Era domingo, estávamos no refeitório da Basílica. O cheiro de incenso ainda pairava no ar quando me sentei no refeitório, rodeada pelas vozes suaves das irmãs comentando sobre a homilia daquele domingo. A missa havia sido bonita, como sempre era quando o arcebispo conduzia. Mas a beleza do ritual não conseguira afastar a inquietação que me acompanhava desde a manhã de sexta-feira, quando estive com o Padre Andrei nos corredores antigos da Basílica.
Eu o vi, naquele momento, como um homem que despertava algo que eu não sabia nomear - uma mistura desconfortável de admiração, dúvida e... receio? Ainda assim, ele não fizera nada de errado. Apenas mostrou interesse pelos arquivos históricos da Basílica. E eu, como boa anfitriã, ofereci ajuda.
Então por que eu não conseguia simplesmente deixar isso para trás?
Eu distraidamente mexia na borda da toalha branca, perdida em meus próprios pensamentos, quando Madre Beatriz entrou apressada no refeitório, o véu levemente desalinhado sobre os cabelos grisalhos. Ela não era de se exaltar com facilidade, mas havia um franzido entre suas sobrancelhas que me deixou alerta.
- Irmãs - ela disse, firme - alguém viu a chave da sala dos arquivos? Ela não está em seu lugar desde ontem à noite.
O silêncio foi imediato. As colheres pararam de bater nos pratos. Olhares se cruzaram.
Meu coração deu um salto.
A chave? A mesma chave que abria a porta dos arquivos que o Padre Andrei tanto queria ver?
Minha mente correu para os momentos daquela manhã, quando ele me perguntara novamente se eu havia conseguido a autorização. Eu dissera que não, ainda esperando a resposta do arcebispo, e mesmo assim... me vi cedendo, conduzindo-o pelos corredores até a porta trancada, explicando como o lugar guardava os registros mais antigos da Basílica. Ele não insistiu, nem sequer pareceu incomodado. Apenas agradeceu, com aquela voz serena demais para um homem que inspirava tanta perturbação.
Voltei ao presente, meu rosto quente. Eu não queria suspeitar dele. Era errado. Era pecado. Ele era um homem de Deus.
Mas... e se?
Levantei-me com o coração batendo descompassado e fui até a madre, que conversava agora com outra freira sobre possíveis lugares onde a chave poderia ter sido deixada.
- Madre Beatriz... - chamei, com a voz baixa.
Ela se virou para mim com expressão cansada, mas receptiva.
- Sim, irmã Laura?
Engoli em seco.
- Há algo que eu preciso contar. - Eu esfrego minhas têmporas em exasperação.
Ela me conduziu para fora do refeitório, e seguimos por um corredor lateral em silêncio. Parei diante da pequena sala de reuniões e entrei, esperando que minhas palavras não me traíssem.
- Dois dias atrás - comecei, nervosa -, o Padre Andrei me perguntou sobre os arquivos. - minha voz era baixa e trêmula. - Ele... mostrou interesse em conhecê-los. Eu disse que ainda aguardava autorização do arcebispo, mas o conduzi até a porta, usei minha própria chave, e mostrei onde ficavam. Ele não mexeu em nada. Não tinha como.
Madre Beatriz estreitou os olhos, em silêncio. Não entendendo muito bem onde eu queria chegar.
- E agora que a chave sumiu - continuei - eu... pensei que talvez fosse relevante informar.
Término, com minhas mãos tremendo tanto que tenho que escondê-las.
- Está sugerindo que ele pegou a chave, irmã Laura? - Ela faz uma pausa, me examinando.
- Não! - respondi rápido demais. - Não estou acusando. Só achei que... talvez... fosse importante que soubesse.
Tentando justificar o que eu disse, sinto um calor do meu rosto percorrer todo o caminho até o pescoço.
Ela cruzou os braços diante do peito, observando-me com aquela calma clerical que era mais incômoda do que qualquer grito.
- Essa é uma acusação séria, irmã.
- Eu sei - respondi, a vergonha queimando meu rosto. - Mas achei que seria mais errado me calar.
Ela ficou em silêncio por um tempo longo o suficiente para me fazer querer desaparecer. Depois assentiu lentamente.
- Farei uma averiguação junto a madre superiora. Pode retornar às suas funções.
Eu agradeci e me retirei, o estômago revirando. A ideia de ter envolvido o nome do Padre Andrei naquela história me deixava desconfortável. E, ao mesmo tempo, eu sentia que havia traído algo dentro de mim - talvez a fé, talvez a confiança. Ou talvez fosse apenas o medo de estar errada sobre tudo.
O entardecer caiu devagar sobre os vitrais da Basílica, tingindo os corredores de dourado e púrpura. Eu havia passado o restante do domingo mergulhada em pequenos afazeres, tentando sufocar a ansiedade que me corroía por dentro. Não voltei a ver o Padre Andrei desde a missa, o que, de certo modo, era um alívio. Minha consciência pesava, ainda que eu tentasse justificar a mim mesma que fizera o que era certo.
Quando o sino menor soou, anunciando o fim da Adoração, uma das noviças se aproximou com os olhos levemente arregalados.
- A Madre Superiora quer vê-la na sala dos encontros - ela sussurrou. - Agora.
A respiração me escapou por um instante, como se tivessem me acertado no peito. Assenti, engolindo em seco, e caminhei até lá com passos tensos, como se estivesse indo prestar contas de um crime que não cometi - ou pelo menos, não conscientemente. Ainda assim, o gosto amargo da culpa estava preso à minha língua.
A porta estava entreaberta, e quando bati levemente, ouvi a voz da madre Elisa:
- Entre, irmã Laura.
Empurrei a porta e dei um passo para dentro. O ar ali dentro parecia mais pesado, espesso como incenso antigo. E lá estava ele.
Padre Andrei.
Sentado ao lado da madre, com a postura impecável, como se fizesse parte daquele lugar há séculos. Não vestia o hábito preto formal de celebração, mas sim uma roupa clerical simples - que, de alguma forma, ainda parecia ter sido talhada para ele. Ele levantou os olhos e os fixou nos meus com firmeza. Cinzentos. Calmos. Insondáveis.
Implacáveis.
Meu coração acelerou.
Minhas bochechas esquentaram de imediato - e não de forma delicada, mas com a intensidade dolorosa de quem está profundamente envergonhada. Não era essa a minha intenção. Eu não quis acusá-lo. Mas agora parecia exatamente isso: uma acusação. Contra alguém que claramente não tolerava ser questionado.