Capítulo 8 08. Planos

02/10/2015 – Day 18

Eu decididamente não sei o que está acontecendo na minha vida, nem no meu mundo... Que dirá no meu bairro...

Acordei ontem com o coração na boca, temendo que a qualquer momento pudessem brotar soldados à minha porta, arrombando tudo e me levando em custódia...

Mas, estranhamente, nada disso aconteceu...

Levantei, tomei um banho, me arrumei, mesmo não conseguindo comer nada... E me pus a caminho.

Quando saí pela cerca de segurança, havia dois soldados novos lá, e a mancha de sangue no chão ainda permanecia, mas eles não me olharam com suspeita, apenas me deram sinal para seguir, o que fiz completamente perplexo, mas determinado a sair dali o mais rápido possível.

Então agora tinha que seguir o mais rápido possível para o centro, pois era dia de ir no cinema com Ana, e começar a discutir os detalhes do plano de extração, sobre o qual tínhamos conversado pouco tempo atrás, já que eu não podia deixar que nada mais acontecesse fora do que fosse bom para todos que estivessem perto de mim.

Ana tinha me contado que também haviam pontos de checagem nas entradas e saídas do bairro onde ela morava, e que também haviam instaurado um toque de recolher, o que apenas me deixou mais determinado a tirar ela dali. Pois fosse o que fosse que estava perto de começar, só seria pior, para todos que estivessem dentro das zonas de "segurança".

A sessão de cinema havia atrasado, devido a problemas com soldados que ali estavam, montando guarda no shopping, para garantir que ninguém doente entrasse, e isso fez tudo demorar muito mais do que gostaríamos. Mas conseguimos pegar um bom lugar (na verdade a sala de cinema estava tão vazia que os únicos ocupantes éramos eu, Ana e um cara solitário lá na frente, enquanto ficávamos no fundão...).

Nunca vi uma ironia tão grande na minha vida como naquela sessão de cinema, pois era um filme sobre um mundo distópico, assolado por uma doença da qual não parecia haver nenhuma chance de cura...

A vida imita o vídeo...

Enfim, tudo foi agradável, muito embora eu não tenha contado para ela sobre o que aconteceu na noite anterior. Não sabia qual seria sua reação, então apenas deixei isso ficar lá no fundo da minha mente enquanto discutíamos o plano e víamos o filme.

Mas nada parece ser tão bom quanto realmente deveria...

Tivemos que voltar correndo para onde ela fazia curso, pois alguém nos seguia, e eu não podia deixar ela se envolver em qualquer uma das situações as quais eu estava me acostumando. Pelo menos não ainda...

O resto do dia foi agradavelmente parado.

Mas hoje o mundo acordou com um céu mais escuro que o normal... Lembrando que ninguém estava a salvo do que quer que fosse nesse bravo mundo novo, e que não havia mais diferença entre crescer e esquecer.

O mundo havia perdido a inocência, da mesma forma que as pessoas logo a perderiam...

Uma ligação completamente inesperada me acordou hoje, e quando ouvi a voz conhecida, até indesejável da mãe de Sandra, dizendo que todo o quarteirão havia sido bombardeado, e que só ela havia sobrevivido...

Merda... Eu quis morrer, viver, matar... Qualquer coisa... Mesmo que agora eu sinta esse estranho vazio dentro de mim...

Ao menos ela está a salvo em algum outro mundo.

Longe de tudo o que pode acontecer e de tudo o que eu me tornei.

O dia de hoje se resume a um caminhar infindável, esperando que essa tarde logo dê lugar à noite, e que esta noite dê lugar a um novo dia, tão rápido quanto os deuses me permitirem.

Não vou deixar mais ninguém que eu amo se machucar...

03/10/2015 – Day 19

O treino hoje teve plateia especial...

E começou de forma diferente também...

Havia soldados por toda a praça Nossa Senhora de Salette, literalmente esperando que chegássemos para treinar. E na moral, isso foi um saco. Mas pelo menos eles foram legais, ou pelo menos alguns.

Tiraram amostras de sangue para ver se não estávamos doentes, e ficaram ao redor da praça, vendo o treino e avaliando as pessoas que passavam por ali.

O surto da doença já se alastrou por uma grande parte da cidade, e os militares estão segregando os que não são imunes e os que não estão doentes...

Isso não significa que o pessoal não doente, porém não-imune não esteja livre para andar por aí, mas eles passam todos os dias por exames dos militares, e eu não consigo entender como tudo conseguiu se espalhar tão rápido...

Deve ser alguma coisa solta pelo ar, pra ser tão rápido assim. E seja o que for, deve ter sido tão bem produzido que duvido totalmente que haja alguma cura...

Sim, não consigo acreditar que seja uma doença "natural".

Tem que ser algo produzido pelo homem...

Enfim, o treino foi cansativo, com lutas quase ininterruptas, diversão e bons papos. Mas terminou meio cedo, já que não havia muita gente presente, então fui direto para o shopping Curitiba, encontrar um amigo com quem tinha alguns negócios a tratar.

Chegando lá, depois de ter a perturbadora sensação de que havia alguém me seguindo, acendi um cigarro e esperei na entrada, até um Ford Fusion completamente preto chegar e abrir a porta de trás. Meu celular bipou com uma mensagem de texto que pedia para que eu entrasse no carro.

Juro que ainda não entendo o porquê de ele fazer tanta cena...

'Você algum dia vai cansar de fazer cena, Lenhador?', falei para meu amigo, que sentava no banco do motorista, olhando sério para a frente enquanto finalmente nos púnhamos a caminho.

'Nem ferrando.' respondeu em tom enfático. 'Você não diz que sua vida parece um filme? Então, estou ajudando na produção oras...'

Okay, ele tinha um ponto...

Lenhador era um cara mais ou menos da minha idade, pele bem levemente bronzeada, mas o desgraçado era branco, com uns olhos castanho-esverdeados absurdos. Sério, não queira que ele te olhe zangado.

Mas ele é a criatura mais hilária e gente boa que você pode ter a sorte de conhecer, se for legal com ele... Mais baixinho que eu, tem um porte de lenhador (um dos motivos para o apelido) com uma barriga digna de um bom bebedor, e olha que ele bebe MESMO, e tem uma força absurda...

Seguimos então para o parque Barigui, onde havia uma muralha de segurança (juro que se eu puder escolher minha próxima vida, quero ser rico, só para poder desfrutar dessas mordomias e seguranças, mesmo sabendo que eles não vão durar muito...) onde dois militares montavam guarda. Paramos, mostramos nossas identificações e nossas novas marcas nos pulsos. Elas sinalizavam que éramos imunes, não sei como, mas okay...

Ao menos isso permite que não precisemos mais passar pelos incontáveis exames a cada vez que saímos para a rua.

Os militares nos deixaram passar sem revistar o carro, o que foi algo absurdamente bom, visto que se o Lenhador tivesse seguido o plano corretamente, deveria haver pelo menos uns dois quilos de qualquer coisa que pudesse dar cadeia no porta-malas. Ou pelo menos era pra ter...

Sabe deuses que tipo de distração teríamos que usar para sair dali.

Viramos mais umas curvas até sair do parque e seguir pela BR, depois de uns poucos quilômetros rodados, chegamos ao destino.

Ou melhor, EU cheguei ao destino, pois o plano consistia em Lenhador me deixar ali, ir até algum canto longínquo do parque, plantar seja lá que merda ele tenha levado no porta-malas, e KABOOM!

Se eu tiver sorte, dá pra fazer tudo no tempo certo.

Liguei para a Ana, e ela atendeu sem nenhum sinal de sono ou preguiça na voz. Já estava acordada e esperando o resgate.

Gosto quando planos dão certo.

Cheguei ao portão de entrada da casa dela alguns minutos depois, e ela já me esperava com sua mochila nos ombros e uma mala de viagem do lado. Preciso dizer que essa é uma das únicas coisas que acho realmente desnecessárias em mulheres...

Muita coisa pra carregar.

Mas enfim... Não era hora de reclamar. O relógio estava correndo e não nos permitia nem tempo para um breve oi, por mais breve que fosse.

Peguei-a pela mão, alcei a mala de viagem nas costas, e nos pusemos a correr para o lado da rodovia.

Quando chegamos na passarela, uns cinco minutos de corrida depois... BTOOM!!!

Seja lá o que era aquilo que Lenhador tinha trazido, era potente o suficiente para ver a fumaça preta subindo ao céu na distância, e juro que senti uma leve onda de calor fustigando meu rosto.

Já disse que tenho medo desse cara? Não? De qualquer forma, não era tempo de pensar nisso. Corremos como se fôssemos demônios fugindo de uma igreja enquanto eu via os militares todos se encaminharem até onde havia acontecido a explosão (estou com a impressão de que ou eles são organismos que só se movem em grupos, ou que eles realmente têm ordens muito precisas de não se separarem. Seja lá o que for, eles com certeza sabem algo que eu não sei, e isso faz um plano se formar na minha cabeça, mas não para agora.)

Passamos por uma das traves que barrava a muralha de segurança, apertei o botão de dentro da guarita e o segundo portão foi se abrindo lentamente. Passamos por ele sem muito problema, e o Fusion do Lenhador nos esperava do lado de fora.

Realmente amo quando planos dão certo...

Entramos, e só conseguimos finalmente ofegar de cansaço e tentar recuperar todo o fôlego quando já estávamos quase perto do terminal do Capão Raso, depois de várias voltas para ter certeza de que ninguém nos seguia.

Ainda estou sentindo a adrenalina correndo em mim, mesmo agora, às 20:08 da noite, enquanto Ana dorme aninhada no meu colo. Não sei o que ela tem com o meu colo, mas está bom assim...

Não quero acordá-la para me deixar mais confortável. É melhor que ela durma bem e confortavelmente, pois o pior ainda está por vir, e a merda toda só começou agora a bater de verdade no ventilador...

Qualquer pessoa que consiga dormir confortavelmente ainda, é bom que aproveite cada segundo desse sono dos justos.

05/10/2015 – Day 21

Ontem serviu pra mostrar que não importa o quanto o mundo esteja virado de ponta-cabeça, ainda é possível ter bons momentos se for com alguém legal, alguém que importe, ou pode até mesmo ser possível dizer que seja a pessoa certa...

Foi um dia para se aproveitar e sair por aí, afinal, não é por todo o mundo estar indo à merda que vamos nos lamentar por sermos dois dos poucos imunes existentes. Se há uma boa forma de ser grato por aquilo que temos, é usando para algo bom. E naquele momento não havia nada melhor a se fazer com essa imunidade que não sair por aí e descansar.

Ana já estava em segurança, o bairro parecia tranquilo, e ninguém veio atrás de mim sobre nada do que aconteceu nos últimos dias...

Até aquele tal Cão Negro nem sequer deu as caras. Por mais que isso seja estranhamente preocupante... Foi um domingo realmente incrível.

E hoje também está sendo um dia até que normal, levando em conta tudo o que anda acontecendo. Mas com essas chuvas fortes que tem acontecido ultimamente, a energia anda caindo muito, e isso vai ser um problema, tanto para mim por esse diário, quanto para o resto das pessoas, por causa dos saques que podem acontecer em bairros mais violentos ou qualquer coisa desse gênero.

A coisa está calma, mas não quer dizer que o clima não esteja prestes a entrar em ebulição.

Tenho certeza que logo vai acontecer qualquer para desencadear isso... Não dá pra esperar muita coisa dessa Curitiba que tanto amamos...

E que eu estou aos poucos aprendendo a odiar...

            
            

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