Capítulo 4 Destruir o mundo

Os dias que se seguiram pareciam se arrastar para Lara, como se o tempo tivesse ganhado um peso diferente desde que Matteo passara a frequentar a mesma cafeteria. Não havia combinações entre eles, tampouco promessas ou intenções declaradas. Apenas coincidências que, aos poucos, pareciam se tornar intencionais.

Ela fingia não notar, mas seu coração sempre acelerava quando o via entrando no pequeno salão, com aquele mesmo andar seguro, o olhar atento, como se carregasse o mundo nos ombros. Matteo nunca chegava abruptamente. Sempre surgia em silêncio, como uma sombra que observava tudo sem ser notada de verdade.

Lara já o conhecia de longe. Sabia que ele pedia sempre café preto, que nunca tocava o celular enquanto estava ali, que lia jornais em papel - um hábito raro nos dias digitais.

Ela fingia estar mergulhada nos livros ou anotações de trabalho, mas a verdade era que seu olhar escapava sempre para ele, discreto, faminto por decifrar aquele enigma de terno impecável.

Na terceira semana daquela rotina silenciosa, o acaso - ou o destino, talvez - decidiu aproximá-los de novo.

Chovia fino naquela tarde, o céu cinza se debruçando sobre a cidade. Lara, como sempre, se refugiou na cafeteria, desta vez sentando-se perto de uma prateleira de livros abandonados, num canto menos iluminado.

Ela estava folheando um livro de capa gasta quando sentiu a presença. O cheiro inconfundível do perfume masculino, uma combinação de notas amadeiradas e especiarias discretas, denunciou antes mesmo de ela levantar os olhos.

Matteo se sentou à mesa ao lado, com um jornal em mãos. Mas, diferentemente das outras vezes, ele falou primeiro.

- Sempre sozinha. Por escolha ou hábito? - perguntou, sem desviar o olhar do jornal.

Lara sorriu de leve, mantendo os olhos no livro.

- Um pouco dos dois, talvez. Gosto da minha companhia.

- Isso é raro. A maioria das pessoas teme o silêncio.

Ela fechou o livro e o observou, o queixo apoiado na mão.

- O silêncio revela mais sobre nós mesmos do que gostaríamos de admitir. Mas também... é no silêncio que se escondem as coisas que não queremos encarar.

Matteo abaixou o jornal lentamente e a encarou. O olhar dele era tão profundo que por um momento ela se sentiu despida de qualquer máscara.

- O que o seu silêncio esconde, Lara? - perguntou, com a voz baixa.

Ela ficou surpresa com a pergunta direta, mas não desviou o olhar.

- Talvez... saudades de coisas que nunca vivi. Vontades que nunca tive coragem de realizar.

Matteo se inclinou ligeiramente para frente, interessado.

- Como o quê?

Lara suspirou, jogando uma mecha de cabelo atrás da orelha.

- Viajar sem destino, conhecer pessoas diferentes, experimentar coisas que nunca tentei. Às vezes sinto que vivo uma vida muito... segura.

- Segurança é superestimada - ele comentou, e havia amargura na voz. - O que é seguro, de verdade?

Lara concordou, pensativa.

- E você? O que o seu silêncio esconde?

Por um instante, Matteo ficou sério. O rosto já marcado pelo semblante austero pareceu ainda mais sombrio.

- Algumas portas, quando abertas, não podem ser fechadas - respondeu apenas.

Ela não insistiu. Intuía que por trás daquela frase havia um mundo que ela não compreenderia, um mundo que ele não podia - ou não queria - compartilhar.

Naquele dia, conversaram um pouco mais. Matteo não era um homem de muitas palavras, mas cada frase parecia escolhida a dedo, como se o cuidado fosse uma armadura. Falavam sobre livros, cidades que Lara queria conhecer, pequenas histórias da vida cotidiana.

Quando a chuva cessou, Matteo olhou para o relógio e se levantou.

- Eu já vou.

Lara sorriu, achando engraçado como ele sempre anunciava suas partidas como se pedisse desculpas.

- Nos vemos por aí, Matteo?

Ele hesitou, olhando para ela de forma mais suave.

- Se o acaso quiser.

Ela riu baixo.

- Acho que o acaso tem sido bastante persistente ultimamente.

Matteo não respondeu, apenas sorriu de canto antes de sair, deixando Lara com o coração batendo descompassado.

Os dias seguintes foram preenchidos por pequenos encontros. Um esbarrão na porta de uma livraria, um café tomado sem compromisso, uma troca breve de palavras num parque onde Lara gostava de ler aos domingos.

Nunca havia uma intenção declarada. Matteo parecia sempre reprimir a vontade de se aproximar mais. Lara, por sua vez, começava a se dar conta de que desejava ver além do que ele mostrava.

Havia um muro entre eles. Invisível, mas presente.

Ela sentia que Matteo carregava peso nos ombros, um fardo que o tornava mais velho do que sua aparência sugeria. Seus olhos, por mais firmes que fossem, tinham sombras de algo que ela não sabia nomear.

Certa noite, depois de um desses encontros casuais, Lara se pegou deitada na cama, encarando o teto do quarto. O coração inquieto.

Quem era Matteo, afinal? Por que parecia tão triste, mesmo quando sorria? Por que se escondia atrás de respostas vagas?

Ela nunca tinha sido de se interessar tão facilmente por alguém. Sempre buscara homens simples, de presença leve, e nunca se permitira aventuras com desconhecidos. Mas Matteo não era simples. Era um enigma, e cada dia ela queria mais decifrá-lo.

Decidiu que não perguntaria mais sobre a vida dele. Se Matteo quisesse contar, o faria no tempo dele.

E, ainda assim, ela sabia: havia perigo em cada passo que dava em direção a ele.

Matteo, em sua fortaleza solitária, também não conseguia parar de pensar nela. Sabia que já estava envolvido, por mais que lutasse contra. E isso o irritava profundamente.

Ele era chefe de um império perigoso, onde uma escolha errada podia custar tudo. Já tinha visto amigos sumirem por se envolverem com mulheres que não pertenciam àquele mundo.

E Lara? Ela era tudo o que ele não podia ter. Uma mulher limpa, cheia de sonhos, com olhos que ainda acreditavam na beleza do mundo.

Ele não a merecia.

Mesmo assim, Matteo não conseguia ficar longe. Já havia instruído um de seus homens de confiança a mantê-la segura, observando de longe. Tinha medo que o simples fato de estar próximo dela atraísse perigos.

Em noites de insônia, Matteo se perguntava:

"E se eu contasse a verdade? E se ela fugisse? Melhor assim. Melhor que ela vá antes que seja tarde."

Mas sempre que a via, quando ela sorria ou mexia nos cabelos distraidamente, algo nele implodia. Matteo não queria afastá-la.

E isso era seu maior erro.

O tempo passou. As semanas se transformaram em meses, e os encontros tornaram-se parte da rotina de ambos. Ainda sem promessas, sem intimidade além das conversas e cafés, mas com um fio invisível os conectando.

Havia uma tensão crescente no ar, algo não dito, não tocado.

E então, numa tarde fria de outono, Lara resolveu quebrar o pacto silencioso.

Encontraram-se, mais uma vez, no acaso de uma praça vazia. Ela estava sentada num banco, com um livro aberto no colo. Matteo se aproximou devagar.

- Está fugindo de mim? - ela brincou, sem tirar os olhos das páginas.

- Talvez de mim mesmo - ele respondeu sério.

Ela fechou o livro e o encarou.

- Por que você sempre foge, Matteo? Eu sei que você sente algo. Eu sei que não é só acaso...

O olhar dele pesou sobre ela. Lara sentiu o coração acelerar.

- Eu sinto. Mas não deveria.

- Por quê? - ela insistiu, o peito apertado.

Matteo hesitou, buscando palavras que não a afastassem para sempre.

- Porque eu sou perigoso.

Ela franziu o cenho.

- Isso não me assusta. Eu só quero a verdade.

Ele deu um passo à frente, a respiração pesada.

- Não posso. Não ainda.

Lara sentiu a frustração tomar conta, mas se conteve.

- Então não se aproxime, Matteo. Se for só para fugir depois, não venha mais.

Ela se levantou, o coração em pedaços. Caminhou para longe, sem olhar para trás.

Matteo permaneceu ali, imóvel. Sabia que deveria deixá-la ir. Sabia que era o certo.

Mas cada passo que Lara dava para longe dele parecia uma ferida aberta.

Ele tinha que escolher. Ou a deixava ir de vez... ou se preparava para destruir o mundo dela - e o seu próprio - com a verdade.

            
            

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