Capítulo 10 O sorvete

- Gosto de lugares assim. Onde o tempo não corre, só observa.

Havia algo na forma como ele falava. Um lirismo inesperado. Como se ele guardasse dentro de si não apenas memórias, mas segredos.

- Tem razão. Mas ultimamente, a alma da Basílica anda inquieta - comentei, quase sem pensar. - A chave, as trocas na rotina, a irmã doente...

- O que ela teve mesmo?

- Desinteria. A madre disse que foi algo que comeu, mas... Bem, ela estava se preparando pra vir com você. Acabei vindo no lugar dela.

- Sorte minha, então - ele disse, com aquele tom que ficava entre o educado e o ambíguo.

Fingi não notar. Ou preferi não lidar com a forma como aquilo reverberou em mim.

Carregamos mais algumas caixas em silêncio, o som abafado da praça preenchendo o ar ao nosso redor. Quando paramos para respirar, ele limpou o suor da testa com a manga da camisa e então enfiou as mãos nos bolsos, virando-se para mim com aquele olhar firme, quase sereno - mas com um calor velado que eu tentava ignorar.

- Gosta de sorvete? - perguntou, a voz baixa e casual.

Franzi o cenho, surpresa. Levei uma mão ao cabelo, empurrando uma mecha solta do hábito para trás da orelha.

- Como é?

- Sorvete - repetiu, com um meio sorriso discreto. - Tem uma sorveteria ali na praça. Achei que podíamos pegar um. Já que o carro está quase cheio...

A sugestão soava inocente. Era inocente. Mas, ainda assim, algo dentro de mim ficou em alerta - não por ele, mas por mim mesma. Estava mais do que claro, que o problema era eu. Me repreendi internamente e prometi a mim mesmo que rezaria 10 ave-marias assim que chegasse na Abadia.

- Tem sorvete lá de onde o senhor veio? - perguntei, tentando esquecer os meus conflitos internos.

Ele hesitou por um instante, como se não esperasse a pergunta. Depois sorriu de leve, os olhos ficando ligeiramente distantes, como se puxasse alguma memória antiga.

- Tem. Mas é diferente. Mais denso. Menos doce. O frio também é outro... o frio lá é de verdade. Silencioso, como se engolisse tudo.

Houve algo na forma como ele disse aquilo que me fez prender a respiração. Não era exatamente tristeza, mas um certo peso, uma sombra que cruzava seu rosto e depois sumia.

- Aqui tudo é mais doce - comentei, mais para preencher o silêncio do que qualquer outra coisa.

- Aqui tudo é melhor - ele respondeu, e embora seu tom não tenha mudado, algo na maneira como me olhou me fez desviar os olhos.

Não havia nada de inapropriado. Nenhum flerte. Nenhuma palavra fora de lugar. Mas ainda assim, o jeito como ele me encarava... havia algo ali. Um calor contido, inquietante. Como uma brasa debaixo da cinza.

- Eu gosto de coco queimado - murmurei, voltando ao assunto inicial, como se assim pudesse apagar a sensação que se instalava no ar.

Ele arqueou uma sobrancelha, com um sorriso breve, quase imperceptível.

- Gosto específico.

- Me lembra a casa da minha avó, nas férias de verão. Toda vez que eu tomava, sentia que estava tudo bem. Mesmo quando não estava.

Ele assentiu, como se entendesse mais do que estava sendo dito.

- Tem sabores assim. Que viram memória.

Deu alguns passos na direção da praça, mas antes de seguir completamente, virou levemente o rosto para mim.

- Vou buscar um pra você.

- Não precisa. Não quero incomodar.

- Não é incômodo, irmã. Eu insisto.

Fiquei ali, parada, observando enquanto ele se afastava com os mesmos passos firmes e comedidos de sempre. Um homem calmo. Reservado. Um padre. E ainda assim... havia algo nele que parecia sempre tocar o limite do que era permitido - sem nunca ultrapassá-lo.

Suspirei, como quem tenta afugentar um pensamento. E como sempre, não consegui.

Ele sumiu pela rua de paralelepípedo, deixando para trás o som das solas dos sapatos batendo na pedra molhada.

Fiquei parada por alguns instantes, observando a chuva fina voltar a cair. O tempo parecia suspenso. Peguei uma caixa menor e coloquei no banco de trás, tentando parecer ocupada. Mas ele demorou. Dez, quinze minutos. Sorvete não levava tanto assim.

Então eu resolvi procurá-lo.

Andei até a esquina da praça e olhei ao redor. Nada. A sorveteria estava aberta, mas não havia sinal dele lá dentro.

Foi então que ouvi.

Uma voz, abafada, vinda de um beco entre a farmácia e uma loja de roupas.

- Não, não agora - disse ele, num tom diferente. Rápido. Direto. Baixo demais para ser ouvido por curiosos, mas claro o suficiente para mim.

Me aproximei em silêncio, colando as costas à parede do prédio e inclinando ligeiramente a cabeça para ouvir melhor.

Ele falava ao telefone. Mas, a exigência e a forma que ele falava não soava como um padre.

A língua que saía da sua boca não era português. E nem latim de orações. Era Romeno.

Eu reconheci o som. Porque tive algumas aulas no ensino médio, além do mais era claro que era o idioma nativo do Andrei.

As palavras dele vinham rápidas, e eu não compreendia tudo, até porque eu não tinha feito mais do que algumas aulas. Mas o tom me deixava desconfortável. Não era a língua, era o conteúdo. Ou a ausência de reverência, a frieza. Era como se ele tirasse uma máscara.

Ouvi algo como "nu azi" e "documentele". "Hoje não" e "os documentos". Minha mente se agarrou a isso. Outra vez documentos.

Arquivos?

Me afastei, o coração batendo tão forte que parecia ecoar nas costelas. Voltei ao carro rápido, tentando parecer natural, mesmo que por dentro meu corpo inteiro estivesse em alerta.

                         

COPYRIGHT(©) 2022