Heitor chegou, mas em vez de ficar com raiva, ele a cobriu de carinho, chamando-a de "Kaila" e presenteando-a com um colar de diamantes. Ele tratou a alegação de sequestro como uma briga de amantes.
Quando seus olhos finalmente encontraram os meus, o calor desapareceu, substituído por gelo. Ele me olhou como se eu fosse um objeto qualquer. Um policial murmurou para seu parceiro: "Essa é a Sra. Bastos. A verdadeira. Ou, bem, a primeira."
Ele me odeia. Ele me culpa pela morte de sua irmã, cinco anos atrás, acreditando que eu fugi e a deixei para morrer. Ele não sabe que eu desmaiei enquanto corria para buscar ajuda. Ele não sabe sobre minha doença cardíaca terminal.
Então ele me tortura com minha réplica viva, matando lentamente a mulher que ele jurou amar "até que a morte nos separe". A ironia é que ele não precisa se esforçar tanto. Meu médico acabou de me dizer que eu só tenho algumas semanas de vida.
Capítulo 1
Ponto de Vista: Júlia
Meu presente de quinto aniversário de casamento não foi uma joia. Foi um telefonema do assessor de imprensa do meu marido.
O tom estéril e oficial do outro lado da linha era um contraste gritante com o silêncio oco da mansão que eu chamava de lar. "Sra. Bastos? Aqui é o Marcos, da equipe do Heitor. Tivemos uma pequena confusão. Precisamos que a senhora venha até o 5º DP."
Uma confusão. Com Heitor, sempre havia uma "confusão".
"O que aconteceu?", perguntei, minha voz mal passando de um sussurro. Minha mão instintivamente foi para o meu peito, um aperto familiar começando a florescer ali, um lembrete cruel do relógio fazendo tique-taque dentro de mim.
"É... melhor a senhora ver por si mesma. Está um circo da mídia."
A linha ficou muda.
Não perdi um segundo. Joguei um casaco simples sobre meu vestido, minhas mãos tremendo enquanto eu me atrapalhava com os botões. O trajeto até o centro foi um borrão de semáforos e buzinas, cada som arranhando meus nervos em frangalhos.
O 5º DP era exatamente o circo que Marcos havia descrito. Repórteres fervilhavam na entrada como abutres, suas câmeras piscando, microfones apontados para qualquer um que parecesse vagamente oficial. Entrei por uma entrada lateral que um segurança abriu para mim, meu coração batendo um ritmo frenético e doentio contra minhas costelas.
O saguão principal estava caótico. E no centro de tudo, eu a vi.
Ela era jovem, talvez vinte anos, com o tipo de beleza fresca e vibrante que parecia irradiar sob as duras luzes fluorescentes. Ela estava cercada por uma pequena multidão de policiais, seu rosto uma máscara de angústia teatral. Mas não foi sua juventude ou seu drama que me tirou o ar dos pulmões.
Foi o rosto dela.
Ela era idêntica a mim. Uma versão mais jovem, mais brilhante e intacta da mulher que eu costumava ser cinco anos atrás.
"Ele me sequestrou!", ela gritava, sua voz ecoando pela delegacia. "O bilionário, Heitor Bastos! Ele me trancou em sua cobertura por uma semana! Foi uma semana de... de intenso, apaixonado... tormento!"
Suas palavras eram acusatórias, mas seu tom era outra coisa. Estava tingido de uma manha mimada e insinuante, uma ostentação mal disfarçada. Ela não era uma vítima; era uma atriz em um palco que ela mesma criou, e esta delegacia era sua noite de estreia.
Um policial veterano com um rosto cansado se encostou em uma mesa, tomando café de um copo de papel, totalmente impassível. Ele já tinha visto esse show mil vezes.
"Outra?", ele murmurou para seu parceiro, um novato de rosto fresco cujos olhos estavam arregalados de indignação.
"Senhor, não deveríamos levar isso a sério?", perguntou o novato, a mão pairando perto de seu bloco de notas. "Ela está acusando um dos homens mais poderosos da cidade de sequestro!"
O policial veterano soltou uma risada curta e sem humor. "Garoto, isso não é sequestro. É o que os ricos chamam de 'romance avassalador'. Heitor Bastos poderia comprar este quarteirão inteiro com o troco no bolso. Você acha que ele precisa sequestrar uma garota?"
O novato franziu a testa, confuso. "Mas... ele não é casado?"
Os olhos do policial veterano passaram pela garota e, por um breve e humilhante momento, pousaram em mim, parada nas sombras perto da parede. Um lampejo de pena, ou talvez apenas constrangimento, cruzou seu rosto. "Sim. Ele é."
Nesse momento, as portas principais se escancararam. O mar de repórteres do lado de fora avançou, mas foi contido por uma muralha de seguranças de terno preto. Heitor Bastos atravessou a multidão que se abria como um rei entrando em sua corte.
Ele estava tão deslumbrantemente bonito quanto no dia em que o conheci, seu terno feito sob medida agarrado à sua estrutura poderosa, seu rosto esculpido, frio e impassível. Seus olhos, da cor de um mar tempestuoso, varreram a sala com um desinteresse gélido que fez todos instintivamente se encolherem.
Então seu olhar pousou na jovem influenciadora, Kaila Souza.
E o gelo derreteu.
Em um instante, o bilionário frio se foi, substituído por um homem consumido por um afeto terno e abrangente. A mudança foi tão rápida, tão completa, que foi como assistir a uma máscara cair. Uma máscara que ele agora só usava para mim.
"Kaila", ele murmurou, sua voz um ronronar baixo e íntimo que enviou um arrepio de memória pela minha espinha. Ele diminuiu a distância entre eles em três longos passos, segurando o rosto dela em suas mãos como se ela fosse a coisa mais preciosa do mundo. "Você está bem? Eles te assustaram?"
O lábio inferior de Kaila tremeu. "Heitor", ela soluçou, jogando os braços ao redor de seu pescoço. "Você é terrível! Você me trancou e não me deixou sair. Meus fãs ficaram todos preocupados comigo!"
"Eu sei, me desculpe", ele sussurrou, seus lábios roçando o cabelo dela. Ele se afastou um pouco, o polegar acariciando sua bochecha. "Mas eu senti tanto a sua falta. Eu fui tão mau assim?" Sua voz era uma carícia brincalhona e provocante.
"Você foi horrível!", ela fez beicinho, embora seus olhos brilhassem de triunfo.
Ele riu, um som baixo e quente que eu não ouvia direcionado a mim há cinco anos. "Então terei que compensar." Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma pequena caixa de veludo. Dentro havia um colar de diamantes de tirar o fôlego, com uma safira no centro que combinava perfeitamente com seus olhos.
Kaila ofegou. "Oh, Heitor... você me conhece tão bem."
"Eu sei tudo sobre você", disse ele, sua voz baixando novamente, carregada de significado. Ele prendeu o colar em volta do pescoço dela, seus dedos demorando em sua pele.
Ela fingiu um beicinho. "Ainda estou brava."
"Então terei que me entregar", disse ele, estendendo os pulsos em uma rendição simulada. "Me prenda, policial. Sou culpado de amar demais esta mulher."
Kaila finalmente caiu na gargalhada, sua raiva falsa derretendo. "Você é impossível!" Ela jogou os braços ao redor dele novamente, enterrando o rosto em seu peito. "Eu te amo, Heitor."
Ele a segurou com força, acariciando suas costas. "Vamos para casa", ele murmurou.
Enquanto se viravam para sair, seus olhos, ainda suaves de olhar para ela, varreram a sala e se prenderam nos meus.
A ternura desapareceu. O gelo voltou, mais frio e mais duro do que antes. Foi como se ele tivesse olhado para um objeto qualquer, algo desagradável e fora do lugar.
"Júlia", disse ele, sua voz plana e desprovida de qualquer emoção. "O que você está fazendo aqui?"
Antes que eu pudesse responder, Kaila falou, sua voz pingando uma doçura condescendente. "Oh, Heitor, não fique bravo. Sua equipe de relações públicas ligou para ela. Sabe, para ajudar com a... bagunça." Ela acenou com uma mão desdenhosa, como se eu fosse uma faxineira chamada para limpar um derramamento.
Heitor nem mesmo olhou para mim novamente. Seu foco estava inteiramente em Kaila, seu novo amor, minha réplica viva.
O policial veterano de antes murmurou para o novato, sua voz baixa, mas audível no silêncio repentino. "Essa é a Sra. Bastos. A verdadeira. Ou, bem, a primeira."
Meu coração, já um órgão frágil e falho, pareceu ser espremido por um punho gelado.
A primeira. Uma esposa apenas no nome. Um fantasma assombrando os corredores do meu próprio casamento.
Nem sempre foi assim.
Fechei os olhos e, por um segundo, a delegacia desapareceu, substituída pela memória de um jardim ensolarado. Eu era uma bolsista, quieta e deslocada em uma festa luxuosa, e Carina Bastos, a irmã mais nova e vivaz de Heitor e minha melhor amiga, estava tentando me tirar da minha concha.
Heitor estava lá, uma figura remota e intimidadora, mais velho e já uma lenda no mundo da tecnologia. Ele parecia existir em um plano diferente, e eu tinha pavor dele.
Mas então, ele voltou sua atenção para mim. Ele me trouxe um copo de limonada porque notou que eu não estava bebendo. Ele conversou comigo sobre literatura clássica, uma paixão que descobrimos compartilhar. Seus sorrisos, reservados para todos os outros, eram quentes e frequentes para mim.
"Meu irmão está caidinho", Carina sussurrou para mim mais tarde, rindo. "Nunca o vi olhar para ninguém assim."
Seu cortejo foi um turbilhão de romance de tirar o fôlego. Ele me perseguiu com uma intensidade gentil que me deixou sem ar. Ele me fez sentir como a única mulher no mundo. Nosso casamento foi um conto de fadas, transmitido para todo o globo.
No altar, ele pegou minhas mãos, seus olhos tempestuosos cheios de uma devoção que parecia eterna. "Eu, Heitor Bastos, recebo você, Júlia Leblanc, como minha esposa", ele jurou, sua voz embargada de emoção. "Para ter e para cuidar, a partir deste dia, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, para amar e para zelar, até que a morte nos separe."
Eu acreditei nele. Acreditei em cada palavra.
Nosso para sempre durou menos de um ano.
A invasão da casa foi um borrão de violência e terror. Dois homens mascarados. Carina e eu estávamos sozinhas. Eles foram brutais. Carina, a corajosa e bela Carina, viu uma chance. Ela me empurrou em direção a uma janela baixa. "Vai, Júlia! Peça ajuda! Corre!"
Eu corri. Corri pela minha vida, pela vida dela. Mas enquanto meus pés batiam no asfalto, uma dor esmagadora explodiu no meu peito. O mundo inclinou, ficou preto, e eu desabei. Eles me encontraram horas depois, inconsciente na beira da estrada.
Naquela altura, Carina estava morta.
Acordei em um hospital com duas sentenças que destruíram meu mundo.
"Carina não sobreviveu."
E de um cardiologista com um rosto sombrio: "Sinto muito, Sra. Leblanc... você tem cardiomiopatia hipertrófica. É terminal. Na melhor das hipóteses, você tem alguns anos."
Meu mundo se estilhaçou. Mas meu próprio luto foi eclipsado pelo de Heitor. Sua dor era um abismo sem fundo que rapidamente se transformou em um ódio corrosivo e consumidor.
Ele me encontrou na minha cama de hospital, seus olhos vazios de dor e raiva. "Por quê?", ele sussurrou, sua voz uma ferida aberta. "Por que você fugiu? Por que a deixou lá para morrer?"
Abri a boca para contar a ele. Para contar sobre a dor, sobre o colapso, sobre o coração defeituoso e traiçoeiro em meu peito que me falhou, que a falhou.
Mas olhando para seu rosto devastado, as palavras morreram na minha garganta. De que adiantaria? Traria Carina de volta? Não. Apenas adicionaria outra camada de dor à sua dor já insuportável - o conhecimento de que a mulher que ele amava também estava morrendo.
Então eu fiquei em silêncio. Deixei que ele acreditasse no pior. Deixei que ele acreditasse que eu era uma covarde que abandonou minha melhor amiga para me salvar. Meu silêncio foi minha penitência.
Seu amor, que antes era meu sol, tornou-se um buraco negro de ódio. Ele não se divorciou de mim. Isso teria sido muito gentil. Em vez disso, ele se casou comigo, exatamente como havia prometido, "até que a morte nos separe".
E então ele começou sua tortura lenta e metódica.
Ele encontrou Kaila Souza, uma garota que se parecia tanto com a Júlia que ele um dia amou. Ele a cobriu com todo o afeto, toda a ternura, todas as declarações públicas que um dia me deu. Ele a tornou minha substituta, uma efígie viva e pulsante de seu amor perdido, e me forçou a assistir.
Cada toque gentil que ele dava a ela era um tapa no meu rosto. Cada palavra amorosa, uma dor que me rasgava por dentro. Ele estava encenando nossa história de amor com outra atriz, e eu era a única plateia cativa. Ele estava me matando lentamente, pedaço por pedaço.
Ele não sabia da ironia. Eu já estava morrendo.
Meu médico ligou na semana passada. "Algumas semanas, Júlia", ele disse, com a voz gentil. "Talvez um mês, se tiver sorte."
Senti uma estranha sensação de paz. O fim estava próximo. Em breve, eu veria Carina novamente. Eu poderia finalmente dizer a ela que sentia muito.