Decidido a se blindar contra a dor, Kael vestiu a máscara do cafajeste. Passou a viver de excessos, sem pensar duas vezes antes de pisar em corações alheios. O prazer imediato parecia mais seguro que qualquer promessa de amor. Porém, sob essa fachada, restava um vazio que nem festas nem mulheres conseguiam preencher.
Agora, diante de uma nova chance, ele precisava provar algo muito maior: mostrar ao pai que era capaz de ser mais que um playboy rico. Assumira um cargo importante e sua primeira missão era clara, viajar até uma ilha paradisíaca, avaliar o mercado local e negociar terrenos para erguer um projeto milionário. Era sua oportunidade de deixar de ser apenas "o filho do dono" e começar a ser visto como um homem de verdade.
Partiu de São Paulo no fim da tarde, atravessando estradas dentro do carro de luxo com motorista particular. Quando finalmente chegou à pousada à beira-mar, a noite caiu junto com uma tempestade feroz. O céu parecia ruir sobre a ilha. Raios iluminavam a escuridão em clarões violentos, e a chuva desabava sem piedade, como se lavasse não só as ruas, mas também os pensamentos caóticos que ele tentava controlar.
Deitado, escutando o rugido incessante da tempestade, Kael percebeu que aquele clima refletia com perfeição o que ele sentia por dentro. Um turbilhão de raiva, frustração e expectativas. Estava decidido: dali em diante, nada nem ninguém desviaria seu foco.
Quando o amanhecer trouxe apenas uma garoa fina e ventos suaves, Kael acreditou que finalmente teria um respiro. Mas, ao sair da pousada, deparou-se com um cenário devastado. Árvores arrancadas pela raiz, destroços espalhados, o paraíso tropical reduzido a um retrato cruel da força da natureza. A cada passo pela cidade costeira, ele sentia a urgência latejar. Não podia esperar. Precisava agir, precisava encontrar respostas, precisava provar a si mesmo que sabia liderar mesmo em meio ao caos.
O problema era que nada em sua postura elegante combinava com aquele ambiente destruído. O terno impecável, os sapatos italianos, a arrogância quase natural herdada de uma vida de privilégios... tudo destoava grotescamente da lama e da precariedade ao redor.
Quando percebeu que não avançaria daquela forma, entrou na única lojinha aberta, uma mistura de suvenires e roupas de praia. Saiu de lá irreconhecível. Vestia uma bermuda florida, uma camiseta amarela berrante que gritava "Eu Amo Surfar", chinelos de borracha baratos e óculos espelhados. Até um boné exótico cobria seus cabelos sempre arrumados.
O reflexo que viu na vitrine o fez rir de si mesmo, mas também trouxe um desconforto real. Havia anos que não se via tão... normal. Tão anônimo. O disfarce o incomodava, mas ao mesmo tempo o libertava. Pela primeira vez em muito tempo, ninguém olharia para ele como o filho do magnata.
Seguiu pela orla castigada, observando o cenário: coqueiros inclinados, areia revolvida em montes irregulares, pedaços de barcos arrastados pela maré. Até que avistou um quiosque de praia ou o que restara dele. Sentiu sede, e talvez curiosidade, e decidiu se aproximar.
O telhado de palha havia desabado em parte, expondo o interior caótico. Uma jovem lutava para mover uma tábua pesada. Loira, pele suada e marcada pela terra, olhos verdes intensos que brilhavam mais de raiva do que de cansaço. Magra, porém firme, trazia no braço uma tatuagem que contrastava com a fragilidade da cena.
- Com licença, moça. - A voz grave de Kael saiu com naturalidade, ainda carregada da imponência que costumava abrir portas.
- Você poderia me vender uma água de coco, por favor?
Ela ergueu a cabeça devagar e o encarou. O olhar verde atravessou-o como uma lâmina. Analisou-o dos chinelos à camiseta berrante, com uma expressão que misturava incredulidade e desprezo.
- Água de coco? - a voz dela saiu embargada, quase um riso amargo.
- Sério, moço? Você não tá vendo o estrago?
Antes que ele respondesse, ela explodiu:
- O telhado caiu, a lama tomou conta, tá tudo destruído! E você vem me pedir água de coco, como se eu fosse uma máquina de vendas?
Acostumado a ter sempre a última palavra, Kael sentiu a irritação subir.
- Eu só perguntei se estava atendendo. Não precisava ser tão... grosseira.
A jovem soltou o martelo com força, o baque ecoando no ar pesado.
- Grosseira? - repetiu, se aproximando, o corpo coberto de suor e poeira.
- Grosseiro é você, que chega aqui com cara de turista de propaganda de cerveja e não percebe nada! Tá achando que eu tô limpando isso por hobby? Esse quiosque era tudo o que eu tinha. Agora é entulho. Se eu não colocar as mãos aqui, eu perco até o pouco que restou.
As palavras dela atingiram Kael como socos. Ninguém nunca o tratara assim. Pela primeira vez, não havia deferência, não havia medo, não havia interesse em bajulá-lo. Apenas desprezo cru, genuíno.
Ele abriu a boca para se explicar, mas ela o cortou com um gesto firme.
- Então faz o seguinte, procura sua água de coco em outro lugar. Porque aqui, o único serviço que eu posso oferecer é o de uma mulher tentando não desmoronar junto com o que sobrou da vida dela.
Cássia voltou a empurrar a tábua, os ombros tensos, a respiração pesada. Kael ficou parado, como se tivesse levado um golpe invisível. A sede continuava ali, mas agora havia outra coisa queimando dentro dele: vergonha. Vergonha do pedido insensível, vergonha da roupa ridícula, vergonha da distância abissal entre o mundo dele e o daquela mulher.
Sem conseguir dizer mais nada, deu um passo para trás. O disfarce colorido que antes parecia cômico agora o fazia se sentir patético. Deu meia-volta e se afastou, deixando Cássia sozinha em sua batalha contra a tempestade e levando consigo a estranha sensação de que, pela primeira vez em anos, havia conhecido alguém que não o via como Kael, o herdeiro. Apenas como mais um homem perdido na lama.