Quando nós dois acabamos gravemente feridos no hospital, os médicos perguntaram ao meu marido quem deveriam salvar primeiro. Ele não hesitou um único segundo.
"Salvem a Bianca."
Ele escolheu deixar sua própria esposa morrer. Depois de todas as mentiras e traições, eu finalmente entendi. Eu era apenas uma ferramenta. Meu coração virou pedra.
Então, eu me divorciei dele e desapareci. Mas ele me caçou, destruiu a nova vida que eu havia construído e me arrastou de volta, descobrindo que eu estava grávida de um filho seu.
Ele achou que me tinha em uma armadilha para sempre. Ele estava enganado. Eu fiz uma promessa a ele, e depois a quebrei, deixando-o com nada além das cinzas de sua obsessão.
Capítulo 1
Ponto de Vista: Alice Drummond
O mundo me conhecia como a "rebelde indomável" de São Paulo, uma reputação que eu cultivei com cuidado, quase meticulosamente. Eles viam o jeans manchado de tinta, o borrão de carvão na minha bochecha, as vernissages que se transformavam em performances de arte improvisadas noite adentro. Eles viam uma rebelde, uma artista que não dava a mínima para linhagem ou dinheiro antigo. E por muito tempo, era só isso que eu queria que eles vissem. Era uma proteção, um escudo contra as expectativas sufocantes do nome Drummond.
Meu pai, Alves Drummond, não via nada disso. Ele via um ativo, um obstáculo, uma moeda de troca – dependendo do dia. Numa tarde de terça-feira, a gaiola dourada que eu chamava de ateliê se tornou uma armadilha. Meu celular vibrou com uma convocação urgente. Não era um pedido. Era uma ordem. "Esteja na cobertura em uma hora. Vista-se apropriadamente." Foi tudo que o assistente dele disse antes de a linha ficar muda.
Eu sabia o que "apropriadamente" significava. Sem tinta, sem rasgos, apenas a fachada polida da filha que ele desejava que eu fosse. Meu estômago se revirou. Chame de instinto, mas eu sabia que não se tratava de outra gala de caridade da qual eu poderia escapar mais cedo. Isso parecia diferente. Parecia... permanente.
Quando entrei na sua sala opulenta, o ar estava pesado. Carregado de acordos silenciosos e do cheiro de charutos caros. Meu pai estava de pé junto às janelas que iam do chão ao teto, de costas para mim, com a cidade se estendendo abaixo dele como um cenário de brinquedo. Em frente a ele, um homem que eu vagamente reconhecia das colunas sociais estava de pé, com uma postura impecável, seus olhos como lascas de granito. Caio Montenegro. Ex-membro do COMANF. Herdeiro de uma dinastia política. Um monumento ambulante à disciplina e ao controle. Ele era tudo que eu não era, tudo que eu detestava.
"Alice," meu pai começou, virando-se, sua voz desprovida de calor. "Caio e eu chegamos a um acordo. Vocês vão se casar."
As palavras me atingiram como um soco. O mundo girou. Casamento? Com ele? Meu pai nem sequer olhou para mim quando soltou aquela bomba. Era uma transação. Eu era a garantia. Minha arte. Minha liberdade. Tudo que eu mais prezava, reduzido a uma fusão corporativa.
Caio Montenegro não se abalou. Ele apenas me observava, sua expressão indecifrável, uma sentinela silenciosa esperando minha reação. Seu terno era perfeitamente ajustado, seu cabelo cortado com precisão militar. Meu próprio cabelo, um emaranhado de cachos ruivos, de repente pareceu rebelde, uma bagunça desafiadora contra sua ordem austera. Ele era uma fortaleza, eu era uma correnteza selvagem. Ele construía muros, eu queria derrubá-los. A vida dele era uma planilha, a minha era uma tela coberta de cores caóticas. A ideia de estar amarrada a ele, àquele mundo rígido, fez um gosto amargo subir pela minha garganta.
"Não," eu disse, a palavra um som cru e gutural. "Eu não vou. Eu me recuso."
Meu pai suspirou, um som desdenhoso que era mais irritação do que decepção. "Você não tem escolha, Alice. Essa fusão vale bilhões de reais."
"Vou fazer você se arrepender," eu cuspi, minha voz tremendo com uma fúria que eu mal reconhecia. Eu queimaria tudo. Eu me tornaria tão intragável, tão absolutamente escandalosa, que até Caio Montenegro, com todo o seu controle de ferro, recuaria.
Minha campanha de perturbação começou imediatamente. O anúncio do noivado foi recebido com uma série de palhaçadas cada vez mais selvagens da minha parte. Primeiro, uma performance de arte ao vivo na Avenida Paulista, onde pintei uma caricatura gigante e grotesca de um bolo de casamento corporativo, usando apenas minhas mãos e baldes de tinta neon. Os sites de fofoca me apelidaram de "A Noiva Indomável", e as fotos estamparam todas as colunas sociais. A equipe de relações públicas de Caio transformou aquilo em "arte performática, uma expressão única da paixão de Alice". Ele permaneceu em silêncio.
Em seguida, invadi um evento de arrecadação de fundos político de alto perfil, o domínio de Caio, usando um vestido de noiva vintage tingido de preto e o rasgando pedaço por pedaço na pista de dança. As pessoas ofegaram, as câmeras dispararam. Meu pai ficou apoplético. Caio, no entanto, simplesmente se aproximou, seu rosto não traindo nada, e calmamente colocou seu paletó sobre meus ombros. "Vamos para casa, Alice," ele disse, sua voz baixa, quase um sussurro, como se estivéssemos apenas saindo de um jantar entediante. Ele me escoltou para fora, passando pelos fotógrafos, sua mão firme nas minhas costas. No dia seguinte, as manchetes diziam: "Caio Montenegro: O Homem que Pode Domar a Rebelde Indomável."
Eu escalei. Fui presa por nudez pública em um festival de arte underground, pensando que isso certamente o quebraria. A humilhação, o escândalo – tinha que ser o suficiente. Mas Caio estava lá para pagar minha fiança antes mesmo que a tinta do boletim de ocorrência secasse. Ele apenas ficou parado, o maxilar cerrado, entregando um cartão ao policial. Ele não gritou. Ele nem parecia irritado. Ele simplesmente assinou os papéis, pagou a multa e me levou para casa em silêncio.
Caímos em um ritmo grotesco. Eu criava um espetáculo público, um ato desafiador de autossabotagem, e ele, com uma calma e eficiência enervantes, limpava a bagunça. Meu pai se enfurecia, meus amigos me incentivavam, mas Caio permanecia essa força inabalável. Era como lutar contra uma parede de tijolos. Cada golpe que eu desferia contra ele parecia apenas reforçar sua fachada estoica.
Então veio a noite em que eu passei dos limites. Foi uma briga de bar, alimentada por tequila demais e um comentário cortante sobre meu noivado. Eu dei um soco, depois outro, um turbilhão de raiva e frustração. A próxima coisa que soube foi que eu estava em uma cela, o cheiro metálico de medo e antisséptico impregnando tudo. O banco frio e duro era minha realidade. Eu me senti completamente sozinha, totalmente esgotada.
Horas depois, a porta pesada rangeu ao se abrir. Caio estava lá, seus ombros caídos, seus olhos sombreados pela exaustão. Ele parecia completamente esgotado, mais humano do que eu jamais o vira. Seu terno impecável estava amassado, seu cabelo ligeiramente desgrenhado. Ele estava cansado. Tão cansado.
Ele pagou minha fiança, seus movimentos rígidos, quase metódicos. Saímos para o frio da madrugada, e o silêncio se estendeu entre nós, mais pesado do que o normal. Minha mão latejava. Eu a havia arranhado em algo na cela, um corte pequeno e feio nos nós dos dedos. Eu nem tinha notado até agora.
Enquanto eu me atrapalhava com as chaves do meu carro, a mão dele se estendeu, pegando a minha gentilmente. Seu toque era surpreendentemente suave. Ele virou minha mão, seu polegar traçando o corte irregular. Ele não disse nada por um longo momento, apenas o examinou, a testa franzida.
Então, sua voz, rouca de fadiga, quebrou o silêncio. "Está doendo?"
A pergunta pairou no ar, simples e profunda. Ninguém nunca me perguntou isso. Nem meu pai, que teria exigido saber por que eu estava brigando. Nem meus amigos, que teriam me comprado outra bebida. Nem mesmo eu mesma, porque eu estava ocupada demais sentindo raiva para sentir qualquer outra coisa. Ele não estava perguntando sobre minha reputação, ou o escândalo, ou o noivado rompido. Ele estava perguntando sobre a minha dor.
Algo dentro de mim se partiu. Uma parte minúscula e vulnerável que eu havia enterrado há muito tempo, uma parte que ansiava por cuidado genuíno, despertou. Era um eco doloroso, porque Ava, minha babá de infância, costumava cuidar de mim exatamente assim. Ela foi a única pessoa que viu além da minha performance, além do ato de "rebelde indomável", a garotinha assustada por baixo. Mas Ava já se fora há muito tempo. E agora, Caio. O homem com quem eu estava lutando com cada fibra do meu ser. Ele estava me vendo. Me vendo de verdade.
"Sim," eu sussurrei, a palavra mal audível. "Está doendo."
Ele assentiu lentamente, pegando um pequeno kit de primeiros socorros do porta-luvas. Ele limpou a ferida gentilmente, seus dedos surpreendentemente ágeis, e depois aplicou um pequeno curativo. Seu toque enviou um arrepio pela minha espinha, não de medo, mas de algo parecido com calor.
Quando ele terminou, ele me olhou nos olhos. "Então, o casamento?"
Meu olhar se fixou no dele. Minha garganta estava apertada. Ele ainda estava esperando. Pensei nos anos de negligência, na natureza transacional da minha família, na pressão constante para ser algo que eu não era. E então, este momento inesperado de ternura da última pessoa de quem eu esperava. Esta poderia ser minha fuga. Um tipo diferente de fuga.
"Eu me caso com você," eu disse, as palavras surpreendendo até a mim mesma. A exaustão em seus olhos pareceu se dissipar, substituída por algo que eu não conseguia decifrar. Um brilho. Apenas um brilho. Como uma sombra cruzando seu rosto.
"Mas com uma condição," continuei, minha voz ganhando força. "Jure para mim, Caio Montenegro, que não há 'amor inesquecível' no seu passado. Ninguém por quem você ainda tenha uma queda. Ninguém que possa ficar entre nós."
Seu olhar era inabalável. Por um longo momento, ele não disse nada. Observei seu rosto, procurando por qualquer sinal, qualquer hesitação. Nada. Ele era um COMANF, afinal. Treinado para esconder. "Eu juro," ele disse, sua voz uniforme, plana. "Não há ninguém."
A mentira foi um sussurro ao vento, uma semente plantada em solo fértil. Eu queria acreditar nele. Eu precisava acreditar nele. Então eu acreditei. Eu concordei. A notícia causou ondas de choque na sociedade paulistana. A rebelde indomável, domada. As manchetes gritavam. Os especialistas debatiam. Caio Montenegro tinha feito o que ninguém mais conseguiu. Ele tinha colocado Alice Drummond na linha.
Nosso casamento começou com uma indulgência surpreendente. Ele não tentou me mudar. Ele simplesmente absorveu meu caos em seu mundo ordenado. Meu ateliê de arte foi montado em sua cobertura gigantesca. Minhas telas, antes banidas, adornavam as paredes. Ele frequentava minhas exposições, às vezes até ficava ao meu lado, uma figura silenciosa e imponente que de alguma forma fazia minha rebelião parecer... chique. O mundo acreditou na sua ilusão. Eles acreditaram que ele me domou. Por um tempo, eu quase acreditei também. Ele era atencioso, quase charmoso em particular, um contraste gritante com sua persona pública. Pensei que, talvez, eu tivesse encontrado um refúgio inesperado.
A ilusão se estilhaçou em uma noite chuvosa. Eu tinha entrado em um clube privado, um estabelecimento exclusivo para membros que Caio frequentava para reuniões discretas. Eu estava planejando uma surpresa, uma pequena e ridícula tentativa de domesticidade, um gesto de oferta de paz por uma semana agitada. Eu o encontrei em um reservado, sua voz baixa, séria, conversando com dois homens que eu não reconheci. Parei fora de vista, prestes a me anunciar.
Então eu ouvi suas palavras. Palavras que congelaram o sangue em minhas veias, palavras que rasgaram a frágil paz que eu havia construído. "Minha maior mentira," ele confessou, sua voz tensa, "foi dizer a ela que eu não tinha mais ninguém. Existe alguém. Sempre existiu. Bianca Valente."
O nome me atingiu como um soco. Bianca. Sua frágil namorada de infância. Meu estômago despencou. O ar foi sugado dos meus pulmões. Cada gesto terno, cada limpeza paciente, cada toque suave – tudo se transformou em uma zombaria grotesca. Ele havia mentido. Na minha cara. No dia do nosso casamento. Minha mente girou. Ele tinha um amor inesquecível. Ele jurou que não tinha.
Eu cambaleei para trás, o som dos meus saltos muito alto em meus ouvidos, e saí correndo, antes que alguém pudesse ver a devastação gravada em meu rosto. A chuva lá fora espelhava a tempestade que se formava dentro de mim. Meu coração gritava. Ele havia mentido. Bianca Valente. O nome ecoava, uma melodia assombrosa de traição.
Na manhã seguinte, os canais de notícias explodiram. Bianca Valente, a namorada de infância de Caio, havia sido sequestrada. Um rival de negócios, diziam os relatos. Caio havia sumido, desaparecido sem deixar rastros, sem dúvida já movendo montanhas para salvá-la.
Fui deixada sozinha em nossa cobertura grande demais, o silêncio ensurdecedor. A ilusão não apenas se estilhaçou; ela explodiu, deixando cacos de vidro em minha alma. Eu não era nada além de um meio para um fim. Um peão em seu jogo. Minha dor, minha raiva, minha existência – tudo era secundário. Para Bianca.
Uma determinação fria e dura se instalou em meu coração. Ele havia mentido. Ele havia me usado. E agora, eu descobriria o porquê. Eu desvendaria cada fio dessa traição, mesmo que isso significasse destruir meu próprio mundo no processo.
Eu chamei discretamente meu motorista. "Siga-o," ordenei, minha voz plana, desprovida de emoção, "onde quer que ele vá."