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A chuva naquela manhã não era só um sinal do tempo - era um prenúncio. Daqueles que o coração sente antes da razão entender.
Clarice Carvalho sempre seguia uma rotina quase sagrada: levava Annabeth às aulas de piano e depois passava na floricultura para comprar flores frescas para enfeitar o salão da mansão. Seu sorriso era o sol das manhãs na casa dos Carvalho. Sua presença tornava tudo mais leve, mais vivo.
Mas naquele dia, Clarice saiu sozinha. Annabeth tinha aula mais tarde por conta de um ensaio especial, e a mãe insistiu que fosse descansar um pouco mais.
- Fique com Anthony. Quero vocês dois relaxados para o recital de domingo. Hoje é só um dia comum, minha flor - dissera, beijando sua testa com carinho.
Mas aquele dia comum nunca terminaria como tal.
Horas depois, quando o telefone tocou e a governanta correu com os olhos marejados até Roberto, os risos cessaram. O tempo congelou.
O motorista fiel, Luiz, perdera o controle do carro numa curva da estrada molhada. Um caminhão havia cruzado no caminho. O impacto fora devastador.
Clarice não resistiu.
**
O velório aconteceu sob uma chuva fina, como se o céu também chorasse por ela. Annabeth, envolta num vestido preto que lhe parecia um fardo, não derramava uma lágrima sequer. Seus olhos estavam abertos, fixos no caixão de madeira clara cercado de lírios brancos - os preferidos de sua mãe.
Anthony segurava sua mão o tempo todo. John e Noah estavam em silêncio, os olhos baixos, sem coragem de encarar a irmã. O pai... bom, Roberto Carvalho estava desfeito. Envelheceu anos em questão de dias. Passou a andar arrastado, calado, ausente.
O lar antes tão cheio de sons agora era puro eco.
Foi então que, semanas depois, ela apareceu.
Vanessa Oliveira.
A viúva do motorista. Linda, elegante, carismática... e de luto. Trazia consigo uma filha de olhos grandes e lágrimas prontas: Anne.
- Não queremos caridade, senhor Carvalho - disse Vanessa da primeira vez que apareceu na mansão. - Só gratidão pela memória do Luiz. E um lar digno pra minha pequena.
Mas em pouco tempo, a gratidão virou permanência. Os jantares passaram a tê-la na ponta da mesa. Os sorrisos de Roberto começaram a voltar, mas não para Annabeth. Os irmãos mais velhos, ainda tentando lidar com a dor, viam em Vanessa uma forma de não perder o pai por completo. E Anne... bem, Anne era doce. Ou parecia ser. Imitava tudo o que Annabeth fazia, elogiava seus vestidos, aplaudia suas apresentações no piano.
E assim, sob o manto da perda, a nova Sra. Carvalho se instalou como sombra elegante. E trouxe a filha como substituta velada.
Meses depois, com alianças trocadas em silêncio, Vanessa se tornava oficialmente esposa de Roberto.
E Anne, a nova "irmãzinha".
Annabeth viu, pouco a pouco, seu lugar ser tomado. Os álbuns de fotos começaram a ter menos espaço para sua imagem. Os convites eram endereçados a "família Carvalho e filhas", mas o destaque era sempre Anne. A nova filha. A filha que chorava baixinho e olhava para Roberto como se ele fosse o herói que ela nunca teve.
Enquanto isso, Annabeth seguia tocando.
Tocando o piano para não enlouquecer. Tocando para que a voz da mãe não fosse esquecida em sua mente.
Tocando para não desaparecer.
Anthony era o único que não se deixava cegar. Ficava atento às sutilezas de Vanessa, aos olhares escorregadios de Anne. Mas sozinho, era uma muralha contra uma tempestade.
- Eu não confio nelas - disse ele uma noite, sentando-se ao lado da irmã, que tentava estudar uma nova composição.
- Eu também não - sussurrou Annabeth, com os dedos trêmulos sobre as teclas. - Mas se dissermos isso em voz alta, perdemos o pouco que ainda temos.
- Você nunca vai me perder - respondeu Anthony, firme.
E naquele instante, sob a fraca luz do abajur, Annabeth soube que enquanto ele estivesse ali, ainda existia um pedaço da mãe com ela.
Ainda existia amor de verdade naquela casa.
Com o tempo, Vanessa se tornou indispensável. Ela sabia onde estavam os remédios do Roberto antes mesmo da governanta. Sabia o prato favorito de cada um, os horários dos compromissos, os segredos escondidos nas entrelinhas das rotinas. E era doce. Sempre doce.
Anne, por outro lado, se encaixava como uma luva. Onde Annabeth era discreta, Anne era solícita. Onde Annabeth hesitava, Anne antecipava. Os elogios do pai, antes tão raros, agora escorriam nos sorrisos que ele oferecia à nova filha.
O primeiro sinal veio sutil. Um desenho rasgado, encontrado em meio aos cadernos de Annabeth. Ela jamais faria isso com as coisas da Anne - mesmo que fossem tolas e infantis.
- Você rasgou o desenho da sua irmãzinha? - indagou Roberto, os olhos semicerrados.
- Não, papai. Eu jamais faria isso.
Mas Anne chorava. Baixo, com a voz trêmula e a mão segurando o papel amassado.
- Eu deixei na mesa... Eu só queria mostrar pra ela...
Anthony chegou perto. Sentia o cheiro da mentira. Mas antes que pudesse defender a irmã, John o segurou pelo braço.
- Não começa - sussurrou o mais velho, tenso.
Anthony ficou em silêncio. Naquele dia, achou que era apenas um mal-entendido.
Mas o segundo sinal veio com força.
Vanessa apareceu na sala, dois dias depois, com os olhos inchados.
- Eu não queria dizer isso, mas... preciso proteger minha filha. Annabeth disse que Anne nunca será uma de vocês. Chamou ela de bastarda.
A palavra pesou no ar como uma sentença. Roberto ficou imóvel. Noah franziu o cenho. John cruzou os braços. Annabeth, que lia no canto da biblioteca, levantou-se surpresa ao ouvir seu nome.
- O quê?
- Como você pôde? - gritou Roberto, atravessando a sala.
- Eu nunca disse isso! - ela rebateu, assustada. - Jamais chamaria alguém assim, muito menos alguém mais novo do que eu!
- Está me chamando de mentirosa? - Vanessa dramatizou, com a mão no peito. - Eu escutei! Ela estava no corredor com o Anthony!
- Isso é mentira! - respondeu Anthony, furioso. - Nós não dissemos nada disso! Ela está inventando!
Mas ninguém o escutou.
Roberto aproximou-se com os olhos em brasa. Antes que Anthony pudesse impedir, a mão do pai atravessou o ar, estalando com força no rosto da filha.
O som cortou o salão como um trovão.
Annabeth caiu de joelhos no tapete, a bochecha ardendo, os olhos arregalados. Procurou socorro com o olhar. Primeiro John. Depois Noah.
Mas ambos a encaravam com frieza. Julgavam-na com os olhos.
Como se ela merecesse.
Anthony explodiu.
- SEUS IDIOTAS! - gritou, empurrando John. - SÃO TODOS UNS CEGOS! VOCÊS DEIXARAM UM ESTRANHA DOMINAR ESSA CASA E FAZER ISSO COM A BETH!
- Cale a boca, Anthony! - John revidou. - Você só vê o que quer! Ela vem provocando a Anne desde o início!
- Vocês não conhecem sua própria irmã! Não lembram da mãe de vocês? Clarice teria vergonha de ver o que essa casa se tornou!
O silêncio foi absoluto. Vanessa cobria a boca fingindo espanto. Anne tremia nos braços dela, como um passarinho ferido. Mas seus olhos, escondidos sob as lágrimas, cintilavam com triunfo.
Anthony se abaixou, ergueu Annabeth nos braços com cuidado e a levou escada acima, sem olhar para trás.
**
No quarto, ele limpou o sangue seco no canto da boca dela com um pano úmido. Annabeth não chorava. Só respirava, fundo, como se engolisse cada lágrima para que não transbordasse mais dor.
- Eu não tenho ninguém, Tony.
- Tem a mim - ele respondeu, firme. - Sempre terá. Enquanto eu viver, ninguém vai te derrubar.
Lá embaixo, o jogo recomeçava.
- A culpa é minha - dizia Anne, voz melosa, limpando o próprio rosto. - Eu devia ter ficado quieta...
- Você é boa demais - suspirou Roberto, abraçando-a. - Não se culpe.
Vanessa pousou a mão no ombro de John, depois em Noah, e sussurrou como quem consola.
- Ela precisa de limites. E vocês, meninos... precisam proteger o que restou da família.
E ali, no âmago de uma casa devastada, a nova rainha selava seu reinado.
Anne sorriu, escondido no peito do pai.
E no andar de cima, Annabeth perdia, de uma vez por todas, o direito de se sentir filha.
O dia do recital beneficente chegou. A casa Carvalho recebia empresários, políticos e artistas. Anthony mantinha-se próximo de Annabeth o tempo todo, como um escudo silencioso. John e Noah seguiam distantes, fingindo normalidade. Vanessa e Anne, por sua vez, brilhavam. Pareciam feitas de ouro, derretendo charme e simpatia por onde passavam.
Ricardo, amigo de infância de Noah e agora um talentoso violonista reconhecido, foi convidado a se apresentar naquela noite.
Ele chegou mais cedo, e viu. Viu quando Anne rasgou o vestido que Annabeth usaria. Viu Vanessa culpar Annabeth por perder um colar caro, escondido propositalmente. Viu as risadas disfarçadas de consolo. Viu os olhares de desprezo.
E gravou. Sem saber o que faria com aquilo, apenas... gravou.
Horas depois, enquanto todos aplaudiam a última música e brindavam à "nova fase da família Carvalho", Anne tropeçou propositalmente, jogando vinho tinto no vestido de Annabeth, que tentava sorrir mesmo diante da humilhação. Os risos abafados se espalharam como veneno entre os convidados.
- Você fez isso de propósito! - Anthony se levantou furioso, encarando Anne.
Vanessa pôs-se entre eles, teatral.
- Controle sua raiva, Anthony! Ela só é uma criança!
- Não banque a mártir - disparou ele. - Todo mundo viu!
O ambiente pesou. Roberto se levantou, pronto para silenciar o filho - novamente.
Mas então, Ricardo se adiantou. Seu semblante sério, distante do charme habitual.
- Eu vi sim. E... - ele tirou o celular do bolso - todos vocês vão ver também.
A gravação começou.
Vanessa instruindo Anne a esconder o colar. Anne cortando o tecido do vestido de Annabeth. As risadas. As falas baixas, calculadas. Tudo.
O salão mergulhou em silêncio.
Os convidados se entreolhavam, desconfortáveis. John e Noah empalideceram. Roberto manteve-se imóvel, os punhos cerrados.
Vanessa tentou rir.
- Isso pode ser facilmente manipulado. Crianças brincam...
- Eu não acho que isso tenha sido uma brincadeira - disse Ricardo, encarando-a, firme. - E mesmo assim, não farei cena. Isso aqui é uma casa. Ainda. E não cabe a mim destruir o pouco de dignidade que restou.
Ele desligou o celular. Olhou para Annabeth - seus olhos a buscavam desde o momento em que chegara.
- Me perdoa por não ter feito isso antes.
Virou-se para os irmãos Carvalho.
- Se quiserem continuar ignorando o óbvio, tudo bem. Mas pelo menos, agora, vocês sabem.
**
A noite terminou sem mais palavras. Os convidados foram embora, com olhos e pensamentos duvidosos. Anne foi dormir chorando, dizendo que todos a odiavam. Vanessa confortou-a com promessas sussurradas.
Já dentro da mansão, Roberto chamou Annabeth à sala.
Ela desceu hesitante, os passos leves como quem pisa em vidro.
- Por que está me chamando? - perguntou, com a voz embargada.
- Porque você destruiu sua irmã - ele disse, encarando-a com desprezo. - Você sempre teve inveja.
- Pai... o senhor viu o vídeo...
- Vejo o que quero ver! - gritou ele, avançando.
Antes que sua mão alcançasse o rosto da filha, John segurou o braço do pai com força.
- Já chega.
Roberto virou-se, perplexo.
- O que disse?
- Eu disse que já chega. A Beth não é uma mentirosa. E talvez... talvez a gente tenha errado com ela. Eu... não tenho certeza de nada agora.
Roberto ficou estático. Respirava pesado. Noah observava calado, claramente em conflito.
Anthony apareceu atrás, segurando a porta entreaberta, pronto para intervir.
Roberto recuou. Olhou para os três filhos. Depois para Annabeth. E antes de subir as escadas, disse:
- O que você se tornou é uma decepção. Espero que um dia tenha vergonha disso.
**
Naquela noite, Annabeth chorou como há muito não chorava.
Mas havia algo diferente.
John passou pela porta de seu quarto, e hesitou. Depois voltou. E deixou um bilhete por baixo da porta:
"Me perdoa. Ainda não sei quem está certa. Mas quero saber."
Lá fora, Ricardo tocava sozinho ao piano. Suas notas falavam por ele.
E nas sombras do corredor, Vanessa e Anne planejavam o próximo passo.
Porque onde a verdade começa a nascer, o ódio também cria raiz.