Sentei-me na cama, ofegante. Meu coração martelava forte contra o peito, a sensação de inquietação se espalhando por minhas veias como veneno. A lareira ainda crepitava, lançando sombras trêmulas contra as paredes de madeira. Mas o calor não era suficiente para abafar o arrepio que se arrastou pela minha pele.
Outro uivo ecoou, mais fraco dessa vez, como se a própria noite estivesse engolindo sua força. Engoli em seco. Algo estava errado.
Levantei-me sem hesitação, puxando um casaco grosso e calçando minhas botas. O medo sussurrava para eu ignorar aquele chamado, mas a curiosidade sempre foi um veneno que corriam em minhas veias. E eu precisava ver com meus próprios olhos o que estava acontecendo.
Abri a porta da cabana, e o ar gélido me atingiu com violência. A neve reluzia sob a luz pálida da lua, um cenário de beleza fria e implacável. Mas o que me atraiu não foi a paisagem congelada.
E sim, a presença ali.
Avancei com cautela, os flocos rangendo sob minhas botas. O som do meu próprio coração parecia ensurdecedor no silêncio da floresta adormecida. Até que o vi.
Uma silhueta colossal jazia caída na neve, um vulto escuro contrastando contra a brancura imaculada. Um lobo. Mas não qualquer lobo.
Minha respiração ficou presa na garganta.
Ele era enorme, maior do que qualquer criatura que eu já vira. Seu pelo negro parecia absorver a luz ao invés de refleti-la, como uma sombra viva. O peito largo subia e descia com esforço, e conforme me aproximei, pude ver o tremor sutil que percorria seu corpo.
Um rosnado fraco reverberou no ar quando dei mais um passo. O som gutural e ameaçador fez meus instintos gritarem para que eu recuasse. Mas meus pés se fincaram no chão.
Ele estava ferido. Não precisava ser um especialista para perceber isso. Seu corpo se contraía de dor, e a neve ao redor dele estava manchada com pequenas marcas escuras. Sangue.
Um arrepio percorreu minha espinha. Algo ou alguém o havia atacado. Mas o quê? Ou quem?
Eu deveria me afastar. Voltar para a cabana, fingir que nunca o vi e seguir minha vida. Mas meus olhos se prenderam aos dele, e qualquer pensamento racional desapareceu.
Escarlate.
Seus olhos eram de um vermelho hipnotizante, como brasas acesas em meio à escuridão. Profundos, intensos, e... inteligentes.
Aquela não era a expressão vazia de um animal selvagem. Havia algo ali. Algo que me fez sentir como se estivesse sendo puxada para um abismo sem volta.
Ele rosnou de novo, um som arrastado e rouco, mas sem força para me afastar.
E então, mesmo contra todo senso lógico, eu ajoelhei ao seu lado, minha respiração pesada e os dedos trêmulos se estendendo, hesitantes, para tocá-lo.
Meus olhos percorreram seu corpo e então vi. Duas flechas. Uma cravada em seu ombro, a outra entre suas costelas. O sangue encharcava o pelo negro, tingindo a neve ao redor.
- Você está ferido... - murmurei, minha voz saindo baixa, quase inaudível. Eu não sabia se ele podia entender, mas continuei. - Eu não vou machucá-lo.
Ele me observava, sua respiração arfada, quente contra o ar gelado. Seus olhos cintilavam em alerta, um animal encurralado ponderando suas opções. Talvez pensasse que eu fosse outro caçador.
- Você precisa confiar em mim. - Minha voz era um sussurro, tentando quebrar a barreira de medo e desconfiança entre nós.
Ele não reagiu com agressividade, mas também não se moveu. Apenas observou, seus olhos cravados nos meus.
Foi então que ouvi. Passos. Rápidos. Determinados. Se aproximando.
Meu coração disparou. Eles estavam vindo terminar o serviço.
Olhei para o lobo. Eu não podia deixá-lo ali. Se ficasse, ele morreria.
- Você precisa se mover. - Me inclinei, tentando convencê-lo. - Se me deixar ajudá-lo, eu posso levá-lo para um lugar seguro.
O lobo hesitou. Vi o conflito em seus olhos, o instinto lhe dizendo para fugir, mas seu corpo ferido não lhe daria essa chance. E ele sabia disso.
A decisão veio em um suspiro pesado. Com esforço, ele tentou se erguer, suas patas vacilando. Eu o apoiei como pude, sentindo a força crua em seu corpo, mesmo debilitado.
Cada segundo contava. Se não saíssemos dali agora, não haveria mais chance. Corremos. Ou melhor, tropeçamos, cambaleamos, mas seguimos em frente. Meu corpo queimava com o esforço de sustentá-lo, mas eu não pararia. Os passos se tornaram mais próximos.
- Anda! - sussurrei para o lobo, apoiando seu corpo contra o meu enquanto ele mancava.
Cada passo era uma luta contra o tempo e o medo. O lobo negro mancava ao meu lado, sua respiração pesada e quente contra o frio cortante da noite. O som dos passos se aproximava, e meu coração batia em um frenesi descontrolado. Não podíamos parar. Não podíamos hesitar.
A cabana surgiu diante de nós como uma promessa silenciosa de abrigo. As janelas pequenas e a madeira gasta mal pareciam oferecer segurança, mas era tudo o que tínhamos. A dor cravava garras afiadas em meus músculos enquanto eu forçava meu corpo a seguir em frente, sustentando o peso da criatura ferida.
Alcançamos a porta, e com um último esforço, empurrei o lobo para dentro. Girei a chave no trinco no instante em que um estalo do lado de fora me fez prender a respiração. A madeira vibrou quando algo - ou alguém - colidiu contra ela.
Segurei firme a maçaneta, como se pudesse impedir qualquer invasão apenas com minha vontade. O silêncio que se seguiu foi sufocante. Depois, passos se afastando, lentamente, como se soubessem que não podiam entrar.
Meus músculos cederam, e me virei para encarar a criatura que acabara de salvar.
O lobo negro tombou no chão, ofegante. Seus olhos - predadores, mas opacos de dor - me observavam, ainda inseguros. O calor da lareira crepitando parecia um convite ao descanso, mas sua postura tensa mostrava que ele ainda não decidira se eu era um refúgio ou uma nova ameaça.
- Você está seguro agora - murmurei, sem esperar que ele entendesse as palavras, apenas a intenção nelas.
Ele piscou devagar, a respiração desacelerando à medida que a exaustão vencia sua desconfiança. Aos poucos, suas pálpebras pesadas cederam, e o corpo tenso se rendeu ao sono.
Aproveitei o momento para agir. A luz tremulante da lareira iluminava os ferimentos abertos em seu pelo negro, o sangue escorrendo em filetes espessos. Precisava cuidar disso antes que a infecção fizesse seu trabalho.
Peguei minha caixa de primeiros socorros, os dedos ágeis trabalhando com a familiaridade de anos lidando com agulhas e tecidos. Não era muito diferente.
Ajoelhei-me ao lado dele e passei os dedos com cuidado sobre sua pele quente, identificando as flechas alojadas em seu corpo. Ambas exigiriam precisão para serem removidas sem causar mais danos.
Respirei fundo e agarrei a haste da flecha do ombro, sentindo a rigidez da madeira sob meus dedos.
- Isso vai doer...
Ele dormia, mas sua respiração se alterou quando comecei a puxar. O som da carne se rasgando sob a pressão da retirada me fez prender o ar, mas continuei. Um último puxão, e a flecha deslizou para fora, trazendo consigo um fluxo quente de sangue.
Imediatamente pressionei um pano limpo contra o ferimento. O lobo se mexeu, soltando um rosnado baixo, mas não acordou. Continuei, removendo a segunda flecha com a mesma precisão e, com mãos firmes, limpei cada ferida. O cheiro metálico do sangue misturava-se ao aroma amadeirado da cabana, impregnando o ar com um peso difícil de ignorar.
Após desinfetar os ferimentos, enfaixei-os com tiras de pano limpas, amarrando-as com destreza. Minha vida como costureira me ensinara mais do que bordados e bainhas. Havia algo de tranquilizador no ato de remendar algo partido, mesmo que esse algo fosse um ser vivo de presas afiadas.
Quando terminei, afastei-me um pouco, observando meu trabalho. O lobo negro respirava fundo, sua forma colossal relaxada diante do fogo. Meu olhar deslizou pelo seu corpo poderoso, agora vulnerável, e uma estranha sensação se enraizou em meu peito.
Ele parecia... mais humano assim.
Sacudi a cabeça, afastando pensamentos insensatos. Eu estava exausta, e o medo do que aconteceu lá fora ainda pulsava em minhas veias.
O calor da lareira lançava sombras oscilantes pela cabana, preenchendo o espaço com uma atmosfera morna e reconfortante. O lobo negro respirava de forma pausada, mas seus músculos ainda carregavam a tensão de quem desconhecia o verdadeiro descanso.
Meus olhos correram pelo corpo dele, analisando cada detalhe com atenção. A ferida do ombro já não sangrava tanto, e sua respiração parecia mais controlada. Ele estava melhor. Pelo menos, fisicamente.
Ajoelhei-me para recolher os panos manchados de sangue, cuidando para não fazer barulho. Foi quando senti o peso do olhar sobre mim.
Ergui os olhos e encontrei os dele. Um vermelho profundo e atento, brilhando sob a luz vacilante do fogo. Não havia ameaça ali, apenas uma curiosidade cautelosa.
- Você está se recuperando. - murmurei, sem esperar resposta.
Ele apenas piscou devagar, como se processasse minha presença. Depois, fechou os olhos novamente, permitindo-se afundar outra vez no sono.
Suspirei, aliviada. O fato de ele ter despertado, ainda que por breves segundos, indicava que não estava tão fraco quanto antes.
Continuei a organizar os suprimentos, tentando ignorar a sensação de estar sendo observada, mesmo que seu olhar já não estivesse sobre mim. Foi então que, ao afastar um dos panos, algo frio e metálico roçou contra meus dedos.
Franzi o cenho e segurei o objeto, erguendo-o para examiná-lo sob a luz do fogo. Era um pingente, preso a uma corrente de prata. O rubi e o ônix incrustados nele cintilavam com um brilho quase hipnótico. Mas foi o brasão gravado no metal que fez meu estômago se revirar.
Uma coroa de espinhos dourada entrelaçada com um sol negro e asas de ferro.
Engoli em seco.
Eu conhecia aquele símbolo. Era do Reino Vartheos.
Minhas mãos apertaram o pingente, o coração disparando. O que um lobo como aquele fazia com algo tão precioso? A única explicação lógica era a pior de todas.
Ele era um animal de guerra. Ou, pior... um pet real.
Meus olhos voltaram-se para a criatura adormecida. Sua respiração serena contrastava com a onda de inquietação que agora tomava conta de mim.
Se ele pertencia à realeza... Alguém viria atrás dele. E eu estava condenada.