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Na manhã seguinte, vesti-me de preto. Um vestido simples e severo para um funeral que só eu compareceria. Enquanto descia a grande escadaria curva, uma figura emergiu das sombras do corredor. Gisela.
Ela bloqueou meu caminho, um sorriso triunfante brincando em seus lábios. Ela se apoiava pesadamente em uma bengala, mas sua postura era desafiadora. Com um gesto deliberado e teatral, ela puxou o colarinho de seu roupão de seda, revelando um aglomerado de chupões roxos e raivosos em seu pescoço.
"Ele ficou comigo a noite toda", ela ronronou, seus olhos brilhando com malícia. "Ele me consolou. Ele me contou tudo."
Ela deu um passo doloroso para mais perto, sua voz caindo para um sussurro conspiratório. "Você era apenas um tapa-buraco, Adriana. Um corpo conveniente e capaz para fazer o trabalho sujo dele. Um escudo. Sua soldadinha leal."
Ela fez uma pausa, deixando as palavras afundarem. "Agora que seu bebê se foi, o que você ainda está fazendo aqui? Você não tem mais nenhuma dignidade?"
Eu parei. A urna contendo as cinzas do meu filho, segurada firmemente em minhas mãos, de repente pareceu fria como gelo. Virei a cabeça lentamente, encontrando seu olhar. O meu deve ter sido aterrorizante, porque um lampejo de medo cruzou seu rosto.
"O que", perguntei, minha voz um rosnado baixo e perigoso, "você acabou de dizer?"
"Eu disse que você é uma substituta!", ela cuspiu, sua bravata retornando. "Você sempre foi apenas a minha substituta!"
Seu rosto se contorceu em uma máscara de puro ódio. Ela largou a bengala e avançou, não com uma arma, mas com as mãos em garras, mirando na urna. "Dê ele para mim! Você não o merece!"
"Gisela, não!", a voz de Heitor rugiu do topo da escada. Ele já estava se movendo, mas era tarde demais.
Eu não me desviei. Eu me movi em direção a ela. Em um movimento fluido, coloquei a urna em segurança em uma mesa de console próxima, interceptei seu ataque desajeitado, torci seu braço para trás e bati seu rosto contra a parede. Uma pequena adaga reluzente, uma de um par que eu mantinha para decoração, caiu de uma bainha na parede para o chão de mármore.
Heitor nos alcançou no momento em que a prendi ali. Ele agarrou meu braço, o rosto uma máscara de fúria fria.
"Já chega, Adriana", disse ele, a voz plana e dura. "Acabou."
"Ele está mentindo", Gisela engasgou, o rosto pressionado contra o gesso. "Pergunte a ele! Pergunte se eu era a substituta dela!"
Olhei para Heitor, meus olhos procurando nos dele por uma negação, por qualquer sinal de que tudo isso era mentira. Não encontrei nenhum. Apenas um lampejo de pânico, de um animal encurralado. Ele não negou. Ele não podia.
Essa foi toda a confirmação que eu precisava.
Enquanto seu aperto em mim afrouxou momentaneamente em seu choque, arranquei meu braço, peguei a adaga do chão e a cravei no ombro de Gisela, prendendo-a na parede.
Um grito, agudo e penetrante, encheu o salão.
Um empurrão violento me jogou para trás. Heitor chutou a adaga da minha mão. Ele ficou sobre mim, o pé pressionando meu pulso, me prendendo ao chão.
"Eu assino os papéis do divórcio", disse ele, a voz desprovida de toda emoção.
A ironia era tão amarga que me deu vontade de rir. Ontem, ele disse que só a morte nos separaria. Hoje, ele não via a hora de se livrar de mim.
Ele pegou os papéis em seu escritório e os jogou em mim. Eles flutuaram, pousando em meu vestido preto como flocos de neve gigantes e zombeteiros.
Ele ajudou Gisela, puxando a adaga de seu ombro e suportando seu peso. Mas ela o empurrou. Cambaleando, segurando o ombro sangrando, ela caminhou até a pequena mesa perto da porta onde eu havia colocado a caixa com as coisas do meu bebê - as roupinhas, o livro do coelhinho, a primeira foto do ultrassom.
Ela acendeu um isqueiro. A chama pegou na borda da caixa de papelão.
"Gisela, não", disse Heitor, a voz baixa, mas sem comando. Sem força.
As chamas cresceram, consumindo as pequenas memórias de uma vida que nunca existiu. Tentei me arrastar para frente, para salvá-las, mas um medo primal, nascido em um incêndio real há dez anos, me enraizou no lugar.
Gisela se apoiou em Heitor, um sorriso vitorioso em seu rosto manchado de sangue. "Aquele incêndio de dez anos atrás", ela sussurrou, a voz rouca. "Deveria ter sido você. Você deveria ter queimado."
Heitor apenas ficou lá, o rosto uma máscara fria e impassível, e assistiu a tudo queimar. Ele a deixou fazer isso.
Uma onda negra de ódio, tão pura e potente que era quase bela, me invadiu. A dor, o luto, a traição - tudo queimou, deixando apenas a certeza fria e dura da vingança.
Comecei a rir. Um som baixo e desequilibrado que ecoou no salão silencioso.
"Você vai sentir isso, Heitor", prometi, minha voz subindo. "Cada pedacinho. Você vai conhecer a minha dor." Eu me levantei com minha mão boa. "E hoje, ninguém sai desta casa."
Assim que as palavras saíram da minha boca, os pesados portões de ferro no final da entrada da garagem se fecharam com um estrondo ensurdecedor. A porta da frente da mansão bateu com força atrás deles.
Heitor chutou a porta, sua compostura finalmente se quebrando. "O que é isso, Adriana? Deixe-nos sair!", ele rugiu. "Você quer o divórcio? Você vai ter. Você me quer morto? Tudo bem! Mas deixe-a ir!" Ele puxou Gisela para trás dele, um gesto protetor que pareceu outra facada em minhas entranhas.
Peguei os papéis do divórcio e, com minha única mão boa, os rasguei em pedaços. "Você estava certo sobre uma coisa", eu disse, deixando os pedaços caírem no chão. "Só a morte vai acabar com isso."
"Você e que exército?", ele zombou, gesticulando para a meia dúzia de seus guardas pessoais posicionados no hall de entrada. "Matem-na", ele ordenou a eles.
Mas seus homens não se moveram. Eles ficaram como estátuas, seus rostos indecifráveis.
"Eu disse, matem-na!", Heitor gritou, o rosto ficando vermelho e manchado.
Lenta e deliberadamente, cada homem naquele salão se virou. Os canos de seus fuzis de assalto se afastaram de mim e se concentraram diretamente em Heitor Menezes.
O guarda principal falou, sua voz calma e firme. "Sem a ordem da Senhorita, ninguém sai."
Heitor olhou para ele, perplexo. "Senhorita? De que diabos você está falando?"
A mansão estava completamente silenciosa, exceto pelo crepitar do fogo consumindo o último resquício da memória do meu filho.