Faz dois anos que minha mãe virou uma estrelinha no céu. Foi tudo rápido demais. Um dia ela tava bem, no outro, internada. E no outro, já não tava mais comigo. Desde aquele dia, a vida me jogou no mundo sem aviso. Tive que crescer. Trabalhar. Pagar aluguel, água, luz... tudo sozinha. Uma criança vestida de adulto.
E meu pai... bom, ele nunca existiu na minha história.
Sempre tive curiosidade. De saber como era a voz dele, o rosto, o jeito de andar... Mas minha mãe sempre desviava. Toda vez que eu tocava no assunto, ela desconversava. Mudava de tema. Às vezes até ficava nervosa. Quase como se o nome dele fosse pecado.
Ela me dizia que ele tinha nos abandonado. E que não valia a pena saber mais. E eu... acreditei. Ainda acredito, talvez.
Mas parte de mim ainda quer entender por quê.
Por que ele nunca veio atrás de mim?
Por que nunca ligou?
Nem uma carta. Um bilhete. Um sinal.
Nada.
Dezenove anos em silêncio.
Nos últimos meses, isso tem martelado ainda mais na minha cabeça.
E se ele aparecer um dia?
E se ele for pior do que eu imagino?
Ou pior ainda: e se ele for alguém que eu conheço, mas não sei?
- Em mulher? - a voz do Tuka me tirou do transe.
- O que? - olhei pra ele, ainda meio longe.
- Caralho, tô falando contigo há mó tempão e tu nem ouviu metade do que eu falei, caraí! - ele disse, visivelmente bolado.
- Desculpa, eu tava distraída... - fiz bico, tentando amenizar. Ele só negou com a cabeça.
O garçom chegou e colocou a pizza e o refri sobre a mesa. Tuka se ofereceu pra cortar a pizza, mas eu recusei. Cortei eu mesma e coloquei um pedaço pra mim e outro pra ele.
Ele pegou a pizza direto com a mão, sem falar nada. Eu também fiquei quieta. Ajeitei o garfo e a faca, cortando minha fatia devagar.
No fundo, já tava cansada dessas briguinhas idiotas.
Terminei de comer e senti o celular vibrar no meu colo. Peguei e vi algumas mensagens não respondidas. Uma delas era da Vanessa, perguntando se eu ia dormir lá.
Tuka levantou sem dizer nada e foi até o caixa pagar.
Eu fiquei ali, mexendo no Instagram só por mexer.
Sem ânimo pra nada.
Nem pra ele.
A gente tá nessa faz uns quatro meses.
Fica daqui, fica de lá. Sem rótulo, sem aliança, sem nada.
Mas basta ele me ver falando com outro, que vira um leão.
Já falei mil vezes: quando ele quiser botar uma aliança no meu dedo, eu viro "dele".
Mas enquanto isso... não sou de ninguém.
Ele subiu na moto e ficou me esperando, olhando pra tudo, menos pra mim.
Esse homem é uma caixinha de surpresas... e de problemas.
- Se quiser, eu vou a pé. Não precisa me levar, se for de má vontade - falei me virando e saindo.
- Bora logo, não tô com tempo não, pô.
- Então adianta, Arthur. Eu não fiz nada pra você tá com essa cara de cu. Eu faço tudo pra te agradar, mas só por causa de uma besteira você já fica de cara feia. Sem tempo pra briga hoje, na moral.
Ele só me encarou. Não falou nada. Acelerou a moto como se aquilo fosse uma resposta.
- Filho da puta - murmurei, virando de costas.
Comecei a subir o morro sozinha, na direção de casa. O frio batia forte. Ainda bem que eu tava com o moletom dele.
Ironia, né?
O cara me deixa falando sozinha, e mesmo assim eu me agarro no cheiro dele no meu casaco.
Às vezes acho que eu sou burra.
Ou carente demais.
Ou as duas coisas.
Passei em frente ao beco da Rua 6, vi o Gordo Léo de novo.
Ele me olhou. Não era aquele olhar safado. Era o mesmo de outro dia.
Olhar de quem sabe alguma coisa.
Olhar de quem tá esperando o momento certo pra dizer.
Abaixei a cabeça, fingindo não ver.
Mas alguma coisa dentro de mim gritava que tudo ia mudar.
Logo.
E talvez não tivesse volta.