- Sente-se, irmã - disse a mãe, colocando a cadeira à frente deles.
Obedeci em silêncio. Minhas mãos relataram sobre o colo, frias e trêmulas. O olhar dele continuou sobre mim, firme, como se eu estudasse. Não havia um traço de emoção em seu rosto. Nenhum sorriso. muito visível.
Mas havia algo... autoritário. Este homem estava acostumado a ser obedecido. E não havia ameaça em sua expressão, eu senti o peso de sua presença como uma exigência silenciosa.
- Descobri a chave - começou a mãe, sem rodeios. - Estava sobre minha mesa, sob um dossiê de registros paroquiais. Possivelmente, alguém a usou e depois a devolveu sem avisar. Não há sinal de arrombamento, nem de uso indevido. Nada foi removido da sala dos arquivos.
Assenti em silêncio, esperando uma reprimenda. Esperando uma humilhação.
Mas ela não veio.
- O Padre Andrei me procurou há pouco - contínuo. - Disse que esteve com a irmã diante da porta dos arquivos na sexta-feira. Confirmou sua versão dos fatos.
Meu olhar caiu por um momento. Então voltei a encará-lo, com cautela. Ele permanecia em silêncio ao lado dela, mas seus olhos continuavam cravados em mim. Eu não consegui decifrar se ele estava irritado, magoado ou apenas... observando. Analisando. Talvez ele estivesse apenas esperando para ver como eu reagiria.
Seu rosto permanece sereno, mas a firmeza nos olhos não me deixa esquecer quem ele era. Ou o que representava. A maneira como ele me olhou não era gentil. Era firme. Exatamente firme. Como alguém que sabia que não precisava levantar a voz para ser obedecido.
- Irmã Laura - disse ele, por fim, com uma voz tão profunda e aveludada que quase se confundia com o som das paredes antigas. Eminentemente masculino. Com apenas um traço de sotaque que tornava cada palavra mais marcante. - Não precisa se desculpar. Compreendo que sua intenção era zelar pela integridade da Basílica.
Olhai para ele, surpresa. Não havia ironia em suas palavras. Nenhuma ponta de acusação. Mas havia algo mais. Um peso nos olhos dele. Como se ele estivesse me desafiando a olhar mais fundo. Como se dissesse: Você tem razão em desconfiar de mim.
- Eu... lamento se causei qualquer constrangimento - respondi, luta para manter o tom neutro. - Não era minha intenção.
A mãe nos observava como se analisasse uma conversa silenciosa entre nós. A tensão no ambiente era sutil, mas impossível de ignorar. Como se um fio invisível esticasse entre mim e o pai, pronto para arrebentar.
- Está tudo resolvido - ela disse, por fim. - A chave não está em lugar. E não houve prejuízo algum. Vamos todos seguir com nossas funções normalmente.
Assenti, levantando-me com descrição. A madre me dispensou com um gesto. Mas, quando me virei para sair, a voz dele me alcançou novamente.
- Irmã Laura?
Parei. Meus ombros se enrijeceram, e voltei o rosto intermediário para ele.
- Espero não ter causado inquietações desnecessárias. Nem prejudica sua consciência.
Aquela última palavra me atingiu como uma lâmina. Consciência. Ele sabia exatamente o que estava dizendo. Cada sílaba carregava um subtexto que queimava por dentro. E seu olhar... Ele me mantinha ali, presa, sem um toque sequer.
Ele mantinha meu olhar firme com o dele, e eu me senti novamente sob julgamento. Mas não é um julgamento humano. Era mais íntimo que isso. Mais perigoso.
- Não - respondi, tentando subir firme. -Não estou preocupado.
Mas menti. De alguma forma, ali eu sabia que não seria minha última mentira.
Sai daquele corredor com o coração batendo forte demais. Eu sabia que minha atitude era correta. Mas, ao mesmo tempo, havia algo de errado. Como se aquele homem - com sua calma perigosa, seus olhos que enxergam enxergar a alma - teve rompido alguma barreira silenciosa que eu construí ao longo dos anos.
E pela primeira vez, tenho que ele comenta isso.
**
O som da chuva contra os vitrais da Basílica era constante desde a madrugada anterior, como um lembrete insistente de que o mundo lá fora não nos pertencia. A água havia transformado os caminhos de terra em lamaçais, as estradas em corredores escorregadios e os arredores da cidade em um isolamento completo.
Eu já havia notado a entrega preocupada entre as irmãs pela manhã, mas só fui chamada à sala da mãe no fim da missa das nove.
- Irmã Laura - ela disse com a voz suave, mas firme. - preciso de sua ajuda.
Senti-me diante dela, ainda com o hábito úmido do contato com as paredes geladas da sacristia.
- A estrada para Santa Amália é complicada, mas é o único caminho possível. Os fornecedores não obtêm, tragam os suprimentos. Precisamos de alguém para ir até a cidade buscar o essencial para os próximos dias.
Assenti, pronto para me voluntariar, até que ela completou:
- Irmã Maria era quem iria, mas... teve uma indisposição. - Ela hesitou antes de continuar, talvez receba da minha ocorrência. - O padre Andrei se ofereceu para ir no lugar dela. Achei prudente que não estivesse sozinho. Ele é um estrangeiro que mal conhece a cidade. Por isso, gostaria que você o acompanhasse.
Minhas mãos suaram de imediato. Não pelo percurso ou pela tarefa em si. Mas pelo nome. Andrei.
Desde aquele dia estranho - o da chave, o constrangimento, o olhar -, eu tinha evitado ficar sozinho com ele. A perturbação que sua presença me causou ainda era um mistério para mim mesma. Não era propriamente medo. Era algo mais sutil. Como se algo dentro de mim se encolhesse, e ao mesmo tempo se esticasse, cada vez que ele estava por perto.
- Claro, mãe. Farei como desejar.
Ela sorriu, satisfeita.
- Prepare-se. Vocês partem em trinta minutos.
**
O jipe da paróquia era velho, barulhento e cheirava a couro molhado. Ele já me esperava ao volante, com o capuz do casaco abaixado e o cabelo escuro levemente úmido. Os olhos cinzentos me fitaram por apenas um segundo - e isso bastou para que meu estômago revirasse.
- Bom dia, irmã - disse ele, com aquele sotaque leve, difícil de identificar, mas que me parecia mais europeu que qualquer outra coisa.
- Bom dia, padre Andrei.
Entrei no carro e puxei a porta com força, sentindo o estalo de metal velho encaixando no lugar. Ele arrancou com cuidado, e por um tempo o único som entre nós foi o da chuva tamborilando no capô e o motor cansado.
- Espero que não fique desconfortável com essa missão improvisada - ele disse, mantendo os olhos na estrada. - Prometo dirigir devagar.
- Está tudo bem. Faz parte da nossa rotina... improvisar quando Deus quer nos ensinar algo.
Ele soltou uma risada baixa, quase imperceptível.
- Ou talvez Ele só esteja testando nossa paciência.
Desculpe, sem graça. Era uma resposta espiritual demais para um padre.
- A propósito... - ele recomeçou, com um meio sorriso - fico aliviado por estar comigo, irmã Laura. Depois do mal-entendido da chave, achei que talvez estivesse... desconfortável comigo.
Meu corpo inteiro enrijeceu.
Ele falou como se estivesse sendo gentil, cortês - e talvez até estivesse. Mas havia algo em sua voz... um peso. Como se cada palavra fosse cuidadosamente escolhida para me expor, deixe-me sair.
- Eu... - respirei fundo - só quis fazer o que acredite ser o certo. Nunca quis ofendê-lo.
- E não ofendeu - disse ele.