelar. A frente da joaninha encontrou com a traseira impecável de um SUV preto, brilhante, que parecia recém-saído de um comercial de TV.
Noah soltou um gritinho de susto, e eu instintivamente estiquei o braço à frente dele, mesmo com o cinto preso.
- Você tá bem?! - virei para ele, o coração martelando no peito.
- Tô bem! - ele respondeu, assustado, mas ileso.
Saí do carro correndo, o coração aos pulos, dei a volta, engolindo o pânico, e encarei o estrago. A joaninha agora tinha mais personalidade do que nunca, pena que isso significava um prejuízo que eu jamais poderia pagar, e então, com o estômago revirando, levantei os olhos.
A porta do SUV se abriu devagar, como se até isso tivesse sido ensaiado, o homem que saiu dali parecia esculpido por deuses, alto, ombros largos, terno impecável, cabelo penteado para trás, e uma expressão de puro desgosto.
Ele passou as mãos pelo rosto, como quem não acredita no que acabou de acontecer.
- Mas é claro... - murmurou para si mesmo, fechando a porta com firmeza. - Como se meu dia já não tivesse começado uma merda.
- Moço... eu sinto muito! - me adiantei, encolhendo os ombros, o rosto pegando fogo. - Eu... eu tava levando meu irmão para a escola e... foi só um segundo. Eu vou pagar! Nem que leve a vida inteira, mas eu vou pagar!
Ele virou o rosto lentamente na minha direção, os olhos dele de um azul quase cortante pousaram em mim com intensidade, mas nada disse e o meu corpo todo se arrepiou com aquilo. - Eu juro que não costumo dirigir distraída - continuei, nervosa. - Só... só me dá um tempinho. Não tenho como pagar agora, mas...
- Pare. - Ele levantou a mão. A voz era baixa, autoritária.
Engoli em seco.
- Só me dá os seus dados que o meu advogado entra em contato - completou ele, tirando o celular do bolso com impaciência.
Voltei para o carro correndo, peguei minha bolsa no banco do carona e peguei um papel e caneta que sempre carregava por precaução e no meio da tremedeira anotei tudo o que precisava e voltei até o homem e entreguei o papel.
Ele pegou o papel sem nem sequer olhar muito, apenas assentiu e voltou para dentro do carro.
Eu voltei para a joaninha, entrei no banco do motorista com as mãos ainda tremendo e olhei para Noah.
- Tá tudo bem, amor? - perguntei, tentando recuperar o fôlego.
- Tô bem. Só... assustado. Você vai ter que pagar o carro dele?
- É... mas a gente dá um jeito. - Sempre dá. Assenti devagar, engolindo seco.
Dei partida novamente. A joaninha, milagrosamente, ainda funcionava. Dirigi até a escola com cautela redobrada, deixei Noah no portão e só voltei a respirar quando ele sumiu pelos corredores.
E eu? Eu ainda não sabia o nome daquele homem.
Mas aquele carro, o acidente... ia mudar tudo em minha vida.