Heyva O'Brien.
"A memória é o perfume da alma." - George Sand
Heyva O'Brien.
"A memória é o perfume da alma." - George Sand
A luz dourada do entardecer invade o quarto como um visitante gentil, preenchendo os espaços com um calor suave que dança nas paredes de tom pastel. Os raios oblíquos formam padrões hipnóticos no assoalho de madeira, iluminando as partículas de poeira que flutuam pelo ar como pequenas estrelas à deriva. É curioso como algo tão simples, como a luz do sol, pode fazer o coração se sentir momentaneamente em paz. Estou deitada na cama, sentindo cada pequena vibração do meu corpo, cada batida hesitante do meu coração que parece contar os segundos de um relógio implacável. A fragilidade é uma companhia constante agora, enroscada junto ao meu corpo como um gato silencioso, mas não é ela que mais pesa. O que realmente dói, o que despedaça minha alma a cada respiração, é o que deixo para trás.
Meus olhos vagueiam pelo quarto, absorvendo cada detalhe como se tentassem memorizar um mapa para levar comigo. A moldura prateada com a foto do dia do meu casamento repousa na cômoda de carvalho, tão familiar quanto o próprio ar que respiro. Os cantos levemente amarelados contam a passagem do tempo, mas a felicidade capturada permanece intacta. Lembro-me daquele dia como se fosse ontem: o vestido branco simples que escolhi contra a vontade da minha mãe, que sonhava com algo mais elaborado; o cheiro de flores de laranjeira que impregnava o ar; a forma como ele me olhava quando caminhei em sua direção, como se eu fosse a única pessoa no mundo, como se o universo tivesse parado apenas para contemplar nosso momento. Suas mãos trêmulas ao colocar a aliança em meu dedo, o sorriso nervoso que derreteu meu coração.
Ao lado da foto está o desenho de Mally, aquele coração colorido vibrante que ela fez quando tinha cinco anos, preso à madeira da cômoda por um pequeno ímã em forma de estrela. O papel já está um pouco gasto nas bordas, com marcas de dobras que contam a história das vezes em que o guardei e tirei da gaveta apenas para sentir um pedaço dela junto a mim quando estava no hospital. As letras tortas e o entusiasmo desajeitado dela transbordam daquele pedaço de papel, os traços grossos de canetinha ultrapassando as linhas que ela mesma tentou criar. "Mamãe, papai e eu." Três palavras simples, escritas com uma caligrafia infantil ainda em formação que carregam o peso de todo o meu universo, de todas as minhas alegrias, de tudo o que vale a pena nesta vida, que agora escapa pelos meus dedos como areia fina.
A memória daquele dia surge com uma clareza tão intensa que quase posso sentir o cheiro dos fios de cera, lápis de cor e da cola que ela insistiu em usar para adicionar alguns brilhos no desenho.
Flashback on...
Mally está no chão da sala, com as pernas cruzadas em posição de lótus, o cabelo loiro preso em um rabo de cavalo desalinhado que eu tentei fazer de manhã. Ela desenha com uma concentração que beira a seriedade, algo incomum para uma criança tão pequena e geralmente agitada. O rosto franzido, a língua levemente para fora repousando no canto dos lábios, e uma determinação que é só dela, herdada do pai, mas com um toque de perfeccionismo que reconheço como meu. A televisão murmura, ao fundo, algum desenho animado que ela pediu para assistir, mas que agora parece esquecido diante da importância da sua criação artística.
Observo-a em silêncio da porta da cozinha, segurando uma xícara de chá entre as mãos, absorvendo aquele momento comum, ordinário, mas que agora percebo ser extraordinário em sua simplicidade. A luz da tarde passa pela janela e forma uma aura dourada ao redor dela, como se o universo também quisesse destacar a perfeição daquele instante.
- Mamãe, é para você! - exclama ao terminar, pulando do chão com a energia de um pequeno furacão, segurando o papel com as mãozinhas sujas da tinta das canetinhas e glitter. Há um brilho de expectativa em seus olhos verdes, tão parecidos com os meus, um misto de orgulho e ansiedade infantil que me enche de ternura.
Coloco a xícara no aparador que fica ao lado, me abaixo e abro os braços. Ela vem correndo, tropeçando levemente no tapete, mas recuperando o equilíbrio com a resiliência que parece tão natural nas crianças. Eu a puxo para o meu colo, abraçando-a com tanta força que quase a derrubo, sentindo o cheiro de shampoo infantil e algo que é "Mally" - uma mistura de inocência, alegria e aquela doçura que só as crianças possuem.
Seu riso ecoa pela sala, leve e melodioso, como sinos ao vento, e neste momento, sinto como se nada pudesse nos atingir, como se tivéssemos construído uma fortaleza impenetrável feita apenas de amor e risos infantis.
- Olha, mamãe, somos nós três! - ela aponta para as três figuras de palito no desenho, uma maior que as outras, com o que parecem ser longos cabelos amarelos. - Você é essa, a mais bonita!
Meus olhos se enchem de lágrimas, não pelas palavras, mas pela pureza do sentimento por trás delas. Como algo tão simples pode ser tão profundo?
- É perfeito, meu amor. O desenho mais lindo que já vi.
E realmente é, não pela técnica ou pelas cores, mas por ser uma declaração de amor na linguagem que ela conhecia.
Flashback off.
Agora, aquele papel parece mais do que um desenho. É um pedaço de sua alma, um lembrete de tudo o que construímos juntas, cada risada, cada lágrima, cada pequeno momento que, somados, formam o mosaico da nossa história.
O silêncio do quarto é uma força oposta à gentileza da luz. Ele não é gentil e acolhedor como os raios dourados. Ele pesa, sufoca, prende minha atenção no presente e no futuro, ao mesmo tempo, como um predador que não permite que sua presa desvie o olhar. Cada tique-taque do relógio no criado mudo marca não apenas a passagem do tempo, mas o estreitamento das minhas possibilidades.
Respiro fundo, tentando ignorar o aperto no peito que a doença traz, aquela sensação de estar se afogando em terra firme, o fantasma invisível que habita dentro de mim há meses.
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