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Bastou uma palavra do recém-chegado para que todos se retirassem. Um a um, num fluxo lento e silencioso, que torna o ambiente, a cada baque de passos, mais pesado, até que toda a tensão começa a me afetar. Engulo em seco e meu corpo endurece. O que esse homem pretende, mandando todos embora assim? Ele não pode estar querendo me bater, certo? Todos me chamaram por mestre, ele não poderia...
O ranger da porta, que chorou até fechar, finalmente, num estrondo seco, que ecoa alto em meus ouvidos, é o responsável por cortar meu raciocínio, e fazer descer mais um bolo de saliva por minha garganta. O silêncio. O silêncio faz barulho em meio a seu encarar profundo. Profunda desconfiança. O pouco de discrição que tinha, de repente cai como uma máscara que tem o barbante desatado. Ele começa a andar.
Seus passos são tão certos de si que apavoram. Não há um pisar desajeitado, ou sequer sinal de hesitação. São elegantes. A elegância que só se vê quando neva no inverno, quando o gelado se materializa e não abre margens para dúvidas de sua presença. Apesar das íris cor de sangue quente, ele era o próprio inverno mesmo perante a lareira a estalar. A neve cai do lado de fora, mas também parece prestes a cair sobre mim, conforme ele se aproxima. meu coração aperta, mas eu nada posso fazer além de esperar. Esperar que ele me alcançasse.
Ele me alcança, mas não me toca. Fica parado na beira na minha cama, parecendo pensar em muitas coisas, mas não fazendo nada além de fechar os punhos e perguntar:
- Está fingindo, não está?
As suas palavras duras são como alfinetadas de incongruência. Não deixava de ser verdade a sua suposição, pois na verdade não se tratava de amnésia meu problema. Eu era um viajante de dimensões, pelo menos assim eu seria denominado, no mundo do qual vim, mas mesmo assim eu senti que ele não tinha o direito de duvidar de minhas palavras, e um sentimento falso de injustiça começa a tomar conta do meu peito. Eu queria convencê-lo da minha história.
- Com...
- Pare com isso. Você pode até enganar os outros, mas não a mim. Te conheço há muito tempo, mais do que gostaria, para me deixar enganar por algo tão ridículo.
Nos conhecemos há muito tempo? Somos parentes, então? Talvez irmãos? Sim, as perguntas surgem, mas não as levo adiante. Eu tinha outra prioridade naquele momento.
- Mas eu não estou mentindo, eu realmente não lembro de nada! Não sei o que te faz acreditar que não estou sendo verdadeiro, mas eu realmente não lembro de nada. Não sei nem onde estou, ou como me chamo...
Mesmo sem ver seu rosto, consigo sentir que me encara por todo o tempo, e quanto mais pressionado me sinto, mas sinto a necessidade de me explicar. No meio disso, uma luz no fim do túnel. Talvez ele pudesse saber de algo, pensei. E decido arriscar.
- Na verdade, eu consigo lembrar de um nome...
Um breve silêncio.
- Diga.
Hesito, pois algo me diz que não é uma boa ideia citar alguém que não sei bem quem é, mas mesmo assim falo, contra esse sentimento.
- Alexander... - O rosto dele contrai, e meu coração aperta. Ele o conhece, sem dúvidas, e minha curiosidade me impede de parar. - Alexander Whitehouse...
Rugas tornam em feio o rosto esculpido. E uma mistura de ódio, repulsa, dor, faz minhas mãos suarem de nervoso. Talvez fosse melhor ter permanecido calado. Minha única saída, é tentar disfarçar de alguma forma, e o jeito desesperado que apareceu foi fazendo papel de estúpido.
- O que foi? Não é como me chamo? - Minhas bochechas esquentam no mesmo instante. Que pergunta idiota, pensei. Mas pelo menos serviu para aliviar um pouco a tensão no rosto do estranho, que a pouco parecia pronto para me matar.
- Não. Não é você.
A resposta é surpreendentemente curta, e sem explicações mais elaboradas. O que me deixou um tanto frustrado, e me motivou a tentar arrancar mais alguma coisa dele. Eu queria saber quem era Alexander.
- Se não sou eu, então quem é Alexander? - Talvez com a resposta eu possa juntar as peças do quebra-cabeça...
- Não importa.
Ele não estava disposto a ceder de forma alguma, e todas minhas esperanças quase se esgotam com essa resposta, mas mesmo assim opto por ainda persistir mais um pouco. Talvez um pouco mais e...
- Para mim importa. - E acabo o irritando ainda mais. Fica claro o quanto aperta os punhos, tentando manter o autocontrole. Talvez por eu ainda estar acamado. Passam-se segundos sem diálogo, até que ele vira de costas para mim, numa tentativa clara e rude de encerrar o assunto ali, preparado para abandonar meu quarto.
- Seu nome é Sebastian, Sebastian Whitehouse.
Whitehouse?! É o mesmo sobrenome da criança do sonho!
- Espera! Esse Alexander, então... por acaso somos 'família'?
Tento insistir, mas ele não responde, e nem move um centímetro do corpo para me proporcionar atenção, mas eu, assim como ele tem me demonstrado, também teimo até o final.
- Me responda, por favor! É importante para mim saber, eu e ele temos o mesmo sobrenome, então...
- E o que isso tem de tão especial? Eu e você também compartilhamos o mesmo sobrenome, e não somos 'família'. Estamos apenas acorrentados um no outro, numa prisão que somos obrigados a fazer teatro, toda vez que saímos de casa. Que diferença faz um mesmo sobrenome, se só isso que resta na nossa relação?!
Meu sangue gela. Tenho o mesmo sobrenome desse homem? Seria ele meu irmão, meu primo? Quem era esse homem para mim? Quanto às relações de família, para mim não foi difícil de entender. Eu mesmo, não posso dizer que tinha uma família para contar, mesmo que fossem vivos. Mas quando estou prestes a abrir a boca, tentar entender melhor a relação que temos, ele é mais rápido em me interromper.
- Aposto que Alexander, por acaso ainda estiver vivo, não pensa muito diferente de mim. Esqueça esse nome. É um favor que fará a ele, e a você.
Meu corpo entorpece. O que será que aconteceu com Alexander, para esse homem usar palavras tão duras? O que o antigo dono desse corpo fez, para despertar tamanho ódio por parte de alguém? Eu precisava de respostas, mesmo que elas doessem.
- Espera, o que você quer dizer com isso?! Quem é você?!
Pergunto, mesmo que suas costas me parecessem maiores e mais largas do que antes, e ainda mais inalcançáveis. Finalmente ele se move, para virar-se de soslaio, a vislumbrar-me da mesma forma que se vislumbra um inseto, uma barata suja que mexe suas antenas a causar asco, pedindo para ser pisoteada.
- Chamo-me Joseph. E é bom não esquecer mais meu nome. Isso se não estiver inventando essa amnésia só para causar problemas, como bem combina com você...
- Eu entendi, Joseph, mas o que você quis dizer sobre Alexander? - Eu já perdia minha paciência, enquanto ainda lutava por uma migalha que fosse. Eu estava desorientado, sem saber nada sobre esse mundo ou sobre ninguém. Eu precisava de algo. Alguma luz. Uma explicação para que eu estivesse ali, vivo de novo.
Mas uma vez o silêncio enquanto espero sua resposta me atormenta, e sinto que ele gosta disso.
- Assim que Lin se recuperar, ele virá te ver e explicará como as coisas funcionam por aqui. - Ele não cede, mais uma vez. - Nossa conversa acaba aqui... Caro esposo... - As últimas palavras entram em meus ouvidos como um palavrão mal colocado.. A amargura em Joseph é evidente, e todo o meu corpo sente isso, misturado ao peso daquela informação, que por si só já seria suficiente para me balançar. Um tiro no peito, a dilacerar todas as suposições que a alguns minutos atrás eu tinha criado, e a tornar num papel branco a minha mente em choque, que pouco mais que um fio tinha para manter minha racionalidade.
- Esposo? Como... Esposo...eu..? Você...?
Logo eu, que nem um bom beijo de língua sei dar direito, renasci num homem casado?! E pior de tudo, num casamento onde aparentemente um odeia o outro?! Quando escapo da confusão dentro de mim, Joseph já está com a mão na maçaneta, prestes a sair. E eu, perdido e inconsequente de minhas ações, grito e ordeno, tento me levantar da cama apenas para cair no chão, incapaz de me erguer sozinho. Mesmo assim, Joseph nem se dá ao trabalho de olhar para trás. Abre a porta, dá as ordens aos empregados, que prontamente me ajudam, e some na imensidão dos corredores.
Joseph Whitehouse. Pergunto-me, o que fiz para ser merecedor de tanto ódio seu? Ou melhor, o que fez Sebastian Whitehouse, antes de eu ser ele? Com a ajuda de outros, fui posto de volta na cama. Aconchegado nos lençóis e cobertas. Eles saem em seguida, deixando-me acompanhado pelas minhas dúvidas. E mesmo que angustiado, tudo que eu podia fazer era esperar. Em algum momento, esperava eu, as respostas teriam que aparecer...