Capítulo 6 Curiosidade

A inquietação manteve-se firme ao longo do dia, como uma leve febre que não me impediu de seguir as obrigações, mas também não me deixou esquecer que algo estava fora de ordem. Era como um arrepio constante na espinha, uma lembrança incômoda daquele meu mundo, cuidadosamente moldada em rituais e certezas, havia sido tocada por algo estranho. Ou por alguém.

Tentei convencer a mim mesma de que era apenas a presença de uma figura nova e importante na Basílica. Era natural sentir certo nervosismo, certo deslocamento. Mas no fundo, eu sabia. O problema não era o título dele. Era ele. Ó homem em si.

Padre André.

Ele não parecia se esforçar para ser notado - muito pelo contrário. Mas havia algo em sua presença que era impossível de ignorar. Seus olhos cinzentos deixam passar as paredes da alma. E cada vez que eu pensava neles, uma pontada de vergonha me atravessava. Como se, ao lembrar dos olhos de um padre, eu estava cometendo um pecado silencioso, íntimo e imperdoável.

E talvez esteja.

Minha fé sempre foi meu refúgio, meu norte. Cresci entre orações e silêncios, entre doutrinas e confissões. Mas agora, diante de um estranho que parecia carregar o mundo nas costas - e um passado que ninguém ali conhecia -, eu me via questionando pensamentos que deveriam ser impensáveis.

No fim da tarde, enquanto levava alguns documentos para a sala de arquivo secundário - uma área menos usada, mas ainda assim parte da administração da Basílica -, o som de passos no corredor me fez parar.

Quando eu virei, lá estava ele.

Padre Andrei vinha na direção oposta, saindo da biblioteca, com as mãos atrás das costas e uma expressão tranquila, quase despretensiosa. Mas seus olhos, sempre eles, eu prenderam no lugar.

- Laura - disse, com um leve sorriso que não chegava a tocar os olhos. - Que coincidência.

Meu coração acelerou, e tive que fazer um esforço para não parecer desconcertada.

- Padre Andrei - responde com um leve aceno de cabeça, tentando manter a postura. – Boa tarde.

- Eu ia justamente procurar você. - Ele parou a poucos passos de mim. - Sobre os arquivos que mencionei ontem... Você conseguiu a autorização?

Minha garganta seca. A verdade era que eu não havia tido tempo nem coragem de pedir formalmente. Estava ocupado demais tentando entender minha própria ocorrência à presença dele. Ainda assim, não queria decepcioná-lo.

- Ainda não - confessei, olhando brevemente para o chão antes de encará-lo de novo. - Mas... se quiser, posso lhe mostrar a sala onde ficam os documentos. Só não posso abrir nenhum sem a permissão adequada.

Ele inclinou-se levemente para a cabeça, pensativo. Parecia considerar a oferta com mais interesse do que deveria.

– Entendo. Mas veja onde já estão me ajudando bastante - disse. - A localização, o tipo de organização... tudo isso é útil.

Senti um nó no estômago. Ele não estava pedindo nada demais, e ainda assim, havia algo errado. Ou talvez o erro tenha acontecido em mim. Eu era a anfitriã. Era meu dever conduzi-lo. E, ainda assim, me senti como se estivesse cometendo uma pequena transgressão ao levar-lo até ali.

Assenti em silêncio e comecei a andar, sentindo os passos dele ecoando atrás dos meus pelos corredores de pedra. O som era ritmado, firme. Como se cada passo dele calculasse fosse.

Ao virar a esquina para o setor administrativo antigo, murmurei:

- Não é um lugar muito visitado. A maioria dos documentos lá são bem antigos... registros de batismos, óbitos, doações...

- Arquivos mortos - ele comentou, quase como se falasse consigo mesmo.

– Alguns, sim. Outros ainda têm valor histórico. Há livros contábeis desde o século XIX - verificações, numa tentativa de manter a conversa em território seguro.

Ele não respondeu de imediato, apenas continuou andando ao meu lado.

- Você está procurando algo específico? - queria, a fim de afastar o desconforto e também pela curiosidade que começou a crescer em mim. - Quero dizer... dentro dos arquivos?

Ele pareceu refletir por um instante, antes de responder:

- Nada específico. Fui instruído a conhecer melhor a história da Basílica. Os arquivos antigos costumam revelar mais do que as aparências mostradas.

Foi uma resposta vaga. E me pareceu decorado. Mas ele não parecia mentiroso - pelo menos não da maneira comum. Era mais como se estivesse omitindo partes de uma verdade muito maior, da qual eu não fazia ideia. Ainda assim, assenti, engolindo minha desconfiança. Eu não tinha o direito de questioná-lo.

Paramos diante da porta da sala de arquivos.

- É aqui - anunciei, pegando as chaves do molho preso ao cinto do meu hábito. - Eu posso abrir para o senhor, mas como disse, os documentos devem permanecer fechados até que a autorização chegue.

- Eu compreendo - respondeu ele com um aceno cordial. - Só quero ver como está organizado. Não toquei em nada.

Destranquei a porta e empurrei-a com cuidado. O cheiro de papel antigo e madeira tomou conta do ar. Estantes altas preenchiam o espaço, todas homologadas com pastas, livros e caixas devidamente etiquetadas.

Ele entrou devagar, olhando ao redor com atenção. Cada passo dele era silencioso. Seus olhos corriam pelas etiquetas com velocidade, como se já soubesse o que estava procurando - embora tivesse aqui que não buscava nada específico.

Fiquei parada à porta, observando-o. E, mais uma vez, fui tomada por aquela sensação incômoda. Aquilo era apenas parte das minhas funções. Seja gentil. Orientar. Mas então por que eu senti como se estivesse rompendo uma regra silenciosa? Como se você tivesse cruzado um limite invisível?

Talvez fosse porque, em algum nível, eu soubesse que a presença dele não era como as outras.

- Se precisar de mais alguma coisa... - falei, querendo encerrar logo aquela visita. - Estarei na biblioteca.

Ele se virou para mim, os olhos cinzentos brilhando sob a luz fraca do lugar.

- Obrigado, Laura. Sua ajuda tem sido... preciosa.

A palavra ficou no ar por tempo demais. E naquele instante, percebi que havia algo nos olhos dele que não era religioso. Ou talvez fosse... mas de uma fé que eu não conhecia.

Disse antes que eu pudesse deixar levar pensamentos que não tinham lugar ali. Fechei a porta atrás de mim e respirei fundo, tentando recuperar o controle da respiração e da razão.

Eu acabei de levar um pai para ver os arquivos. Não havia nada de errado nisso.

Mas, por algum motivo, parecia que eu tinha acabado de cometer um erro que ainda não compreendia.

            
            

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