"Doutor Santos, temos uma paciente não identificada, sangue O negativo, e está perdendo muito sangue. Ela está grávida, e podemos perder os dois a qualquer momento. Precisamos da sua autorização imediata para uma transfusão de emergência."
A resposta dele veio gelada, cortante, como um bisturi: "Não posso. Minha prioridade é a senhorita Whitfield. Façam o possível pela paciente, mas não posso desviar nada agora."
Então, ele desligou. Naquele instante, ele escolheu condenar o próprio filho para garantir que a ex-namorada tivesse todos os recursos disponíveis após um procedimento de rotina.
...
Nunca passou pela mente de Blake Santos que ele encontraria o caderno.
Enquanto revirava o fundo do armário em busca das abotoaduras de prata herdadas do pai, seus dedos trombaram em um diário de capa preta, escondido dentro de uma caixa de sapatos atrás das botas de inverno de Caroline. Ele estranhou na hora - não podia ser dela, já que os cadernos que a esposa usava eram sempre coloridos, cheios de rabiscos de arquitetura. Esse, porém, destoava - era liso, sóbrio, completamente preto. A curiosidade, sentimento que raramente o dominava, falou mais alto. e ele abriu o diário.
Logo na primeira página, a caligrafia firme de Caroline saltava diante de seus olhos: Plano de Divórcio de 100 Pontos.
Blake estreitou o cenho e, logo abaixo, leu as regras: Pontuação inicial - 100. Cada ação que provar que este casamento é um erro resultará em perda de pontos. Quando chegar a zero, pedirei o divórcio. Sem exceções.
Um riso curto e sem graça escapou de sua boca. Devia ser algum joguinho bobo da esposa, nada além disso. Mas, ainda assim, folheou as páginas.
Cada folha trazia uma data e uma anotação meticulosa, com m registro detalhado de supostas falhas suas: "-1 Ponto: Ele esqueceu nosso aniversário. De novo, pois estava jantando com Ariana."
"-2 Pontos: Ele cancelou nossas férias porque o cachorro da Ariana estava doente e passou o fim de semana no apartamento dela."
"-1 Ponto: Ele me chamou de Ariana por engano."
"-3 Pontos: Ele comprou a última garrafa de um vinho raro que eu procurava há tempos, só para dar de presente de aniversário para Ariana."
Página após página, as acusações se acumulavam - um retrato doloroso e implacável de sua negligência. Mas, em vez de culpa, foi a irritação que atravessou o peito de Blake. Para ele, esse caderno não revelava suas falhas, e sim a obsessão de Caroline com a amizade dele com Ariana Whitfield.
Ariana, afinal, havia sido o grande amor da vida dele, a mulher que despedaçara seu coração ao partir. E Caroline sabia disso desde o começo. Ele apenas se casou com ela como quem busca porto seguro: uma união conveniente com alguém de boa família, capaz de cuidar da casa dos Santos enquanto ele se dedicava à medicina. Mas, no íntimo, ele tentava sarar um coração que jamais se recuperara por completo.
Blake fechou o diário com força, a irritação se convertendo em frieza, e o atirou de volta na caixa, desdenhoso. Ridículo, infantil, sem valor. Por fim, encontrou as abotoaduras, fechou o armário e deixou para trás o que julgava ser apenas uma bobagem, pois tinha coisas mais urgentes em mente. Na sua pasta, guardava um colar feito sob medida para Ariana, presente para a inauguração da galeria dela que seria nessa noite. Ele precisava estar lá.
Na sala de estar, Caroline desenhava em silêncio, sentada no sofá. Quando Blake entrou, ela ergueu os olhos e eles brilharam por um instante, uma centelha de esperança, algo que ele já não notava havia muito tempo.
"Você chegou cedo", comentou ela, num tom suave.
"Vou ter que sair de novo daqui há pouco", respondeu ele, afrouxando a gravata. "Hoje é a inauguração da galeria da Ariana."
A luz no olhar dela se apagou de imediato. "Ah... Claro."
Sobre a mesa de centro, outro caderno estava aberto, e Blake lançou um olhar rápido, vendo esboços de um quarto de bebê, repletos de detalhes delicados - um berço, um móbile de estrelinhas, e uma poltrona de balanço. Um aperto estranho percorreu seu peito, embora não soubesse nomear a sensação. Eles tentavam ter um filho havia mais de um ano.
"É projeto para algum cliente?", ele indagou, em voz neutra.
Caroline fechou o caderno de esboços depressa: "É só uma ideia."
Ele não insistiu, porque não se importava - sua mente estava em Ariana. Ele consultou o relógio e percebeu que precisava sair logo, pois queria ser o primeiro a chegar para presenciar a reação dela ao receber o colar.
Ele ficou imóvel, como uma barreira silenciosa entre os dois, até que o toque do celular rompeu o silêncio. Era Mark, seu melhor amigo.
"Blake! Liga a televisão, depressa!", a voz de Mark soava em puro desespero.
Sem hesitar, Blake agarrou o controle remoto e ligou a TV, que imediatamente exibiu um noticiário ao vivo. Na tela, um prédio em chamas iluminava a noite, enquanto uma fumaça densa e escura se espalhava pelo céu, e o repórter, com a voz carregada de urgência, descrevia a cena.
"Bombeiros já estão no local da nova Galeria Whitfield, no centro, onde um incêndio de grandes proporções começou cerca de uma hora antes da inauguração..."
O sangue de Blake gelou.
Ariana. Nada mais importava, apenas esse nome.
Ele pegou as chaves e o casaco, disparando para a porta sem sequer se despedir de Caroline. Ele não olhou para trás, nem viu a expressão arrasada dela enquanto o observava partir.
Movida por um impulso irracional, Caroline o seguiu - não sabia explicar, mas algo dentro dela precisava presenciar tudo com os próprios olhos. Ela atravessou a cidade com as mãos coladas ao volante e o coração batendo em um ritmo doentio contra o peito.
Ao chegar, ela se deparou com o caos: viaturas da polícia bloqueando a rua, sirenes e luzes piscando, e o rugido das chamas engolindo o edifício.
Blake havia abandonado o carro e discutia com um bombeiro, o rosto tomado pelo pânico. "Ela está lá dentro! Preciso entrar e tirá-la!"
"Senhor, não pode! O prédio está prestes a desabar!", retrucou o bombeiro.
"Não importa! Ela está presa!"
Mark tentava contê-lo. "Blake, calma! Eles vão resgatá-la!"
"Eles não são rápido o suficiente!", a voz dele saía áspera, embargada por um desespero que Caroline jamais tinha escutado - não por ela. Nunca por ela.
Os olhos dele encaravam as chamas como se todo o seu mundo estivesse ali, e Caroline, nesse instante, compreendeu que estava mesmo.
Empurrando Mark para o lado, Blake correu em direção à entrada e berrou para o bombeiro que o segurava: "Minhas mãos! Você sabe quem eu sou? Eu sou Blake Santos! Minhas mãos valem milhões, fazem milagres! Mas eu trocaria tudo, a carreira inteira, só para ter certeza de que ela está viva! Agora me deixem entrar!"
Era mais do que um grito - era uma confissão, uma verdade tão cruel que atingiu Caroline como um soco.
Foi então que Mark a avistou parada nas sombras, pálida, e o horror estampou seu rosto.
"Caroline... eu..."
Nesse momento, Caroline ouviu a voz baixa de Sarah, esposa de Mark, sussurrando: "Meu Deus, Mark, ele nunca deixou de ser obcecado por Ariana desde o colégio. Achei que casar com Caroline fosse resolver, mas só piorou."
As palavras de Sarah destruíram qualquer ilusão. Não se tratava de descuido ou frieza - era uma história de amor em que Caroline nunca coube. Ela não passava de um obstáculo, uma sombra esquecida.
Durante três anos, ela tentou, e o amou com toda a força, acreditando que um dia ele a enxergaria. Decorou a casa, administrou os compromissos sociais, o consolou nas noites exaustivas após cirurgias e suportou o olhar frio da família dele. Ela alimentava a esperança de que seu amor seria capaz de curar as feridas antigas e, no fim, se tornaria suficiente. Mas não passava de uma mentira que repetia a si mesma.
A verdade sempre esteve ali, em cada aniversário ignorado, em cada plano desfeito, em cada olhar que a atravessava como se fosse feita de vidro.
O jogo dos 100 pontos não era uma brincadeira, mas um respiro. Uma maneira de medir a lenta agonia do seu amor, de fixar um limite e traçar uma saída para o casamento que a esvaziava. E, nessa noite, ao vê-lo disposto a se lançar nas chamas por outra, sentiu boa parte desses pontos se despedaçar.
De repente, um clamor surgiu da multidão e Blake apareceu coberto de fuligem, trazendo Ariana nos braços. Ela tossia, mas estava consciente e praticamente ilesa enquanto ele a segurava como se fosse o tesouro mais precioso do mundo, com o rosto enterrado em seus cabelos. Blake a levou até a ambulância e murmurou palavras em seu ouvido, mas nem sequer uma vez procurou Caroline com os olhos.
Quando viu Ariana entregue aos paramédicos, o corpo de Blake enfim cedeu - a adrenalina desapareceu, e ele tombou, inconsciente pela fumaça que havia inalado.
Na sala de espera do hospital, com o ar impregnado de antisséptico e as paredes brancas refletindo a frieza, Caroline se perdeu em lembranças, no dia do baile beneficente em que o conheceu, quando ele parecia o homem mais brilhante e fascinante que já tinha visto - um neurocirurgião renomado, herdeiro da poderosa família Santos. Ela, uma jovem arquiteta cheia de ambição, ousou se aproximar.
Naquela época, Blake ainda estava de luto pelo casamento de Ariana com outro, e Caroline sabia. Mas quando, seis meses depois, recebeu o pedido de casamento, acreditou que tinha vencido, que sua dedicação havia rompido a barreira que ele mantinha.
A ilusão, no entanto, não resistiu por muito tempo. Um ano após o matrimônio, em uma festa, ouviu um dos amigos de Blake, bêbado e despreocupado, revelar a verdade: "Blake só se casou com Caroline porque Ariana havia se casado. Precisava de uma distração, de uma esposa para acalmar a família. A pobre garota acha mesmo que ele a ama."
Naquele dia, Ariana se tornou uma ferida aberta no coração de Caroline, um espinho que se cravou no seu casamento. Foi também o dia em que Caroline comprou o diário preto, simples, que passou a ser seu último ato de autopreservação, uma forma de medir a dor até que ela se tornasse insuportável.
E a volta de Ariana a Boston, depois do divórcio, apenas acelerou tudo - os pontos de sua lista se apagavam rápido demais, enquanto o coração, antes cheio de esperança, se transformava em pedra fria e pesada.
Um médico interrompeu seus pensamentos ao se aproximar. "Senhora Santos? Seu marido está estável. Inalou muita fumaça, mas vai se recuperar. A senhorita Whitfield também está bem, com apenas alguns arranhões."
Logo depois, Mark e Sarah se aproximaram com o rosto carregado de pena, e Sarah, tocando levemente o braço dela, disse: "Caroline, ele ainda vai cair em si. A família Santos vai garantir que ele te trate da forma certa."
Caroline não respondeu - apenas encarou os dois com um gosto amargo na boca, levantou-se e deixou a sala de espera.
De volta à casa vazia, ela caminhou até o closet e retirou o diário preto, abrindo na última página escrita.
Com a mão firme, destampou a caneta.
"-5 Pontos: Ele entrou em um prédio em chamas por ela."
"-10 Pontos: Ele disse que desistiria da carreira por ela."
"-10 Pontos: Ele desabou depois de salvá-la, e tanto o primeiro quanto o último pensamento dele foram nela, não em mim."
Ela fez a conta - restavam pouquíssimos pontos. Ela sabia que o fim estava cada vez mais próximo.