Capítulo 6 Capitulo 03

Em 2007 conheci Rafael pela internet. Eu ainda tinha um perfil de dominadora no Orkut e fui fazendo algumas amizades por lá, entre as comunidades. Nos falávamos sempre. Ele era muito educado, solícito e servil. Mas algo soava estranho para mim. Falei da minha vontade de ser dominadora profissional, e a partir desse momento ele ligou-se ainda mais a mim. Pelo MSN, me tratava como uma verdadeira deusa, e eu ria, dava gargalhadas da cara dele. Ainda não percebia o quanto era importante para ele estar na minha presença, eu ser sua Deusa e agir como tal. Não levava nada a sério.

"Que tudo seja perfeito para a Senhora, Senhora!" "Tá tudo legal, Rafael. E contigo?" "Agora, na sua presença divina, sinto-me muito melhor." "Hum... Sei." "Gosto de conversar com a Senhora. É cheia de luz, de divindade, me trata como eu devo ser tratado, um reles escravo. Sempre sonhei com isso, com sua beleza, imponência. A Senhora é." "Mas tu nunca esteve comigo, não fala besteira. Como pode me adorar tanto assim? É meio imbecil, sabia?" "Eu sou seu imbecil, Senhora. Seu móvel. Seu animal. Seu nada. Só me importa a sua felicidade, o seu bem-estar." "Não fala besteira. Que burro!" "Sim, seu burro de carga." "Tá, chega, me deixa em paz. Fica aí escrevendo tuas besteiras que eu tenho uns arquivos para corrigir." E ele escrevia sem parar. Falando da minha divindade, do quanto eu era poderosa, do quanto ele era indigno de beijar os meus pés e de como admirava minha coragem em querer ser dominadora profissional, levar o negócio a sério. Eu voltava, lia. Xingava. Lia, xingava. Ria. Às vezes ficava meia hora sem responder, ele ali, cada vez mais servil, mais escravo, mais insistente. Quanto mais eu o ignorava e o xingava, mais ele escrevia maravilhas e se inspirava. "A Senhora é minha Musa, minha Deusa, minha Algoz, tudo para mim." "Ah, tá certo... Ok. Lá vem tu de novo com essa bobajada toda." "Me permita discordar, Senhora... apenas por um momento. Me concede?" "Sim, mas fala coisa com coisa... Isso de Deusa pra lá, Deusa pra cá me soa tão falso... Tu nem me conhece. Dá pra entender o que eu tou falando, não é? É muito blablablá, muita coisa sem sentido." "Sim, Senhora. Entendo claramente. Mas, para mim, que sou um ninguém, faz sentido. A Senhora é meu sentido. Quero ser seu objeto. Apenas um objeto. Como a Senhora sabe, farei meu mestrado aí em Porto Alegre. Gostaria que me concedesse a graça de estar em sua presença, e lhe mostrar o quanto sou grato pela sua existência e o quanto sou mesmo um nada, um ninguém. Sou apenas um objeto, uma peça a ser moldada por suas mãos." "Mas ah, meu querido... quero só ver. Se tu é um ninguém mesmo, é assim que eu vou te tratar." "Sim, Senhora! É isso mesmo que eu imploro que faça. Me use, me molde, me trate como um lixo, um cachorro, um mordomo, como quiser! Me bata, me tire sangue. Sou o escravo da Rainha e só à Rainha devo servir. Não tenho vontade própria." Larguei de mão e voltei para os meus arquivos. Não ia me irritar com aquele bosta. Que droga era aquela de que ele estava falando? Eu realmente não conseguia me comunicar com ele, tamanha distância entre nós. E o ignorava, com toda vontade de ignorar. Aquele era um homem que sempre soube da sua submissão, sempre teve consciência do seu lugar. Quem não percebia o meu lugar, imatura, era eu. Mas tive a sorte de conhecê-lo e a dádiva de ser sempre natural e livre para tratá-lo como eu queria. Ele via que eu o ignorava porque queria ignorá-lo. E era isso que ele me provocava. Ele sentia que eu me irritava e mais falava comigo, eu xingava, e nesse vaivém discursivo o processo foi crescendo. É uma microfísica, uma relação que existe somente a partir de si mesma, do entrelaçamento de desejos. Eu nunca estaria aqui, hoje, nessa cidade, vivendo como Dominatrix, um cotidiano de mulher dominadora, sem a existência e persistência de quem desejava mais que a própria vida ser dominado, usado, anulado. Usando a vontade própria de anulação, os submissos inflamavam minha vontade de poder. Meus amigos-namorados, meus primeiros escravos. Eles me entronaram, me colocaram a coroa na cabeça, e todo povo tem a Rainha que merece. Naquela época isso ainda não era muito claro para mim, mas sempre fui natural. Livre. Espontânea. Essa é a minha semente de mostarda. Lembro de quando marcamos nosso primeiro encontro, depois de ele implorar muito, mas muito mesmo. Para mim seria totalmente falso, eu não estava nem um pouco a fim de ouvir besteiras e aquele palavreado formal, e certamente o xingaria de novo se fosse necessário. Eu sairia do trabalho e nos encontraríamos. Meu dia havia sido bom, e seria legal encontrar o tal "escravo". Quando desci as escadas para a rua, lá estava ele. Me olhou e reconheceu, já havíamos trocado algumas fotos. Ficou em absoluto silêncio, parecia assustado, tenso. Bastante tímido. Cumprimentei-o como uma pessoa qualquer, não vi nenhuma importância naquilo. Era um carinha normal, no final das contas. Dei um olá. "Trouxe um presente para a Senhora." Me entregou um livro, de sebo. Não me importei por ser usado, achei bacana da parte dele trazer um presente. E o livro parecia ser bem interessante. Acenei com a cabeça para que me acompanhasse até um shopping próximo, para conversarmos. Eu falava pouco, e ele não parava de olhar meus pés. A todo momento encolhia os ombros, ensaiava uma frase, e nada. "E então, Rafael", sentamos, "como você está?" "Eu estou fascinado, Senhora." "Ah, tu fala Senhora mesmo", e ri. "Claro, Senhora. É assim que deve ser tratada." "Relaxa, eu acho estranho. Fala só Dommenique." "Por favor... Senhora Dommenique", insistiu, "Senhora Dommenique". "Que babaquice é essa? Nem meu escravo tu é, não temos nenhuma relação. Que imbecil!" E ri. Ele riu também, parecendo satisfeito. "Sim, sou um imbecil mesmo. Sou o que a Senhora quiser." A voz dele era baixa, rasa, servil. Um pouco trêmula. Era um cara magro, moreno, simples. Tênis, calça jeans e camisa polo. Um perfuminho gostoso. Peguei o cardápio e escolhi uma bebida. "Você bebe?" "O que a Senhora ordenar." "Traz dois chopes pra gente?", pedi ao garçom. Logo veio e largou os copos na nossa frente. "Obrigada." Ele não dizia nada, apenas ficava me olhando, hipnotizado. "Vamos brindar a mim!" "Vamos, à Senhora!" "Não, espera!" Ele ia levar o copo à boca e ficou estático, os lábios entreabertos. "Me dá esse copo aqui." Agi no impulso. Juro que pensei duas vezes... faço ou não faço? E fiz. Juntei a saliva e, vendo que ele continuava hipnotizado, dei uma bela cuspida que afundou na espuma cremosa da bebida. Vi que ele fechou a boca e apertou os lábios, abriu mais os olhos e aproximou-se mais da mesa, ansioso. "Agora sim, pode beber. Bebe que eu quero ver." "Sim, Senhora!" Ele deu um gole da bebida. "Não, bebe tudo de uma vez." Ele baixou os olhos e pegou o copo. Bebeu até a ultima gota, levando pra dentro do corpo o cuspe viscoso. Eu dava risada. "Meu Deus do céu... Hahahaha... tu bebeu meu cuspe!" "Eu faço o que a Senhora mandar." Em cinco minutos ele já estava mais falante, e eu bebi meu chope devagar, observando cada palavra, cada gesto dele. Falamos sobre vários assuntos; mal eu abria a boca, ele já fechava a dele, atento. Comecei a perceber o quanto ele era mesmo submisso, o quanto tinha visto em mim a mulher perfeita. Na despedida, falei: "Me manda um e-mail quando chegar em casa, contando sobre hoje. Tu é um cara legal. Quero que venha me ver de novo." Ele não exultou, não demonstrou nada. Queria de alguma forma se afastar cada vez mais, deixando a alegria só para mim. "Vou cumprir suas ordens, Senhora. E espero seu chamado, a qualquer momento." E se foi. Quando cheguei em casa, o e-mail já estava na caixa de entrada: O dia em que A vi. Depois de bastante tempo ansiosamente esperando, o dia em que a Senhora me concederia a oportunidade de encontrá-La pessoalmente pela primeira vez havia chegado. As horas transcorriam lentamente, o sangue parecia correr quente, o relógio não parecia deixar as horas passarem, sentia-me docemente ansioso, uma sensação angustiante e ao mesmo tempo plena, o sentimento de que eu estava indo ao encontro de meu destino... Ela. Horas antes eu havia escolhido a roupa que vestiria, tomara um banho bem cuidadoso, esperando muito que a Senhora considerasse que eu dava o valor que Lhe era devido, que a Senhora perceberia que eu tentara com muito esforço mostrar-me como algo digno, linda que era, divina, maravilhosa, minha Deusa e Senhora. Eu estava muito ansioso, e estava também muito feliz. O momento chegou. Estava eu ali, no lugar que a Senhora determinara que eu deveria me colocar para que me reconhecesse como o escravo que eu literalmente prometera ser em minha alma e meu corpo. Em dado instante eu A vi. Alta, de porte divino, uma Mulher que torna difícil encontrar as palavras certas, pois não há um substantivo ou adjetivo que Lhe seja completamente digno... "Perfeição", "Sublime", "Superior", "Deusa", todas são boas palavras, mas a Senhora era mais como César: Seu nome daria origem para mim ao significado que apenas a Senhora traduzia. Seu nome significava algo que apenas Dommenique, e a presença de Dommenique, eram capazes de traduzir. Seu nome era Dommenique e também um título, era poder em seu sentido mais puro e profundo. Loira, alta, esbelta, de corpo lindo e maravilhosamente feminino, Seu porte elegante e Sua postura majestosa, que exalava controle e poder apenas pela Sua presença... essa visão quase me levara ao chão. Eu senti uma vontade imensa de me prostrar no chão, ali, rastejar até a Senhora e implorar para que permitisse que eu beijasse seus pés calçados pelo peep-toe de salto alto. Com muito custo, controlei-me, porque eu compreendia que a Senhora não toleraria sentir que eu podia estar agindo por conta de um prazer que fosse meu e não apenas o prazer único, total e exclusivo Seu. A Senhora não manifestou desejo de que eu agisse dessa forma, prostrando-me e rastejando, e eu sabia que então eu não tinha permissão sequer para agir como o escravo que eu ansiava ser. Seus sapatos vermelho-escuros faziam um belo contraste com a pele muito branca dos Seus pés, que os sapatos permitiam admirar ainda que apenas um pouquinho através do detalhe do peep-toe. As unhas, lindas, faziam-me intimamente exultante, que desejo senti de jogar-me ao chão diante delas! E todas essas ideias, pensamentos, deram-se em um momento tão curto, fugaz, pois eu jamais me permitiria portar-me de forma indigna diante da Senhora... de forma que tudo então fora observado em um relance, que no entanto pareceu uma doce eternidade para mim. Apresentei-me à Senhora, agora em corpo e alma, fisicamente falando, e a Senhora generosamente sorriu com os olhos, sem presentear-me diretamente com a visão de sua linda boca - meu Deus, como é Linda!!! - a sorrir... Coloquei-me diante da Senhora muito angustiado por não saber como portar-me sem que parecesse medíocre ou metido... Senti que a Senhora percebeu meu nervosismo, e Sua doce voz transmitiu-me confiança e segurança... sem que em nenhum momento eu deixasse de perceber que a Senhora era minha Dona. Conversamos sobre muitas coisas, não apenas BDSM, que foi o que inicialmente nos fez manter contato... A Senhora é uma Mulher culta, atualizada, inteligente. Realmente, eu soubera disso quando conversávamos em vezes anteriores, por exemplo, sobre arte em suas várias vertentes, da pintura à dança, de História e de tantos e tantos assuntos de forma que eu já sabia o quanto a Senhora era uma Mulher refinada. Confesso que, mesmo sabendo disso, sentindo isso, fui docemente surpreendido ao perceber que era muito mais do que eu sequer imaginara antes. E eu sei, e a Senhora sabe que eu sabia disso profundamente, que a Senhora para mim já era a perfeição muito antes de descobrir o real significado de "perfeição" nessa primeira oportunidade de encontrá-La. Foi desse momento em diante que eu assimilei que a Senhora em si era Ela mesma. Não era uma projeção, não era uma imagem. Ela era o Seu título, Seu nome definia algo por si só: Ela. Seus lindos cabelos loiros, Seus belos olhos azuis, de uma cor que me fazia perdido de tanta beleza, e que eu sentia exalarem um poder tão forte que eu conseguia admirar apenas por instantes muito breves, antes de baixar os olhos, envergonhado que eu estava de ser apenas um escravo, e poder admirar a beleza e a aura de uma Deusa encarnada Nela. E vendo-A tão linda, eu confirmei mais uma vez o quanto queria poder ser Seu escravo total... Pensamentos de servidão passavam sem parar por minha mente. Eu sentia também uma vontade muito grande de estar em condição de servi-La de forma completa, de renúncia total, inclusive com abstinência sexual absoluta, de proibições de todos os tipos emitidas pela Senhora. E confesso que envergonhei-me quando senti que diante da Senhora o SM seria muito mais doloroso para mim, como homem, pois havia uma feminilidade exalando tão forte, tão sensual, que eu sentia desejo, muito desejo e admiração. Mesmo que eu lutasse contra ele para que pudesse sentir apenas o que a Senhora quisesse pra mim, senti muito medo de transparecer que eu podia estar ali não por Ti exclusivamente, mas por um desejo de servir em si... um desejo de servir ao meus desejos, coisa que não imaginava poder existir na forma como sinto e vejo o SM. Eu queria estar diante de Ti apenas para Ti, para o deleite Dela, para o desejo Dela, exclusivo... e confundia-me ao perceber que, se não fosse um escravo, e Ela não fosse uma Senhora para mim, se eu nunca tivesse sido submisso, eu iria muito ansiar por ser também digno de Ti, mesmo que em uma vida exclusivamente baunilha. A Senhora me fez reconciliar algo que em mim era dividido, baunilha e SM, fazendo-me sentir completo, mesmo que essa sensação de completude trouxesse junto a compreensão de que minha renúncia seria muito mais profunda do que eu sequer imaginara. Eu renunciaria ao SM e ao mundo baunilha, se me permitisse servir aos Seus desejos e caprichos exclusivos. Naquele dia, compreendi que pela Senhora eu me faria eunuco, coisa pela qual nunca ansiei ou desejei, caso a Senhora assim desejasse para mim. Beber sua saliva foi um presente inesquecível. E percebi também que os limites que eu pensara que poderiam ser impossíveis de superar, ultrapassar, caíam por si só naquele instante. Eu queria renunciar a tudo por Ti. Meu nome, vida pessoal, família, tudo. Apenas pela graça de servi-La. E, se essa vida de renúncia implicasse inclusive a renúncia a meus desejos SM mais profundos e antigos... Nossa, eu queria entregar tudo para a Senhora e viver apenas a vida escrava que Lhe conviesse. Com todo respeito, seu escravo. Lembro que nem no MSN eu entrei naquela noite, o que era sagrado. Ficava em conversinhas virtuais e participando de discussões nos fóruns sobre o sexo dos anjos, o que era certo e errado, se a dominação profissional era válida, se era legal ou não usar liturgia, sobre o linguajar e os códigos. Vi o absurdo de todo aquele mundo, escravos virtuais, algumas dominações ensaiadas, com palavras ensaiadas, um fingindo que falava a verdade, o outro fingindo que acreditava. Que porcaria é essa? Eu vou é ter um escravo de verdade. Desliguei o computador, e naquela noite sonhei que descia a minha rua de paralelepípedos vestida num catsuit, cabelos presos. Era noite e não havia ninguém ao meu redor, só as casas fechadas e todos dormindo. E eu, linda e imponente, calçando as famosas botas que tinha ganhado há alguns anos e que estavam no fundo do armário, a passos largos e firmes. Sozinha.

                         

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