- Tá maluca? Tu não tem força nem pra levantar da cama, quer limpar chão? Me ajuda, Senhor...
Levei ela pro sofá com cuidado, sentando ao lado. As mãos dela tremiam. A pele tava ainda mais amarelada que ontem. Os dedos finos, como se a carne tivesse indo embora devagar. A respiração dela parecia pesada, arrastada.
Peguei uma toalha, enxuguei o rosto dela, e fui buscar um copo de água com açúcar. Aquela imagem ficou presa na minha cabeça, como uma ferida que não cicatriza.
Ela tava piorando.
Rápido demais.
Voltei pra cozinha, respirei fundo e limpei o chão com raiva. Raiva de mim. Raiva do mundo. Raiva de não ter um único centavo pra pagar o que ela precisa. Cada gota de água que eu enxugava era um grito preso na garganta.
Quando terminei, fui até a estante, peguei a pastinha azul onde estavam os exames, os pedidos médicos, as receitas. Abri tudo no chão da sala. Espalhei.
Era como espalhar a nossa ruína.
A última consulta particular custava R$ 380.
O exame mais urgente, aquele que o SUS ainda não liberou, R$ 1.260.
A quimioterapia inicial? Só R$ 8.400 - e isso era o pacote "básico".
- Como é que eu vou tirar isso de onde, meu Deus? - sussurrei, apertando os papéis com força.
A dinda me olhava quieta do sofá, com um olhar que doía mais que qualquer palavra.
- Você tá tentando, Rubi... eu sei. Mas se não der... tá tudo bem, minha flor...
- Não fala isso! - levantei, jogando os papéis de volta na pasta. - Não diz que tá tudo bem, porque não tá! Eu não aceito perder você, ouviu? Eu não vou!
Ela só sorriu. Um sorriso fraco, resignado, como quem já entendeu que talvez o tempo dela aqui estivesse acabando.
E aquilo me matou.
Mais tarde, fui até a farmácia buscar o remédio pra náusea. O cara do caixa me olhou com pena quando eu pedi pra anotar no fiado.
- Rubi, esse mês já tá cheio, gata...
- Eu sei. Mas é que ela precisa disso pra ontem. Eu juro que até semana que vem eu pago.
Ele assentiu, contrariado, e me deu o remédio num saquinho amassado. Agradeci, engolindo o orgulho junto.
Na saída, vi dois caras parados na esquina. Não conhecia um deles, mas o outro era o Gordo Léo, segurança do Rei. O olhar dele bateu em mim e ficou. Não era assédio. Era como se ele tivesse analisando. Marcando.
Na hora, o coração acelerou.
Passei direto, mas senti o peso do olhar até virar a rua. Alguma coisa me dizia que o nome Rubi já tava rodando onde não devia.
Em casa, dei o remédio pra dinda, preparei um arroz com ovo e sentei no sofá pra comer. Fingi estar bem. Fingi gostar da comida. Fingi que tudo era normal.
Mas dentro de mim, eu tava gritando.
Meus dedos tremiam. A boca tava seca. O mundo parecia estar me encurralando pelos quatro lados.
O celular vibrou no meu colo.
Mensagem da Vanessa.
> "Me desculpa por ter te falado aquilo. Eu só... não sei mais o que fazer."
"Mas acho que a proposta era pra você mesmo, Rubi. A mulher disse seu nome hoje. Disse que 'a garota do sutiã' já chamou atenção há um tempo."
Meu estômago revirou.
O garfo caiu do meu colo no chão.
A dinda me olhou, preocupada, mas eu sorri como quem mente por instinto.
- Só uma mensagem boba, dinda. Nada demais...
Mas por dentro, o gelo já começava a se formar.
Já não era mais uma ideia solta.
Era real.
Eles sabiam quem eu era.
Eles tavam me olhando.
E se eu fosse a escolhida?
Se fosse o meu corpo, a minha coragem, o meu limite posto à venda?
Apertei os olhos com força, tentando afastar aquele pensamento.
Mas o nome dele ficou ecoando na minha cabeça como sentença:
Rei.