Capítulo 9 Fora

Seus olhos não piscavam. A expressão era amena, educada. Mas algo ganhou vida em seus olhos naquele instante. Algo frio e perturbador, como uma sombra se movendo no fundo de um espelho. E então desapareceu com a mesma rapidez.

- Às vezes, é preciso levantar dúvidas para que se obtenham respostas. A madre me explicou a situação. A chave foi encontrada sobre a mesa dela, lembra? Provavelmente alguém a moveu por engano.

Assenti, mas a culpa ainda ardia no fundo do peito. Não era a chave em si. Era o fato de que, mesmo sem provas, eu havia pensado que ele seria capaz de algo errado. Que desejei acreditar nisso.

- Ainda assim, peço desculpas - murmurei, odiando o arrepio de insegurança em meu pescoço.

Ele me deu um sorriso suave, mas não alcançou seus olhos. Não era reconfortante. Era performático.

- Já foram aceitas - respondeu, com aquela voz baixa e controlada. Como se selasse um contrato.

**

A estrada se alargava à medida que deixávamos a zona rural. A cidade de Santa Amália ainda estava longe, escondida pelas curvas da serra e pela neblina que descia dos morros.

Ele pigarreou de leve antes de voltar a puxar assunto.

- Sabe... tenho notado que você evita conversar comigo. Algo que não é comum entre os membros dessa congregação. Todas as irmãs são bem... acolhedoras.

Seu tom era quase casual. Mas havia algo ali. Um leve toque de provocação. Ou talvez apenas curiosidade.

- Não foi intencional - respondi. - Eu tenho estado mais... recolhida.

- Por algum motivo específico?

Hesitei. O silêncio se prolongou antes que eu respondesse.

- Às vezes... o passado pesa um pouco. - Digo dando ombros.

Ele virou levemente o rosto na minha direção, atento.

- Você fala com saudade... ou arrependimento? - Sua testa se enruga, preocupação estampada em suas feições.

- Com ambas, talvez.

Respirei fundo, desviando o olhar para a janela embaçada pela chuva. Vi meu reflexo distorcido no vidro, e por um instante me senti fora de mim.

- Eu tinha uma irmã - comecei, sem planejar. - Quer dizer... tenho. Mas...

Interrompi a frase com um suspiro longo. Meus dedos se entrelaçaram sobre o colo, úmidos e frios.

- Ela era diferente de mim. Livre. Cheia de vida. De opinião.

Ele parece interessado no que eu estou falando, desde que ele me olha de soslaio para não perder a rua de sua vista mais claramente está prestando atenção em mim.

- Ela também viveu aqui com vocês?

Balancei a cabeça.

- Não. Isabel nunca se adaptaria a esse lugar. - Sorri de canto, mas era um sorriso triste, que não chegou aos meus olhos. - Faz dois anos que... - respirei fundo outra vez - ... que ela desapareceu.

O silêncio se instalou no carro, denso como neblina. Ele não disse nada imediatamente. Apenas apertou um pouco mais o volante, os nós dos dedos sobressaindo sob a pele.

- Lamento muito - ele disse por fim, com uma voz mais baixa, quase íntima. - Foi há muito tempo?

Eu cerro os dentes, uma tristeza incandescente pulsando através de mim.

- Fazem três anos. - A pressão quente queimou atrás dos meus olhos, mas contive a frágil represa de lágrimas.

Ele permaneceu em silêncio por um instante, como se medisse as palavras antes de soltá-las. Depois, inclinou um pouco a cabeça, os olhos fixos nos meus com uma estranha intensidade.

- Perdas assim deixam espaços... que às vezes a fé não consegue preencher - disse, com suavidade. - Mas isso não significa que você esteja sozinha.

Foi gentil. Quase bonito. Mas algo em mim se encolheu com aquelas palavras, como se ele tivesse tocado um ponto vulnerável sem saber muito bem o que fazer com ele. Era um gesto de compaixão, claro. Algo que qualquer padre faria. E, no entanto, não parecia natural vindo dele. Como se a ternura fosse um papel ensaiado, e ele ainda estivesse aprendendo suas falas.

Eu forcei um pequeno aceno com a cabeça, mas havia uma tensão entre nós - tênue, quase invisível - que fazia aquele momento pesar mais do que deveria.

- Foi em uma viagem. Estávamos em outro país, eu e ela... Foi nossa última vez juntas.

Eu não sabia por que estava contando aquilo a ele. Talvez fosse pela forma como ele ouvia - ou talvez porque, de alguma maneira, eu estivesse hipnotizada. Havia algo nele que me desarmava. Ele não soava como alguém tão puro quanto deveria. E sei que é errado pensar isso de um padre... mas, mesmo assim, não conseguia evitar. Seus olhos - tão intensos, tão fixos - me olhavam como se enxergassem através da minha pele. Como se pudessem ver coisas que nem eu mesma compreendia. Era perturbador. Fascinante.

- Foi depois dessa viagem que você decidiu entrar para a vida religiosa?

Assenti devagar.

- Não foi uma decisão simples. Mas, na época, parecia... a única coisa certa a se fazer. Além do mais, foi algo que meu pai sempre desejou para mim. E, no fundo, também para Isabel.

Ele soltou uma risada breve e baixa, quase inaudível - mas havia algo nela que me fez franzir o cenho. Como se achar que meu pai poderia decidir minha vocação fosse, para ele, simplesmente patético. Ou talvez eu só estivesse interpretando demais. Mas o jeito como ele se ajeitou logo depois, como se vestisse novamente a máscara do bom padre, me deixou com a sensação de que aquela reação havia escapado sem querer.

- E agora? Ainda parece a única coisa certa? - perguntou, sem olhar para mim. - Quero dizer... é uma escolha grande demais para ser feita com base apenas na expectativa de outra pessoa. Mesmo que esse alguém seja seu pai.

Havia um toque de escárnio ali - sutil, mas afiado como uma faca de lâmina fina. Por um momento, fiquei em dúvida se ele realmente estava debochando ou se só parecia assim por causa do tom preciso, controlado, com que falava. Mas ele não explicou. Apenas esperou.

Virei o rosto para ele, surpreendida pela franqueza da pergunta. Ele mantinha os olhos firmes na estrada, como se não tivesse dito nada demais.

- Às vezes, sim - respondi, com sinceridade após uma pausa. - Em outras... eu me pergunto.

Ele sorriu de novo, mas permaneceu em silêncio. Era um sorriso quase imperceptível, contido - mas mesmo assim, pareceu satisfeito. Como se a minha dúvida, para ele, fosse a única resposta honesta.

**

E enquanto o carro descia pela curva estreita da serra, eu me perguntava como aquele homem - frio, preciso, aparentemente contido - conseguia, com tão poucas palavras, me fazer dizer tanto.

A chuva fina havia dado uma trégua quando o jipe entrou na pequena cidade de Santa Amália, em Minas Gerais. O céu continuava nublado, como se o tempo estivesse prendendo a respiração.

Padre Andrei manobrou o carro com precisão diante do depósito de alimentos, uma construção simples, com telhado de zinco e paredes pintadas de verde-claro já desbotado.

- Eles devem estar nos esperando - comentou, desligando o motor.

- Espero que sim. Com a estrada daquele jeito, não quero ter vindo à toa. - limpei a mão na minha saia, e descemos juntos. A calçada estava molhada, e o cheiro de terra úmida misturado ao de café fresco vindo da padaria da esquina era reconfortante de algum modo.

Dois rapazes do depósito se aproximaram. Andrei explicou rapidamente o que tinham encomendado, e então começamos a ajudar com as caixas. Não era exatamente parte das minhas funções, mas ali fora, longe da rotina da Basílica, eu me sentia quase... comum. Ou ao menos menos vigiada.

- Está se adaptando bem? - eu perguntei, colocando uma caixa de papel higiênico no porta-malas.

Ele assentiu, empilhando pacotes de arroz.

- Sim. Apesar da umidade e das paredes precisarem de pintura, a Basílica é bela. Tem uma alma antiga. - Digo encarando-o.

            
            

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