/0/1371/coverbig.jpg?v=62cae47ac4a4ce0d08ba85851d8bb9a6)
Abri meus olhos lentamento e olhei a minha volta. Tudo ardia em chamas, o vilarejo inteiro estava pegando fogo. Casas e homens queimavam, muitos deles corriam e gritavam, tentando se salvar, correndo do fogo, correndo da dor, correndo de mim, de nós. Eu gostava disso, isso me saciava, mesmo que eu soubesse que era errado, isso agradava à nós dois. Ele se ergueu o mais impotente possível levantando voo, abriu a boca e cuspiu novamente. Não queríamos ver nada restando, apenas cinzas. Quanto mais fogo eu via, mais vontade eu tinha de incendiar tudo. Até que... uma voz; bem distante me chamou.
Eu não estava conseguindo ouvi-lá direito, minha mente estava apenas focada na destruição generalizada, mas ela insistia em tentar se fazer ouvir. E então, eu ouvi, "pare", ela dizia. Foi um leve choramingar, uma súplica, mas eu consegui ouvi-lá, e ela implorou novamente "pare". Senti meu peito apertar, minha garganta se contrair, "pare, você precisa parar! Precisamos parar", era eu, era eu quem estava chamando! Meu inconsciente gritava desesperadamente para que eu recuperasse o controle. Minha cabeça começou a rodar e minha visão ficou turva, agora eu já não estava mais voando, estava no chão, com o meu corpo se contorcendo e se retraindo. Eu estava voltando, voltando a minha forma humana, ele não queria permitir, ele queria se manter no controle, pois precisava de mais mortes, mais sangue, mais dor, mais destruição. Fechei meus olhos com força e gritei, gritei de dor por estar tendo a transformação contra a vontade dele. Espasmos pecorriam nosso corpo, mais um grito, devia ser o meu, já não sabia mais dizer, e se contorcia e doía tanto, que para mim parecia que eu estava ali há horas. Eu conseguia ouvir o som da pele se rasgando e ossos se quebrando, eu queria vomitar e chorar de tanta dor, era uma tortura quando não havia o consenso dos dois para a transformação. Então os espasmos foram se acalmando, a dor foi diminuindo, minha respiração foi ficando tranquila mas meu corpo foi ficando mais pesado e dolorido. Abri e fechei minhas mãos lentamente, sentindo a terra e as cinzas entre os dedos, com o meu rosto colado ao chão, sentindo o gosto dela na minha boca. Tentei me levantar me apoiando em minhas mãos, apesar da dor, me pus de pé, e apesar de estar nua, não sentia frio, meu corpo ainda queimava com o fogo dentro de mim. Observei o meu entorno e vi apenas chamas, corpos e destruição. A maioria das casas agora, suas metades já tinham praticamente virando destroços e o fogo já não queimava tão forte, pelo jeito não foi apenas impressão, minha transformação havia demorado mesmo. Caminhei lentamente pelo vilarejo, procurando algo para me cobrir e por algum sobrevivente, mas a única coisa que eu via, eram corpos, corpos queimados, semi queimados, corpos que não mexiam um único músculo, estavam todos mortos. E, provavelmente, os que tinham sobrevivido, estavam já bem longe dali. Eu estava me sentindo em um torpor, onde nada chegava em meu coração, ainda não. Eu apenas bloqueava os corpos de minha mente, todas essas mortes.
Encontrei uma casa que não estava tão destruída, ainda tinha o telhado e apenas uma parte da frente da casa estava queimada. Entrei e caminhei pela casinha, era pequena e apenas com dois cômodos, o quarto que era junto do banheiro, com apenas uma cortina separando eles, para se ter o mínimo da privacidade; e havia a cozinha, nela tinha uma manta esticada no canto, cheia de pratos em cima, provavelmente era ali onde faziam a refeição. Encontrei um pedaço de pão velho no chão, foi a única comida que encontrei na casa. O vilarejo era pobre, mas aquela família em específico, era bem pobre. Peguei o pão e comi, mesmo duro e descendo rasgando minha garganta, engoli tudo. Havia um mês que eu não comia nada, apesar de ser essa a minha intenção, não consegui controlar o instinto de sobrevivência, principalmente agora, estava muito mais fraca, por conta da transformação. Voltei para o quarto e deitei na única cama que havia ali, me cobri com a manta e fechei meus olhos.
"Eu estava sentada perto de um penhasco, havia um mês que eu estava sentada aqui, apenas existindo, apenas não querendo existir. Perdi as contas de quantas vezes tentei me jogar daqui de cima, mas ele não me permitia morrer. Antes que meu corpo chegasse ao chão, ele fazia eu me transformar. Era assim nossa convivência, foi por esse motivo que eu não tinha mais um lar.
Primeiro eu senti o cheiro, depois ouvi os sons das risadas, deviam ser uns 5 homens se aproximando, mas eu não me importava, não queria me importar. Algo se agitou dentro de mim, ele se importava, mas não era ele quem mandava aqui.
"Ei, tem uma garota aqui!", um deles gritou.
O homem que gritou se aproximou de mim e os outros vieram logo em seguida atrás dele.
"Olha só o que temos aqui.. mas você não é uma gracinha?!" disse o segundo que apareceu, um barrigudo narigudo com bafo de bebida. Ele passou a mão em meus cabelos e apertou o meu ombro. "Você não fala não?!", não respondi, continuei olhando para frente fixamente.
"Acho que hoje é o nosso dia de sorte, rapazes! Não me importo se ela não fala, é bom que ela não vai gritar" comemorou um magrelo
"Bom, mais ou menos né, ela está fedendo! Há quanto tempo você não toma um banho, docinho?" o homem baixinho zombou, enquanto aproximava o nariz de mim.
Todos gargalharam com o comentário dele, ainda assim, os outros foram se aproximando até me rodearam. "Na realidade, eu não me importo com o cheiro" disse o maior do grupo, ele era grande, forte e com uma longa barba. Ele ficou de frente para mim, se inclinou até estar com o rosto de frente ao meu, segurou minha nuca e sussurou no meu ouvido "quando eu for meter em você, com certeza não é no seu cheiro que eu vou estar pensando". Não tive nem tempo de processar o que ele disse, pois logo em seguida ele me acertou com um soco no queixo, me derrubando no chão. Meu rosto bateu com força em uma pedra, me causando uma dor intensa, além da que eu já estava sentindo devido ao soco. Ele me deitou de costas para o chão e começou a rasgar minha roupa. Minha mente que já mal estava ali, agora não tinha sobrado nada. Eu não iria reagir, eu não queria, eu não merecia reagir. Isso, isso que estava acontecendo, isso sim eu merecia, era meu castigo pelo o que eu havia feito. Eu sempre fui uma menina má e suja, sim, eu me recordo, meu pai sempre me lembrava disso, e agora como uma mulher assassina, só concretizei mais ainda esse fato. Uma sensação nostálgica começou a querer me invadir, mas antes que eu pudesse recebê-la, fechei meus olhos e me desliguei totalmente da realidade .
Sentindo meu corpo formigar e esquentar, abri meus olhos, eu já não estava mais no chão, e o homem barbudo já não estava mais em cima de mim, e sim, tendo sua cabeça sendo arrancada pela Sua boca. Eu havia me transformado, Ele havia tomado controle da situação, novamente.
" É uma receptáculo!", gritou um deles.
Eles tentaram correr mas fomos mais rápidos, depois de arrancar fora a cabeça do grandão, ele acertou mais dois deles com a sua pata, arremessando-os longe, consegui ouvir o som de suas colunas quebrando ao baterem nas árvores. Faltavam 2. Eles estavam tentando fugir, mas com apenas um passo, nós os alcançamos. Ele agarrou um pela boca, jogando-o para atrás de nós, fazendo-o cair do penhasco. Por último, segurou o único sobrevivente com sua pata, e o incendiou até que toda sua carne queimasse e derretesse, e sobrasse apenas seus ossos. Matamos todos, mas não era o suficiente, ele não estava satisfeito e eu também não, e ele podia sentir isso. Um ódio consumia nosso peito, uma raiva que em grande parte eu não entendia, mas tínhamos em comum. Levantamos voo e pelos céus, procuramos por mais vítimas, foi quando encontramos o vilarejo."
Acordei suando e hiperventilando. Eu não me lembrava o porque estava naquele vilarejo, minha mente estava nublada, com a transformação involuntária e as mortes. É...tudo aconteceu novamente. Como eu poderia continuar assim? Isso precisava parar, nós precisávamos parar. Não, mas eu não queria pensar nisso, não quero pensar no que aconteceu, mas... se eu não pensar, como vou faze-lo parar? E quanto ao que eu sinto? Meu ódio o alimentava, ele já tinha tanta raiva, tanta dor, quando juntávamos as nossas, nada nos parava.
Eu estava fora de controle. Eu precisava pensar nas mortes, mas eu não queria pensar nelas... se eu pensasse, eu sucumbiria, eu não posso suportar o que eu fiz. Eu não sei o que fazer, estou perdida! Eu errei, eu matei, e todos me abandonaram, até mesmo Dhruva me abandonou... como ele pode? Ele era meu melhor amigo, era até bem mais que isso em meu coração... mas não posso culpa-lo, quem seria capaz de me perdoar? Nem minha própria familía me perdoou; eu não me perdoei...Talvez se eu ficasse aqui, até morrer de fome, resolvesse o problema, Ele não pode me obrigar a comer. Farei um favor a todos...
Voltei a deitar na cama, com apenas a manta cobrindo o meu corpo, nada importava, nada mais importava, eu só queria partir.