Chamo-me Luna Real, tenho 24 anos e, desde os meus 18, sou responsável pelo meu irmão mais novo, Miguel. A minha vida mudou drasticamente naquela manhã fria de novembro, quando a tragédia bateu à porta da nossa casa. Perdi os meus pais em um acidente de carro, e, sem aviso prévio, a minha infância e os meus sonhos se desfizeram, dando lugar a uma realidade que nunca imaginei.
Naquele momento, o futuro que eu havia planeado – a faculdade de Medicina, os anos que eu passaria a estudar, o estágio no hospital, as descobertas científicas e a busca pelo conhecimento – foi substituído por uma realidade mais dura: a necessidade de sobreviver. Miguel tinha apenas 8 anos e não fazia ideia de tudo o que estava prestes a mudar. Para ele, o mundo ainda era um lugar de diversão e imaginação, e eu não podia permitir que ele sentisse o peso do que havia acontecido. A dor de perder os nossos pais foi nossa, mas a responsabilidade de seguir em frente caiu sobre mim.
Tirei um tempo para chorar, para processar, mas a necessidade de cuidar de Miguel foi mais forte. No fundo, sabia que ele precisava de mim e que não podia me dar ao luxo de me perder. Eu nunca havia trabalhado antes, sempre fui uma boa estudante, uma filha dedicada, mas aquele momento me forçou a crescer de forma acelerada. A faculdade de Medicina, que eu amava, teve que ser deixada para trás. Era impossível conciliar a minha dor e a responsabilidade de cuidar do meu irmão com o peso de uma graduação que exigia tanta dedicação.
Aos 18 anos, comecei a procurar emprego. O mercado de trabalho não era nada fácil para alguém sem experiência, e menos ainda para uma jovem com tantas inseguranças. Encontrei um emprego em uma loja de roupas. Não era o que eu queria, mas era o que eu tinha. As longas horas em pé, os sorrisos falsos e a pressão de vender mais do que o esperado eram apenas o começo. Miguel estava na escola o dia inteiro, mas eu não podia contar com ninguém para me ajudar a cuidar dele. Não havia avós, tios ou parentes próximos. E, enquanto eu trabalhava e me desdobrava para pagar as contas, Miguel crescia rápido demais, de uma maneira que eu não queria. Ele não deveria ter que carregar o peso da perda tão cedo, mas, de certa forma, isso parecia inevitável.
Apesar das dificuldades, tentei dar a ele uma vida digna. Arrumei uma pequena casa em um bairro simples, longe dos luxos que tínhamos antes. Mas, mesmo com os sacrifícios, fiz questão de manter a esperança acesa para ele. As tardes eram sempre nossas. Ele fazia os deveres de casa enquanto eu preparava o jantar, e à noite, antes de dormir, ainda conseguíamos nos sentar juntos, compartilhar histórias e até rir de coisas bobas, como fazíamos antigamente.
Mas os dias não eram fáceis. Muitas vezes, me vi perdida, sem saber como equilibrar tudo: o trabalho, os estudos que deixei para trás, a responsabilidade de cuidar de Miguel e a dor que nunca me deixou. Senti-me sozinha em muitas noites, com o peso da vida sobre os meus ombros. Eu era uma jovem que, em teoria, deveria estar explorando o mundo, vivendo os meus sonhos, mas a realidade exigia de mim uma maturidade que parecia irreal.
O mais difícil, contudo, era lidar com o sentimento de culpa. Será que tomei as decisões certas? Será que estava fazendo o suficiente por Miguel? E, acima de tudo, será que algum dia conseguiria voltar a sonhar para mim mesma?
Miguel, com a sua infância interrompida tão cedo, estava crescendo com um peso silencioso. Ele não reclamava, mas eu sabia que ele também sentia a ausência dos nossos pais. Às vezes, eu o pegava olhando para fotos antigas, com um olhar perdido, como se tentasse entender a gravidade de tudo. Mas, ao mesmo tempo, ele era uma fonte de força para mim. Seu sorriso, sua energia, o modo como, mesmo com toda a dor, tentava me fazer rir, davam-me um motivo a mais para seguir em frente.
Hoje, olhando para trás, vejo que, apesar de tudo, cresci. Não da maneira que imaginava, mas cresci. A vida, com suas curvas inesperadas, me ensinou lições que eu nunca teria aprendido de outra forma. Quando perdi os meus pais, perdi parte de mim mesma, mas também encontrei uma versão mais forte, mais resiliente de quem eu sou.
Eu sei que o caminho à frente ainda será cheio de desafios. Talvez eu nunca tenha a chance de voltar à faculdade, talvez Miguel nunca recupere completamente a infância que perdeu, mas temos um ao outro. E, no final das contas, talvez isso seja o suficiente.