Clara soltou uma risada seca e sem humor que arranhou sua garganta. Arrependida. O sistema e Heitor pareciam compartilhar o mesmo vocabulário. Ele achava que ela era um cachorro a ser treinado? A ser punida com negligência e recompensada com a presença de outra mulher?
Por anos, cada ato cruel foi reformulado como um "teste". Um teste de sua paciência, sua devoção, seu amor. Ela havia passado em todos, sacrificando sua dignidade, sua arte, seu próprio ser no altar do suposto afeto dele. E qual foi sua recompensa? Ser deixada sozinha em uma cama de hospital enquanto ele desfilava com sua rival.
O amor que ela havia estimado, a paixão profunda e não dita em que acreditava, havia morrido. Não fora uma morte súbita. Foi uma decadência lenta e agonizante, uma morte por mil cortes. Este foi apenas o golpe final e fatal.
No dia em que recebeu alta, uma advogada que encontrou online a encontrou em um café tranquilo. Os papéis foram redigidos rapidamente. Divórcio. Divisão de bens. Ela tinha direito a metade de tudo adquirido durante o casamento, uma soma impressionante.
A advogada, uma mulher perspicaz chamada Dra. Almeida, ergueu uma sobrancelha. "Tem certeza de que não quer contestar por mais? Dadas as circunstâncias-"
"Não", disse Clara com firmeza. "Eu só quero o que é meu por lei. E quero que seja feito discretamente."
Dra. Almeida assentiu, sua expressão profissional, mas com um toque de simpatia. "Ele precisará assinar. Será difícil se ele não estiver disposto."
"Ele vai assinar", disse Clara, um plano já se formando em sua mente.
Ela voltou para a mansão enorme e vazia que fora sua jaula dourada. Heitor não estava lá. Ele não fora ao hospital nenhuma vez depois daquele primeiro dia. Suas redes sociais, no entanto, estavam estranhamente ativas. Fotos dele e de Gisela em galas de caridade, em restaurantes exclusivos, em uma viagem de fim de semana para Campos do Jordão. Gisela postava uma foto correspondente momentos depois, uma taça de champanhe na mão, seu sorriso triunfante.
[Notificação de Conexão Mental: Uma excelente estratégia. Heitor está te deixando com ciúmes para te lembrar do que você pode perder. Ele está esperando que você desmorone e ligue para ele.]
Clara olhou para as fotos em seu celular, para o rosto frio e bonito de Heitor, e não sentiu nada. Nem ciúme. Nem mesmo dor. Apenas um vazio profundo e oco.
Ela andou pela casa, uma estranha em seu próprio lar. Começou a fazer as malas, não de suas roupas, mas das coisas que a ligavam a ele. A primeira pintura que ele comprou dela, uma pequena peça abstrata na qual ela derramou seu coração. Ela a encontrou em um depósito, coberta por um lençol empoeirado, escondida atrás de um conjunto de tacos de golfe. Ele nunca a pendurou.
Ela encontrou a delicada caixa de música de porcelana que ele lhe dera no primeiro aniversário. Deveria tocar sua peça clássica favorita. Ela a abriu. Estava quebrada. Provavelmente estava quebrada há anos.
Cada objeto era um testamento de sua negligência. Ela juntou todos eles - as fotos, os presentes, o buquê seco de seu casamento - e os levou para as grandes lixeiras ao lado da casa.
Um por um, ela os jogou dentro. O som de uma moldura de foto quebrando, de porcelana se estilhaçando, foi estranhamente satisfatório. Era o som de suas ilusões se quebrando.
[Notificação de Conexão Mental: Aviso! A destruição de itens sentimentais será interpretada por Heitor como uma rejeição direta. O amor dele está ligado a esses símbolos. Ele ficará profunda e irreparavelmente magoado.]
"Ótimo", Clara sussurrou para o ar vazio. "Espero que fique."
Quando se virou para voltar para dentro, um carro esportivo preto e elegante entrou na garagem. Heitor.
Ele saiu do carro, seus olhos pousando imediatamente nela, depois na lixeira transbordando. Uma expressão furiosa cruzou seu rosto.
"O que você está fazendo?", ele perguntou, sua voz baixa e perigosa.
"Limpando", Clara respondeu, seu tom uniforme.
Ele caminhou em sua direção, sua figura alta irradiando uma raiva palpável. "Essas são... nossas coisas."
"São apenas coisas, Heitor", disse ela calmamente, encontrando seu olhar sem vacilar.
Ele parecia querer dizer mais, sua mandíbula tensa, suas mãos cerradas em punhos. Mas naquele momento, outro carro parou. Gisela.
Ela saiu, carregando uma pequena caixa de aparência cara. "Heitor, querido, você esqueceu suas abotoaduras na minha casa esta manhã."
Seus olhos piscaram entre Heitor e Clara, um pequeno sorriso triunfante brincando em seus lábios. Ela podia sentir a tensão e se deliciava com ela.
A raiva de Heitor pareceu diminuir, substituída por uma irritação cansada. Ele não queria essa cena. Não agora.
"Obrigado, Gisela", disse ele, sua voz seca. Ele pegou a caixa dela sem olhá-la. Virou-se para Clara, sua expressão uma máscara de fria indiferença mais uma vez. "Nós conversamos sobre isso mais tarde."
Ele então se virou para Gisela, sua voz suavizando o suficiente para ser um tapa na cara de Clara. "Deixe-me acompanhá-la até o seu carro."
Ele acompanhou Gisela de volta ao veículo dela, a mão na base de suas costas, um gesto de intimidade casual que ele nunca oferecera à própria esposa.
Clara os observou, uma memória surgindo com clareza dolorosa. Uma noite, anos atrás, ela teve febre alta. Pediu a ele que lhe trouxesse um copo d'água. Ele olhou para ela de sua mesa, irritado com a interrupção, e disse para ela mesma pegar.
O amor que ele não se dava ao trabalho de mostrar a ela, ele dava tão livremente a uma mulher que estava usando como um peão.
[Notificação de Conexão Mental: Um desvio magistral. Ele está removendo Gisela da situação para lidar com você em particular. Este confronto é apenas para seus olhos.]
Ela não precisava da notificação para lhe dizer o que ele estava fazendo. Ela não se importava mais. Amor que precisava ser explicado, que precisava ser "testado" e "provado" através da dor e da humilhação, não era amor de forma alguma. Era apenas uma desculpa para a crueldade.
Ela deu as costas para eles, entrou na casa silenciosa e fechou a porta. O som da raiva dele, da presença de Gisela, das notificações insistentes, tudo desapareceu. Havia apenas silêncio, e nele, a batida silenciosa e constante de sua própria determinação.