O silêncio da casa só aumentava o nó no estômago. Continuei andando até chegar no quarto da minha dinda.
Foi ali que encontrei a cena.
Vanessa tava sentada no canto do quarto, as costas encostadas na parede e os joelhos grudados no peito. Chorava baixinho, tremendo. A mão esquerda sangrava - um corte feio, ainda escorrendo.
- Vanessa! - corri até ela, agachando ao seu lado. - Meu Deus, o que aconteceu aqui?
Ela não respondeu nada. Só me abraçou com força, o choro aumentando no meu ombro. Abracei ela de volta sem pensar. Ficamos assim por um tempo, no chão, grudadas como duas meninas que só tinham uma à outra no mundo.
- Ei, ei... tá tudo bem - falei baixinho, alisando o cabelo dela. - Chora, pode chorar. Eu tô aqui, Vanessa. Não precisa segurar nada.
Ela chorou por mais alguns minutos, até a respiração ficar mais calma.
- Olha pra mim - segurei o rosto dela. - O que foi que aconteceu? E esse corte na tua mão?
Ela respirou fundo, enxugou o rosto com o dorso da mão boa e me contou tudo. A demissão. A discussão com a patroa. A humilhação. E por fim, o aviso do médico.
- Se o tratamento da mamãe não começar logo... - a voz dela falhou. - O câncer vai avançar. Vai espalhar. E aí não vai ter mais volta.
Engoli seco. Puxei ela de novo pro meu peito e beijei sua cabeça.
- Vai ficar tudo bem.
- Como, Rubi? Como é que vai ficar tudo bem? Eu perdi meu emprego! Como é que eu vou pagar esse tratamento? Me diz!
- Eu ajudo - falei firme. - A madrinha também é minha mãe. Eu tenho um dinheiro guardado. Não é muito, mas dá pra começar.
- Você não pode! - ela tentou recusar. - Esse dinheiro é seu, Rubi...
- Posso, sim. E vou. O dinheiro é meu, né? Então agora ele vai ter um bom uso. Vai salvar a vida de quem criou a gente!
- Você realmente não existe... - ela sorriu entre lágrimas e me abraçou de novo. - Eu te amo, garota.
- Me larga, sua grudenta! - empurrei ela, rindo.
- Ogra!
- Agora vamos dar um jeito nessa zona - levantei e olhei em volta. - Tu fez um caos aqui dentro, hein?
- Eu sei... desculpa, tá? - ela fez bico. - É que aquela veia nojenta me deixou puta, e pra não voltar lá e socar aquela idosa piolhenta, descontei nas coisas aqui em casa.
- Ótima ideia! - falei debochada. - Tua inteligência me impressiona, viu?
- Vai à merda! - ela riu e me mostrou o dedo.
Foi aí que olhei de novo pra mão dela. Ainda sangrava.
- Levanta, que eu vou fazer um curativo nessa tua mão, sua mula.
- Você é tão má comigo!
- Tadinha, né? - puxei ela até a cozinha. - Vou considerar isso como um elogio.
- Pois não considere! - rebateu, revirando os olhos.
Peguei a caixinha de primeiros socorros em cima da geladeira, coloquei no balcão e limpei o corte dela com álcool e algodão. Ela fez careta na hora.
- Ai! Tá ardendo!
- Bem feito! É pra aprender a não quebrar a casa toda da próxima vez!
Depois do curativo, passamos a tarde toda organizando a casa. Varremos, lavamos, passamos pano. Recolhi vidro, joguei fora os cacos, ajeitei as cadeiras. Quando o sol já tava se despedindo, o relógio marcava quase seis da tarde.
- Tô morta! - ela se jogou no sofá, toda mole.
- Nem me fale - joguei o balde no canto da cozinha. - Isso tudo é culpa tua, sua burra!
- Eu já sei, sua chata! Precisa repetir isso a cada cinco minutos?
- Precisa! - falei, olhando o celular. - Agora deixa eu ir, que eu tenho um encontro com o Tuka.
Ela virou a cara na hora.
- Que foi? - perguntei, cruzando os braços. - Dessa vez tu nem falou nada e já fez essa cara.
- Agora eu sou obrigada a gostar dessa pessoa cujo o nome eu nem gosto de pronunciar? Eu não gosto dele. Nunca gostei. E nunca vou gostar.
- Mas eu gosto. E ele também gosta de mim.
- Humhum. Gosta tanto... - revirou os olhos de novo.
- Que tu tá querendo dizer com isso? - perguntei, séria. - Fala logo.
- Você sabe o que eu acho dele, Rubi. Pra mim, ele só tá te usando. Tu é nova, ele é mais velho, experiente. Você se ilude fácil. E eu não sei se você não percebe... ou se só finge que não vê.
- Nada a ver, tu tá viajando! - neguei com a cabeça. - Enfim, deixa eu ir. Preciso me arrumar.
- Depois não diz que eu não avisei - ela falou com os ombros.
Me acompanhou até a porta. Mandei um tchauzinho e desci a ladeira até minha casa.
Mas o que ela disse ficou martelando.
Será que eu tava mesmo cega?
Ou será que, no fim das contas, era mais fácil fingir?