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O Som do Sal e do Desejo

O Som do Sal e do Desejo

img LGBT+
img 4 Capítulo
img Luiz Bechelli
5.0
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Sinopse

Um romance histórico LGBTQIA+ sobre amor, desejo e resistência em tempos de silêncio. Brasil, década de 1920. Quando o marinheiro Joaquim desembarca em uma vila litorânea, não espera encontrar muito além do sal grudado à pele e a solidão que carrega no peito. Mas tudo muda quando cruza o olhar de André, um jovem da vila, inquieto e sensível, que desperta nele sentimentos até então inexplorados. Entre encontros furtivos, olhares carregados de significado e a constante ameaça da repressão, os dois iniciam uma jornada intensa de descoberta - sobre o amor, o corpo e a coragem de existir. Ao lado da destemida Beatriz, que encontra também seu caminho afetivo ao lado de Lucas, eles enfrentarão perseguições, fugirões pela floresta, e encontrarão refúgio em uma aldeia indígena, onde cura física e espiritual os transforma para sempre. Com uma escrita poética e envolvente, O Som do Sal e do Desejo fala sobre amar em tempos de medo, sobre encontrar liberdade nos laços que escolhemos, e sobre o poder de reconstruir o próprio destino - mesmo quando o mundo insiste em silenciar quem somos. Para leitores que se emocionam com histórias de amor proibido, cura ancestral e a força silenciosa da resistência.

Capítulo 1 Maré de Chegada

O céu ainda guardava tons alaranjados quando o navio atracou na enseada. A água batia mansa contra os cascos de madeira, como se cochichasse segredos antigos entre as pedras da costa. Era fim de tarde, e o ar cheirava a sal, peixe fresco e maresia - o mesmo cheiro de sempre, mas naquele dia, Joaquim achou que havia algo a mais no vento. Algo que ele não sabia nomear.

Desceu com passos firmes, botas marcando o chão de terra batida do pequeno cais. A barba por fazer, o queixo tenso, os ombros largos carregando o peso de muitos mares - e de coisas que ele nunca soube explicar. Joaquim Duarte não era homem de palavras. Era mais feito de silêncios e cicatrizes, como aquela no ombro direito, escondida sob a camisa surrada. A maioria achava que era de uma briga em alto-mar. Só ele sabia o que ela realmente lembrava.

O resto da tripulação dispersou em risos e vozes altas, caminhando rumo ao único bar visível ali perto - uma construção simples, com varanda de madeira rangendo sob o vento e uma música tocando de longe, feita de violão, copos e risos. Joaquim seguiu, mas em silêncio, como sempre fazia. Por dentro, sentia a inquietação de um mar revolto. Por fora, mantinha o rosto duro, como se fosse feito do próprio convés.

Foi ali, entre um gole de cachaça e outro, que ele o viu pela primeira vez.

O rapaz estava atrás do balcão, enrolando cigarro com dedos ágeis, a cabeça um pouco baixa, mas os olhos atentos a tudo. Cabelos escuros e bagunçados, como se o vento tivesse brincado com eles. Camisa branca, com os botões de cima soltos e o peito dourado pelo sol à mostra. Havia algo de calmo naquele corpo jovem, mas era um silêncio diferente do dele - um silêncio que parecia observar o mundo, não fugir dele.

André Valentim era seu nome, como Joaquim viria a descobrir mais tarde. Por ora, era só "o moço do bar". Ele sorria com o canto da boca quando alguém fazia piada, mas seus olhos, profundos, pareciam carregar histórias mais velhas do que sua idade permitia. E foi com esses olhos que ele olhou Joaquim - não como se o visse pela primeira vez, mas como se o reconhecesse.

Foi rápido.

Rápido demais para o coração de Joaquim, que bateu estranho dentro do peito. Ele desviou o olhar, levou o copo aos lábios, como se o álcool pudesse apagar aquele instante.

Mas não apagou.

Naquela noite, deitado na rede improvisada do alojamento do navio, Joaquim tentou ouvir apenas o mar. Mas o som era outro. Era o som do sal batendo contra o casco, era o som de um desejo novo, ainda sem nome, sussurrando pelos cantos de sua alma.

A garrafa de cachaça estava suada sobre o balcão quando Joaquim pediu outra dose. André nem precisou perguntar. Encheu o copo com a destreza de quem fazia aquilo desde menino. Não trocaram palavras - só o tilintar do líquido encontrando o vidro, e o leve roçar dos dedos quando ele empurrou o copo de volta. Foi um toque rápido, involuntário. Mas a pele de Joaquim reagiu como se tivesse encostado em brasa.

- Não é daqui, né? - a voz de André veio mansa, rouca de fim de tarde, como quem fala só por falar, mas espera ouvir.

Joaquim apenas balançou a cabeça, sem encará-lo. Estava acostumado a gente nova a cada porto, a perguntas que não levavam a lugar nenhum. Mas aquela voz... aquela voz tinha alguma coisa.

- Eu também não sou, não. Quer dizer... sou daqui agora - completou o rapaz, com um meio sorriso.

Era isso que ele fazia: oferecia pedaços de si, pequenos, medidos, como quem aprende cedo que mostrar demais pode ser perigoso. Mesmo jovem, havia nos gestos de André um cuidado antigo. Como se ele tivesse passado a vida equilibrando desejos com medo de tropeçar neles.

Joaquim finalmente o olhou de novo. Os olhos castanhos de André tinham brilho de água parada ao entardecer - calmos por fora, mas profundos, imprevisíveis. Pela primeira vez em muito tempo, Joaquim se sentiu visto. Não por fora, não como corpo ou farda ou função. Mas por dentro. Como homem. Como algo que nem ele sabia nomear.

Sentiu-se nu, embora estivesse vestido da cabeça aos pés.

Um dos tripulantes gritou uma cantiga obscena do outro lado da sala, quebrando o silêncio pesado entre os dois. Joaquim se virou bruscamente, como se voltasse à superfície depois de prender a respiração tempo demais.

- Obrigado pela bebida - murmurou, levantando-se.

André assentiu, olhando-o ir, mas sem dizer nada.

Lá fora, o vento trazia o cheiro das algas e das roupas lavadas nas casas próximas. Joaquim respirou fundo, tentando se lembrar de quem era antes daquele olhar. Mas algo tinha mudado. Algo fora do seu controle - e ele odiava isso.

Mais tarde, deitado na rede do navio, ouvia os sons da vila adormecendo: o ranger das janelas, o assobio do vento, o latido de um cachorro distante. Mas havia outro som que insistia em voltar. O som do mar, sim, mas mais do que isso - o som que ficou no dedo onde o toque aconteceu, o som que fazia eco no lugar do silêncio entre uma pergunta e outra.

O som do sal.

O som do desejo.

A luz do sol atravessava as frestas das janelas, espalhando risos e aromas de café na vila adormecida. Joaquim caminhava pelo cais, os passos firmes mas menos seguros que na noite anterior. O mar refletia o céu azul, tranquilo, sem pressa - mas dentro dele, o mar revolto insistia em não se acalmar.

Ele tentou se convencer de que o encontro na taverna era só mais uma das distrações passageiras dos portos. Mas não conseguia tirar da cabeça o olhar de André, tão quieto, tão intenso, como se tivesse visto além da superfície dura do marinheiro.

Quando passou perto do bar, ouviu uma risada leve e o som familiar do violão dedilhado com calma. André estava sentado na varanda, a camisa ainda aberta no peito, os olhos perdidos no horizonte, mas a música parecia falar diretamente para ele.

Por um instante, Joaquim hesitou, o corpo inteiro tenso. Então, como se puxado por um fio invisível, aproximou-se devagar.

- Bom dia - disse André, sem parar de tocar. O sorriso era um convite, uma promessa silenciosa.

Joaquim respondeu com um aceno contido, tentando esconder o calor que subia do rosto. Sentou-se ao lado dele, no velho banco de madeira que rangia sob o peso.

- Você é bom nisso - disse, apontando para o violão.

André olhou para ele, olhos brilhando, e deu de ombros.

- Ajuda a esquecer o mundo, às vezes.

Um silêncio confortável pairou entre eles, recheado de palavras não ditas e desejos disfarçados.

- Você... tem medo? - Joaquim perguntou, quase sem querer.

André parou de tocar e encarou-o.

- De quê?

- De sentir. De se deixar ser o que é.

André sorriu, meio triste, meio desafiador.

- Acho que não. Acho que tenho medo é de não ser. De fingir tanto que esqueço quem eu realmente sou.

Joaquim sentiu o peso daquela confissão como uma onda que quebrava e recomeçava.

E naquela manhã, entre o som do mar e do violão, nasceu uma promessa silenciosa - a promessa de que talvez, naquele lugar esquecido pelo tempo, algo pudesse finalmente nascer.

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