A noite caiu pesadamente sobre Lisboa, envolvendo as ruas estreitas num manto de humidade e escuridão. Os paralelepípedos escorregavam sob os pés descalços de Beatriz Silva enquanto ela corria, desviando das sombras, agarrada ao pequeno lenço que o irmão mais novo deixara encharcado de suor.
A tosse do menino ainda ecoava em seus ouvidos, áspera, entrecortada, como um aviso desesperado. Não havia tempo a perder. Eu mal podia esperar pela manhã, não quando Tomas estava se revirando na cama, queimando de febre.
A única esperança era sua mãe. E sua mãe trabalhava naquela noite na grande mansão Moura, do outro lado do bairro alto, onde as lanternas pareciam mais preocupadas em iluminar as paredes douradas dos ricos do que os passos urgentes dos pobres.
Beatriz sabia que não deveria se aproximar. "Nunca passe pelos portões sozinha", sua mãe a alertava repetidamente. Os Mouras não toleravam interrupções, muito menos visitantes indesejados vindos dos becos.
Mas o medo por seu irmão era mais forte que qualquer regra.
Quando ele chegou em frente aos altos portões de ferro forjado, seu coração batia como um tambor no peito. Não consegui entrar pela entrada principal. A luz das lâmpadas, os murmúrios elegantes que flutuavam de dentro, tudo era um lembrete de que ela não pertencia àquele mundo.
Ele procurou a pequena passagem por onde os criados às vezes saíam para fumar. Um canto esquecido em um antigo muro de pedra. Ela subiu o melhor que pôde, rasgando sua saia surrada, e caiu do outro lado, em um jardim silencioso, perfumado de jasmim.
Ela avançou agachada, com o coração na garganta, seguindo pelos corredores laterais até chegar à porta dos fundos dos aposentos dos criados. Não deve demorar muito. Ela simplesmente encontraria sua mãe e imploraria para que ela voltasse para ela.
Isso é tudo. Invisível.
Mas o destino tinha outros planos naquela noite.
Ao entrar em um corredor escuro, ele esbarrou em alguém.
-Que diabos...?! - rosnou uma voz masculina, antes de agarrá-la pelos braços.
Beatriz olhou para cima, ofegante. Diante dela, iluminado apenas pela luz de um abajur, estava um jovem de cabelos escuros e desgrenhados, olhos intensos, paletó desabotoado e um sorriso torto que não prometia nada de bom.
Era Eduardo Moura.
E ela o interrompeu no pior momento possível.
Atrás dele, uma jovem criada estava tremendo, com os olhos arregalados e assustados. A cena era clara como o dia: Beatriz havia explodido em algo que ela não deveria ver.
-Quem é você? "Eduardo exigiu, cravando os dedos nos braços dela. Seus olhos a percorreram de cima a baixo, demorando-se em suas roupas gastas, suas mãos sujas, sua respiração trêmula.
Beatriz queria falar, mas as palavras ficaram presas na garganta. Ela lutou, aterrorizada, ciente de que uma única acusação poderia condenar não apenas ela, mas também sua mãe.
"Me solte", ele finalmente conseguiu dizer, com uma voz que não parecia a sua.
Por um momento, algo brilhou nos olhos de Eduardo. Algo entre curiosidade e desafio.
Ele a soltou abruptamente, como se sua pobreza fosse contagiosa, mas não deu um único passo para trás.
-O que você está fazendo aqui? - ele perguntou, sua voz agora mais baixa, mais perigosa.
Beatriz engoliu em seco. Eu não podia trair a empregada. Ele não podia admitir que havia invadido a propriedade.
Então ele mentiu.
-Estou procurando... minha mãe. -Sua voz tremeu. E ele acrescentou, implorando com os olhos: Por favor.
Eduardo inclinou a cabeça, avaliando-a, como um gato brincando com um rato.
Naquele momento, uma voz feminina, elegante e seca, foi ouvida do fundo do corredor.
-Eduardo? O que está acontecendo aqui?
Beatriz sentiu um arrepio de ameaça real percorrer sua espinha.
Sra. Moura.
Se ela fosse descoberta, ela não seria simplesmente demitida. Eles poderiam acusá-la de roubo. Ou pior.
Eduardo olhou para ela uma última vez, seus olhos brilhando de diversão... e algo mais, algo que ele mesmo parecia não entender.
Então, com um gesto rápido, ele a puxou em direção a uma porta lateral e a empurrou para um quarto escuro, fechando-o atrás dela pouco antes de a Sra. Moura dobrar a esquina.
Beatriz, presa na escuridão, encostou a testa na porta, tremendo, enquanto ouvia o murmúrio distante de vozes e passos.
Eu cruzei uma linha invisível naquela noite.
E algo lhe dizia que não haveria mais volta.