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O carro desceu a serra, as curvas sinuosas revelando aos poucos o horizonte azul-turquesa do mar. Isadora apertou o volante com força, os dedos formigando de ansiedade. Vila das Marés não mudara nada em dez anos - as mesmas casas coloridas, a praça central com seu coreto enferrujado, o cheiro salgado do oceano que permeava o ar.
Ela estacionou em frente à Casa das Conchas, a antiga residência de sua avó. A propriedade ficava no alto de uma colina, isolada, com vista para o mar. A madeira branca da varanda estava descascada, e o jardim, outrora impecável, agora era um emaranhado de ervas daninhas e flores silvestres. O balanço de vime - onde passara incontáveis tardes lendo ao lado da avó - ainda estava lá, balançando levemente no vento, como se a esperasse.
- Finalmente!
A voz animada fez Isadora se virar. Clara, sua melhor amiga de infância, corria em sua direção, os cachos ruivos voando descontroladamente.
- Você veio me receber? - Isadora sorriu, genuinamente surpresa.
- Claro que vim! Você some por uma década e acha que eu ia deixar você enfrentar isso sozinha? - Clara a puxou para um abraço apertado.
Isadora sentiu um nó na garganta. Ela não estava pronta para isso. Não para as memórias, não para a dor que essa casa carregava. Mas depois do divórcio, da crise criativa, da depressão que a consumira nos últimos meses, não havia mais para onde correr. Vila das Marés era seu último refúgio.
- Então, como está a casa? - Clara perguntou, puxando-a pela mão em direção à entrada.
- Escura, empoeirada e cheia de fantasmas, pelo que me lembro.
- Ótimo, então nada mudou.
Dentro, o tempo parecia ter congelado. Os móveis ainda estavam cobertos por lençóis brancos, e a luz do entardecer entrava pelos vitrais coloridos da sala, projetando manchas de cor no chão de madeira encerada. Isadora respirou fundo. O cheiro era o mesmo - madeira envelhecida, livros antigos e um traço do perfume de lavanda que sua avó sempre usava.
Foi então que algo chamou sua atenção.
No canto da sala, quase escondido atrás de uma estante de livros, estava o baú de sua avó.
- O que é isso? - Clara perguntou, seguindo seu olhar.
- Algo que eu não esperava encontrar.
Isadora se ajoelhou diante do baú, passando os dedos sobre a tala enferrujada. O objeto era velho, de madeira escura com detalhes em ferro batido. Ela puxou a tampa, que gemeu como se reclamasse por ter sido aberta depois de tanto tempo.
Dentro, um caderno de couro desbotado repousava sobre um monte de cartas amarradas com fitas. Isadora pegou o diário com cuidado, como se pudesse desintegrar entre seus dedos. Quando o abriu, uma fotografia escorregou para o chão.
Clara a pegou antes que Isadora pudesse reagir.
- Quem são eles? - ela sussurrou, virando a foto para Isadora.
A imagem mostrava um homem de uniforme militar, alto, de olhos claros e sorriso confiante, segurando a mão de uma jovem. Sua avó. Mas não a avó que Isadora lembrava - esta mulher na foto sorria com os olhos brilhantes, o rosto iluminado por uma felicidade que Isadora nunca vira nela.
No canto da foto, uma assinatura desbotada:
"Para sempre teu, Daniel."
- Daniel? - Isadora franziu a testa. - Quem é Daniel?
- Você nunca ouviu falar dele?
- Nunca.
Clara arqueou uma sobrancelha. - Então parece que sua avó tinha segredos.
Isadora virou a foto. No verso, uma data: 12 de julho de 1954. E uma única frase, escrita à mão:
"Prometo te encontrar em outra vida."
O coração de Isadora acelerou. Quem era esse homem? E por que sua avó nunca falou dele?
Antes que pudesse refletir, um som a fez estremecer.
Música.
Um piano, tocando suavemente do lado de fora.
- O que é isso? - Clara perguntou, indo até a janela.
Isadora se levantou e a seguiu. Lá embaixo, na praia deserta, um homem estava sentado em um piano de cauda - sim, um piano de cauda na areia - tocando uma melodia triste e hipnotizante.
- É ele - Clara disse, os olhos brilhando.
- Quem?
- Rafael Calebe. O pianista. Ele se mudou para cá há alguns meses. Dizem que era famoso, mas depois do acidente...
- Que acidente?
- Ele perdeu a visão.
Isadora olhou novamente para o homem. Ele tocava com os olhos fechados, os dedos deslizando sobre as teclas com uma precisão sobrenatural. O vento agitava seus cabelos escuros, e a última luz do sol dourava sua pele.
Ela não sabia por que, mas aquele som a fez sentir algo que há muito tempo não sentia - esperança.
- Vamos lá embaixo - Clara sugeriu, puxando seu braço.
- Não, eu... - Isadora hesitou.
Mas então, como se sentisse seu olhar, Rafael parou de tocar e virou o rosto em sua direção.
Mesmo à distância, mesmo sem poder vê-la, ele sabia que ela estava lá.
E, de repente, Isadora entendeu que sua vida em Vila das Marés seria muito mais complicada - e muito mais perigosa - do que ela imaginara.