Beatriz acordou com o céu começando a clarear. O quarto ainda estava envolto num tom azulado, quase onírico. Espreguiçou-se devagar, como se não tivesse pressa de entrar no dia. Caminhou até a janela, afastou as cortinas de linho e deixou que a brisa salgada invadisse o cômodo. O sol começava a nascer, pintando o mar de São Conrado com tons de ouro e tangerina.
Ali de cima, a cidade parecia calma. Mas ela sabia que era ilusão.
Beatriz morava na cobertura de um prédio luxuoso com o pai, Antônio Almeida, empresário respeitado no ramo da construção civil. Seu mundo era controlado por horários, compromissos e aparências. A menina que um dia sonhava em ser artista havia se tornado uma presença discreta nas colunas sociais. Uma dama - como o pai gostava de dizer - criada para manter o sobrenome limpo.
Enquanto admirava o mar, Gérard, o cozinheiro francês, preparava seu café da manhã com esmero: croissants quentinhos, frutas orgânicas, iogurte de kefir e um copo de ovomaltine com nutella batido artesanalmente.
- Mademoiselle Beatriz? - ele chamou com o sotaque carregado. - O petit-déjeuner está servido.
- Merci, Gérard. Mas hoje eu não vou conseguir - ela respondeu, já saindo apressada.
- Mas... a senhorita não comeu nada! - protestou ele, segurando o pano de prato contra o peito, ofendido.
Ela apenas lançou um sorriso travesso e pegou a chave do carro da amiga. O motor importado ronronou discretamente. Era sábado, e ela queria ver o mundo de outro ângulo - de preferência, de baixo para cima.
Do outro lado da cidade...
Caio chegou em casa com o dia quase nascendo. Vinha da roda de freestyle, com a mente leve e o corpo cansado. Jogou os tênis no canto, tirou a blusa suada e se jogou no colchão no chão do quarto. A janela aberta deixava entrar um fiapo de luz. Lá fora, os barracos ainda dormiam.
Antes de apagar, teve tempo de ouvir a geladeira rangendo ao ser aberta - seu irmão mais novo já de olho no pão com mortadela. O mesmo de sempre. A rotina que não mudava. Mas Caio não reclamava. Tinha aprendido a tirar poesia até dos buracos da rua.
Dormiu com os olhos vermelhos de sono, mas a mente fervendo de versos que ainda rimavam com "vida".
Naquela tarde...
O acaso decidiu cruzar os dois mundos numa esquina improvável de Ipanema, onde rolava um evento de rua com música ao vivo. Beatriz, entediada da mesmice dos shoppings, topou com uma amiga de faculdade que a arrastou para "ver gente de verdade".
Caio, por outro lado, foi convidado para rimar num mini palco montado no asfalto, entre food trucks e artesanato.
Ele subiu e começou o improviso. Mandou rima atrás de rima, arrancando aplausos. Beatriz, distraída com seu copo de Red Bull, olhou para o palco no exato momento em que Caio apontava o microfone em sua direção e improvisava com um sorriso:
- A dama na plateia com olhar de cinema,
nem sabe que é ela que vai virar meu poema.
Ela riu, surpresa, e a amiga cutucou:
- Gata... ele mirou em você.
Depois do show, ele se aproximou com o mesmo ar tranquilo de quem não tem nada a provar.
- Curtiu?
- Curti.
- Então valeu a pena.
Conversaram até o sol cair. Ela contou pouco. Ele contou menos ainda. Mas havia uma coisa no silêncio entre eles que falava mais do que mil palavras.
Ela falou da vista da sua janela. Ele, da laje onde tomava sol. Ela descreveu a vida dentro do condomínio. Ele riu da ideia de ter um porteiro regulando entrada. E entre uma história e outra, o tempo passou como se não existisse relógio.
À noite...
Beatriz se recusou a ir embora cedo. Quando a amiga foi embora de carro, ela decidiu ficar. Caio a acompanhou até o terminal.
- Vai pegar o quê? - ele perguntou.
- Um Uber... talvez.
- Quer que eu te leve até o ponto?
- Você vai pra onde?
- Sei lá... vou andando. A vida não tem rota certa.
Ela pegou o celular da bolsa, destravou e entregou pra ele.
- Me adiciona. Mas só manda mensagem se for pra algo legal.
- Isso é tipo um desafio?
- Não. É um convite.
Ele digitou rápido. Número salvo. Perfil salvo. Nome: Beatriz Almeida. Status: "Mar calmo nunca fez bom marinheiro".
Ela subiu no carro por aplicativo. Ele ficou na calçada, com o celular na mão e o coração meio sem direção.
De madrugada...
O celular vibrou. Era uma mensagem no WhatsApp.
BEATRIZ ALMEIDA:
Chegou bem?
Ele sorriu. Pensou em responder de qualquer jeito. Mas digitou com calma.
CAIO:
Cheguei sim. A noite me trouxe sorte.
Dorme com os anjos, dama. Amanhã, me apresenta teu mar?
A resposta não veio de imediato. Mas, alguns minutos depois, o ícone azul confirmou a leitura. E então:
BEATRIZ ALMEIDA:
Te mostro São Conrado. Mas só se me mostrar o que você vê quando fecha os olhos.
CAIO:
Fechado. Com direito a sol nascendo e croissant mental.
Ela reagiu com um emoji de risada. Depois um de coração.
Ali, entre a sofisticação de uma vida planejada e o improviso de uma alma livre, começava a nascer uma história. Ou um risco. Ou talvez uma bagunça linda demais pra ser ignorada.