Acordar às cinco da manhã era rotina para Lívia Marine, mesmo nos dias em que o frio parecia querer congelar os ossos. O bairro onde morava, no extremo sul da cidade, ainda dormia quando ela puxava o cobertor fino e se arrastava até o banheiro compartilhado com mais três casas. O espelho rachado sobre a pia era sua primeira plateia do dia. Nele, a menina de doze anos tentava imaginar-se diferente: alta, com postura de princesa e um olhar que hipnotizava multidões. Mas naquele reflexo, via apenas os cabelos despenteados, a pele marcada por picadas de mosquito e um uniforme escolar puído.
Lívia era filha única de Solange Marine, uma auxiliar de cozinha que sustentava a casa sozinha desde que o pai da menina sumiu no mundo, quando ela ainda tinha dois anos. A mãe, apesar da vida dura, fazia de tudo para que a filha não sentisse o peso da pobreza. Era guerreira, dessas que sorriem até com o coração em cacos. Tinha orgulho de Lívia, que era dedicada, gentil e sonhadora – muito sonhadora.
Todas as manhãs, depois de preparar um café preto e dividir um pão amanhecido entre as duas, Solange dizia a mesma frase:
- Filha, nunca deixa ninguém apagar tua luz. Mesmo quando o mundo for escuro, tu tem que brilhar por dentro.
Essas palavras se tornaram um mantra para Lívia. Ela as repetia mentalmente enquanto caminhava até o ponto de ônibus, desviando dos buracos na calçada e das poças de água da última chuva. O trajeto até a escola pública demorava quase uma hora, e era nesse tempo que ela sonhava acordada: pensava em vestidos longos, desfiles em Paris, capas de revista e flashes de fotógrafos a chamando pelo nome.
Mas a realidade a puxava de volta assim que entrava pelo portão da escola. Alguns colegas zombavam de suas roupas simples, de sua mochila remendada e, principalmente, da sua mania de falar sobre moda. Bianca Ferraz, uma garota de olhos claros e pais ricos, era quem mais gostava de implicar:
- Olha lá vem a Miss Favela! Aposto que a passarela dela é a calçada quebrada da rua de casa!
Lívia engolia seco. Não era do tipo que brigava ou respondia. Preferia ignorar, focar nas aulas e esperar o momento em que poderia voltar para casa e mergulhar nas revistas de moda antigas que a vizinha lhe dava. Dona Zefa, uma costureira aposentada que morava ao lado, via na menina algo especial. Sempre dizia:
- Essa tua postura, Lívia... menina, tu nasceu pra desfilar!
Nos fins de semana, Lívia ajudava Dona Zefa a costurar. Aprendeu a mexer com tecidos, a entender caimento, a copiar modelos com os olhos. Juntas, improvisaram uma "passarela" no quintal de terra batida. Era ali que Lívia treinava seus passos com sapatos emprestados e roupas feitas de retalhos.
Apesar das dificuldades, havia uma luz nos olhos dela. Uma força que a fazia seguir, mesmo quando tudo ao redor parecia querer pará-la. Cada risada debochada, cada olhar de desprezo, cada vez que ouvia "isso não é pra você", servia apenas para alimentar ainda mais sua vontade de provar o contrário.
Na escola, apesar dos obstáculos, Lívia se destacava em português e artes. Amava escrever redações e criar histórias que sempre envolviam personagens que se transformavam, que superavam dificuldades. Eram espelhos de si mesma, de seus desejos secretos.
Num desses dias, durante uma apresentação de trabalhos, Lívia apresentou uma colagem feita com imagens de modelos e recortes de tecidos. Falou sobre estilo, expressão e beleza com tanto entusiasmo que a professora ficou impressionada. Depois da aula, a chamou para conversar.
- Lívia, você já pensou em seguir carreira na moda? - perguntou a professora Camila.
- Todo dia, professora. Mas... eu não sei se isso é pra mim. Eu não tenho as coisas que essas meninas têm...
A professora sorriu, estendendo um cartão.
- Aqui tem um centro cultural que está com um curso gratuito de passarela e expressão corporal. É longe, mas talvez valha a pena tentar.
Lívia levou o papel como se fosse um bilhete dourado para outro mundo. Quando mostrou à mãe, Solange hesitou:
- É duas conduções pra ir, mais duas pra voltar... e se for perigoso?
Mas vendo os olhos da filha brilharem, cedeu:
- Se esse for o teu caminho, filha, então a gente dá um jeito.
E assim, entre madrugadas geladas, refeições improvisadas e uma vontade gigante de vencer, Lívia deu seu primeiro passo em direção ao sonho.
Ela ainda não sabia, mas aquele centro cultural seria o palco de suas primeiras transformações. Ali, entre espelhos, instrutores exigentes e outras meninas tão determinadas quanto ela, Lívia descobriria que a força de um sonho pode, sim, mudar destinos.
O mundo de Lívia estava apenas começando a se abrir - e ela estava pronta para caminhar, mesmo que fosse com os pés descalços.