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Day 14.5
Quando eu disse que esperava cercos militares no meu bairro, juro que falei com uma parte de mim rezando para que não fosse tão já.
Esses desgraçados trabalham rápido demais para o meu gosto... E ainda instauraram um toque de recolher, mesmo sem ter acontecido nada demais para isso até agora...
Descendo do ônibus, fui recebido por dois cães (literalmente), daqueles legais, que não (costumavam) latir para mim quando eu passava por ali. Mas não hoje. E foi aí que começou o problema.
Nenhum deles me atacou, o que foi bom, mas o latido deles atiçou o que vinha depois...
Três soldados vinham de frente para mim, com rifles de assalto em punho. Apontaram as armas para mim e ordenaram que eu me ajoelhasse.
'O que você está fazendo na rua a essa hora moleque? Procurando problemas?' Disse um deles, enquanto abria minha bolsa e jogava todo conteúdo no chão. Me doeu ouvir o som do meu laptop batendo contra o asfalto, mas graças aos deuses, como vejo agora, não houve nenhum dano (milagrosamente).
'Não, só estou chegando do trabalho. É nesse horário que chego, sempre.' Respondi, o que não foi mentira, mas tive que me esforçar para colocar meu maior tom de inocência nessa frase.
'Hm...'
E o diálogo se desenrolou. Eu disse que trabalhava em uma faculdade no Xaxim, que saio cedo e volto tarde, e todas as minhas respostas eram recebidas com 'Hm's. Até que um deles deu a entender que o toque de recolher era REALMENTE para ter pego as pessoas de surpresa...
Fico me perguntando como os passageiros que estavam no ônibus deviam estar recebendo essa novidade...
Checaram minha carteira de trabalho e disseram que eu deveria ir correndo para casa, pois nenhum deles queria que um "bom cidadão" levasse um tiro "por engano" ... Então disseram que eu corresse, e que corresse RÁPIDO!
Comecei a correr tão rápido quanto consegui, ouvindo um som de asfalto estilhaçando.
Não precisei nem olhar para entender que um deles havia atirado no asfalto, com uma mira tão precisa que QUASE arrancou um pedaço do meu calcanhar.
Ou que eu tive uma sorte tão absurda que aquele tiro errou o alvo...
29/09/2015 – Day 15
Hoje meu dia nem vale a pena ser mencionado...
Além de os mesmos problemas de ontem para sair do bairro e ir trabalhar (que vão se repetir de novo na volta para casa, com certeza), tudo está uma bagunça tão grande que não dá nem vontade de descrever... Vejo gente doente de um lado e do outro, militares andando aqui e ali fazendo cadastramento de pessoas para sabe-se lá o que (se minhas teorias estiverem realmente certas, provavelmente é para algum futuro centro de refugiados), e cada vez mais o mundo ao meu redor parece desabar em milhões de estilhaços...
Sei que tenho fibra para sobreviver aos próximos dias, mas não posso negar que isso é stress demais para uma só pessoa...
30/09/2015 – Day 16
É exatamente 15:42 e eu estou na loja, ouvindo a chuva bater no telhado e agradecendo aos deuses por não estar doente. Não por ser uma coisa ruim, o que obviamente é.
Mas porque hoje aconteceu algo que eu não esperava que acontecesse tão cedo...
Militares invadiram o ônibus, e levaram todas as pessoas de máscaras com eles, além de fazer um checkup minucioso em cada um dos passageiros...
Havia um comboio parado na entrada de cada terminal por onde passei (por isso cheguei atrasado), e em cada um deles os ônibus paravam e os passageiros eram obrigados a ceder amostras de sangue e fazer exames.
Uma senhora teve um ataque de histeria e ficou um bocado agressiva, mas dava para ver que era só uma crise histérica. Um ataque de nervos...
Ainda assim, um soldado atirou na cabeça dela.
Ela morreu na minha frente, caindo como um saco de batatas, sem vida, no piso frio do terminal do Portão...
Me obriguei a olhar, pois parte de mim, e espero que de vocês também, sabe que isso é só a ponta do iceberg, e que as coisas só estão começando a piorar.
Se eu não olhasse, quem poderia garantir que eu conseguiria aguentar o que aconteceria nos próximos dias? Ou nas próximas semanas?
Dei graças aos deuses por meu sangue estar limpo de qualquer coisa.
O médico de campo até perguntou se eu fumava, e quando eu respondi que sim e ele me entregou os resultados, podia jurar que ouvi um 'Aquele cara é um monstro' quando passei pela corrente de segurança.
Fui o mais rápido que pude sem parecer suspeito para o ponto. Não ia ficar ali para descobrir se iam ou não me perguntar qualquer outra coisa.
Gratidão é algo que deve ser demonstrado, por isso nos dias que virão, por mais escuros que sejam, vou demonstrar minha gratidão por estar vivo e por não estar doente.
Vou mostrar minha gratidão da forma que for...
Day 16.5
Não sei o que fazer... O que quer que tenha acontecido, o que quer que eu tenha feito lá atrás, juro por todos os deuses que são e que ainda serão, eu não fiz por mal.
Era ele ou eu...
Já passa das duas da manhã e eu ainda não consegui pegar no sono por causa das lembranças do que aconteceu...
Havia um soldado montando guarda na cerca de segurança montada na entrada/saída do meu bairro, parecia ter dezenove anos de idade, loiro de olhos acinzentados. Ele parecia um monstro de farda, tão grande que era.
Se aproximou e me perguntou o que eu estava fazendo na rua naquele horário e se eu estava fazendo alguma coisa errada, pois já passara um bocado da hora de recolher, que era às 22:00. Eu ia pegar minha identificação no bolso, "presente" daqueles soldados da outra noite, que me fizeram correr como se minha vida dependesse disso.
Eles me haviam dado a identificação na manhã seguinte, quando eu estava saindo do bairro para ir trabalhar.
'Owowow! Calma aí!' O soldado disse, apontando uma pistola para meu rosto e chegando mais perto. 'Mais um movimento e eu estouro seus miolos...'
Eu disse que só ia tirar minha identificação do bolso, quando ele me acertou com a coronha da arma no meu queixo, me fazendo ver estrelas. 'Eu não sei quem você é, mas não vai fazer nenhuma gracinha hoje, seu porra!'
Logo depois, colocou a arma na minha testa, e naquele momento, tudo o que consegui lembrar foi da cena no ônibus, vários dias atrás, quando o cara tentou assaltar o cobrador e eu impedi. E da outra noite, em que o outro cara roubou o celular de uma moça na minha frente.
Pensei comigo mesmo, naquele microssegundo que antecede algo derradeiro como a morte, se era realmente assim que ia acontecer...
Se eu ia morrer mesmo ali, voltando do trabalho, por causa de um soldado que não soube fazer direito seu trabalho...
Naquele minúsculo instante, eu notei muitas coisas que antes não notava. Atrás dele, do lado de fora do presídio, queimava uma enorme fogueira, que os soldados usavam como pira funerária para os detentos. O céu, nublado em algumas partes, aberto em outras, da minha cidade... Lembrei de como aqueles soldados nem se importavam mais em esconder que estavam retirando corpos daquela prisão, queimando-os a olhos vistos, revelando à todos que quisessem ver que alguma coisa horrível estava acontecendo.
Foi então que decidi que não seria assim que eu ia acabar. Não seria assim que eu iria morrer.
Não para terminar naquela pira junto com criminosos que eu nem sequer conhecia e nunca nem sequer senti a mínima vontade de conhecer.
Eu não acabaria ali...
Então, naquele instante que mais pareceu uma eternidade comprimida em um único momento, que sucedeu toda minha vida e mais alguma coisa passando diante dos meus olhos, senti de uma forma que julgo impossível de descrever, o dedo daquele soldado se apertando cada vez mais no gatilho.
Mas não deixei que ele vencesse ao terminar aquele mínimo movimento, instintivamente me jogando para o lado, quando o tiro soou alto, bem ao lado da minha orelha, quase me deixando surdo, enquanto eu praticamente ouvia tudo ao meu redor e dentro de mim.
A adrenalina corria e pulsava junto com o sangue em minhas veias a medida que meu corpo tocava o chão, rolava para o lado e olhava para o garoto.
Quando senti minhas costas tocando o asfalto frio e molhado da chuva que esfriou o dia que terminava, levantei meu pé direito com todo o impulso que meu corpo conseguiu acumular do torque na queda, e atingi o nariz dele em cheio. A sola do meu coturno estava tão fina que pude sentir toda a cartilagem quebrando e afundando, seguido pela cor do sangue jorrando por seu rosto. Antes que ele pudesse disparar mais um tiro que fosse, levantei enquanto ele caía de joelhos e, de alguma forma, tirei a pistola dele.
Por alguma razão, não vi reforços chegando. O que me deixou intrigado de certa forma.
Nunca mais vou baixar a guarda dessa forma na minha vida.
Quando olhei na direção do presídio, senti o peso de pelo menos noventa quilos de músculo se chocando contra o meu corpo, me derrubando mais uma vez, fazendo com que minha cara batesse com força no asfalto.
Me virei quando ele puxou meu ombro para que o olhasse nos olhos, enquanto ele tentava arrancar a arma da minha mão, que a segurava o mais firme que meus músculos permitiam.
Senti um arroubo de força que jamais havia sonhado até aquele momento, e num movimento involuntário, que provavelmente deveu-se aos instintos primitivos de sobrevivência, meu braço direito levantou-se e curvou-se, grudando a pistola na têmpora dele.
E puxei o gatilho...
Quando você atira em alguém, o projétil entra por um lado, abrindo uma cavidade mínima, girando a uma velocidade extremamente alta. Saindo pelo outro lado, abrindo um buraco enorme quando disparado à queima-roupa, como foi feito.
O corpo do soldado tombou sem vida sobre mim, e eu fiquei ali, parado e ofegando, por provavelmente alguns minutos, horas...
Não sei dizer, mas nenhum socorro veio.
Depois desse tempo que não consegui contar, levantei com os olhos fixos na fogueira enorme que brilhava logo em frente. Só uns cem, duzentos metros talvez.
Levantei o corpo sem vida daquele desafortunado sobre meus ombros, e comecei a andar, parte de mim perguntando o motivo de ninguém ter aparecido, outra parte completamente entorpecida, o que deve ser normal quando se mata alguém pela primeira vez, na direção do que seria o descanso final daquele adolescente...
Quando lembrei da arma dele, notei que ela ainda estava na minha mão. Já não estava mais fumegando nem quente, e a chuva havia voltado a cair forte, e eu estava ensopado.
Enfiei a arma na parte da frente da calça e segui andando, tudo ao meu redor passando em câmera lenta, meu cérebro ardendo enquanto se mantinha funcionando, numa tentativa desesperada para me manter acordado e o mais lúcido possível, ao menos enquanto não chegava em casa.
Agora já passa das cinco da manhã, e preciso dar um jeito de descansar.
Chamei a Ana para sair, e não sei como vou olhar na cara dela depois dessa noite...
Na verdade, não sei nem o que vai acontecer quando o dia amanhecer, nem como vou olhar para a cara de qualquer um dos meus amigos agora...
Juro pela minha alma, que talvez nem tenha mais salvação agora, que essa arma que está agora ao lado do meu laptop enquanto escrevo essas linhas, vai me acompanhar por quanto tempo eu puder permitir, e que isso nunca mais vai se repetir se eu puder evitar.
Mas isso não deve ser de muita ajuda, afinal...
Eu sou um assassino...