Capítulo 2 Despejo

Se tem uma coisa que eu aprendi nesses últimos anos, é que existem dois tipos de pessoas: As pessoas que sempre esperam mais das outras, e acabam se decepcionando. E as que tentam ser mais, para não decepcionar, mas acabam se perdendo no caminho. Eu sou a que se perdeu, e posso dizer que esse caminho é uma estrada linear com tantas vertentes, que um simples olhar pode fazer você mudar de direção. Lados, rumos, sentidos, declives e aclives, mais conhecidos como: e se...

Ninguém espera acordar uma manhã e descobrir que sua vida é uma mentira. Portanto, ninguém espera olhar para trás e perguntar, e se? Isso geralmente vem acompanhado de grandes arrependimentos, de momentos que por mais necessários que pareçam ser, gostaríamos de mudar.

Houve um tempo em que tinha minha vida toda planejada, sabia exatamente como alcançar todos os meus objetivos, era como se uma rota fosse traçada, e eu só precisava deixar os dias se passarem, tinha todo o suporte necessário para chegar aonde queria, e em nenhum momento dessa parte da minha vida eu olhei para os lados, em nenhum momento eu acreditei que houvesse outra maneira de seguir, até estar diante de uma ribanceira e descobrir, que era a partir dali que eu deveria recomeçar.

Uma pessoa, apenas uma, tentava me tirar dos trilhos. Eu não entendia. Achava que ele me odiava. - E de fato odiava. - Achava que ele tinha como missão de vida, transformar meus dias em um pesadelo, mas hoje eu percebo que ele só era o único que me tratava com verdade, como eu realmente deveria ser tratada.

O calor, o amor e toda aquela fraternidade familiar... sim, eu sentia tudo isso. - E ainda sinto. - Mas, até que ponto isso era verdadeiramente direcionado a mim?

O curioso, é que estando aqui, beirando um precipício com um vento forte contra meu rosto e cabelo, enquanto tudo o que minha vista alcança são os montes cobertos por neve e um vale imenso cortado ao meio por um rio de correnteza violenta a milhares de metros, a lembrança dele me vem em mente. Pensar nele todas as vezes que estou prestes a colocar minha vida em risco tem uma razão. Autopiedade? Não, não faz o meu tipo. Essa é apenas a maneira como resolvo meus problemas. - Ou melhor dizendo: como eu fujo deles! - É assim que me sinto viva, por isso me lembro dele, pois quando olho para trás, todas as vezes que procuro verdade no que eu vivi, é quando Dean me lembrava de que aquela casa não me pertencia, que aquelas pessoas, eram sua família, não minha. Uma sensação muito próxima com a de pular de um precipício, mas não se preocupem, estou devidamente equipada agora!

- Você está pronta para pular? - pulei de susto com a voz do Ben no meu ouvido, e bem, essa não era melhor hora para me assustar.

- Não... - Na verdade, eu ia dizer que desisti, não porque estava com medo, mas porque o nome da minha melhor amiga aparecia junto com sua foto de perfil no meu celular, me fazendo lembrar que a essa hora, deveria estar me encontrando com ela no Studio Jack Alejandro, o tal estilista que desdenhou de um horário apertadíssimo para a noiva do famoso piloto de fórmula 1, Ramon Bianchi. E não pulando de bungee jumping em Whistler.

Nesse momento desejei que a corda que me pendurava enquanto e caía lindamente se rompesse, gostaria de morrer fazendo o que amo e não pelas mãos da Antonela, que posteriormente acabaria presa por minha causa.

Eu sei... eu sei. Altruísta.

- Alô? - Atendi de ponta cabeça pendurada a metros do rio que corria debaixo de mim. Depois de gritar horrores, estava com a voz rouca.

- EMANUELLY ONDE VOCÊ ESTÁ? - gritou, me causando mais calafrios do que a própria altura. Ela só me chamava pelo nome quando estava absurdamente furiosa.

- Você não vai querer saber. - Engoli seco, sentindo o sangue causar uma pressão no meu cérebro.

- Se eu não quisesse não estaria te ligando a horas - vociferou. - Eu só queria que minha melhor amiga estivesse na minha primeira prova do vestido de casamento, eu sei que você não gosta do Ramon, mas porra, eu sou o quê pra você?

- Merda! - grunhi, observando o celular dar um triplo mortal para a água após seu último grito. Não tenho dinheiro pra comprar outro. Foi a única coisa que consegui pensar. - Podem me puxar por favor? - pedi alto, admirando a vista daqui enquanto o eco da minha voz ainda se repetia. O rio estava no lugar do céu, e o céu estava no lugar do rio, e dessa posição, as montanhas pareciam flutuar, uma bela paisagem antes de morrer.

Horas antes...

- Droga, droga, droga... - murmurei em busca do meu avental rosa choque, famoso uniforme da Burnaby Donuts, que nesse momento parecia um uniforme do exército de tão camuflado. - Porra! - rosnei ao sentir meu dedinho se chocando contra a quina da cama, mas não tinha tempo de fazer escândalo. Já deveria ter saído de casa a dez minutos. Eu vou me atrasar!

- Achei! - Puxei o mesmo da pilha de roupa de cama que embolei ontem a noite por conta da preguiça e cansaço após doze horas de trabalho sem parar. Precisei cobrir a Amanda para retribuir os favores, já que ela me cobriu na semana passada.

Desci as escadas do moquifo vulgo meu lar doce lar pulando de cinco em cinco degraus, já no segundo andar, andei na ponta dos dedos, segurando até mesmo minha respiração ao passar pela porta do pançudo Sr. Epaminondas, proprietário do prédio e meu perseguidor nato.

- EMANUELLY! - Pulei de susto e aproveitei os poucos milésimos de segundos que ainda tinha antes da porta ser escancarada para escorregar no corrimão. Meu atalho para chegar no térreo. - Filha de uma...

- Eu não tenho mãe! - interrompi seu xingamento olhando para cima. Lá estava ele com sua careca e bigode para fora da escada, apoiado na grade verde daquelas escadas horríveis.

- Que sorte... a dela! Você é uma vergonha, está me ouvindo? Uma vergonha!

- O reverendo Forbes vai adorar saber disso, tchau! - Vesti meu casaco ainda no hall do prédio e me preparei para o frio do lado de fora.

- Se não pagar o que me deve, é para ele que vai pedir ajuda sua... - Abri a porta da frente e sai antes de ouvir seu próximo xingamento.

- Droga! - Conferi as horas no visor do celular e me pus para correr. Estava muito atrasada. Quando já estava no ónibus, sentada no banco ao lado da janela meu celular vibrou, era o que faltava para desestabilizar de vez meu dia, que mal tinha começado. Era uma mensagem de texto de alguém que paguei para me fornecer informações sobre East Hasting.

"Ele está de volta"

Tirei meus olhos do visor, sentindo cada terminação nervosa estremecer.

Desci na quarta parada de ônibus correndo feito uma marginal fugindo da polícia.

- Desculpa - pedi pela milésima vez ao me esbarrar com mais um cidadão refém dos meus atrasos. - Foi mal!

- Devagar menina! - Um velhinho me alertou após desviar de mim. Maldita hora que olhei para trás para responder, pois a minha frente alguém com a cara no café não se deu o trabalho de desviar, e nos chocamos violentamente. Ambos tomaram um banho de café quente.

- Merda! - Dei dois passos para trás constatando meu estado. - Calçada não é lugar de tomar café da manhã. - O homem me fitou abismado, com a barba toda melada.

- Calçada não é lugar de correr senhorita! - respondeu com falsa educação.

- A é? E onde eu posso me exercitar a essa hora da manhã? Não sei se percebeu, mas essa MERDA DE CIDADE NÃO TEM A PORRA DE UMA CICLOVIA! - À medida que aumentava meu tom de voz, ia me afastando e apertando os passos novamente.

Em poucos minutos minha chegada foi anunciada pelo sino estridente da porta de madeira, e uma gerente carrancuda apareceu logo em seguida me fulminando.

- Atrasada!

- Eu sinto muito, não vai mais acontecer! - Tirei meu casado ali mesmo e corri para cozinha. O lugar já estava cheio como em todas as manhãs.

- Eu só não te demito, pois o proprietário da franquia está vindo aí - falou atrás de mim enquanto eu prendia meu cabelo em um coque. - E só para lembrar, ele é filho do prefeito! Então não cometa erros ouviu bem?

- Sra. Palmer, isso é uma cafeteria, não sou eu quem sirvo o café, e derrubar café em alguém é o único erro que posso cometer, ou seja, não se preocupe, vou pegar o Donuts certo! - ironizei, prendendo o laço horroroso junto a redinha do coque.

- Eu acho bom. Agora vá para trás daquela estufa, a fila está quilométrica! - assenti, sem me dar o trabalho de olhá-la novamente. Trabalhei por pouco tempo até receber uma mensagem da minha melhor amiga.

"Você pediu sua folga para hoje né?"

- Folga? - resmunguei, negando mentalmente. Afinal, minha folga foi há dois dias atrás.

- Você vai folgar para o resto da vida se não agilizar os pedidos! - revirei os olhos, ouvindo a voz da gerente no pé do meu ouvido, essa mulher parece brotar do inferno. - Arruma essa cara, ele chegou! - Palmer se empinou toda ao ver que alguém estava prestes a entrar pela porta de vidro. Um homem alto de terno, e... todo sujo de café!

- Puta merda! - Arregalei meus olhos, tentando me encolher atrás do balcão.

- Quatro de chocolate por favor. - Assenti para a cliente com a caixa na frente do rosto. Praticamente entrei dentro da estufa para pegar os donuts notando que o tal homem passava bem do meu lado sendo muito bem recebido pelos outros funcionários.

- Aqui, próximo! - Entreguei às pressas a mulher e logo me escondi com outra caixa vazia.

- Seis. Um de amêndoas, outro de pistache... - parei de prestar atenção, olhando sorrateiramente para trás onde o maldito se colocou.

- Que barbaridade Sr. Afonso, olhe só, está todo sujo. - Sra. Palmer tentava limpar o rapaz.

- Pois é, uma garota correndo feito uma louca no meio da calçada. - Eu não tinha percebido o quanto ele havia se sujado.

- Moça?

- Sim? - Encarei a pessoa a minha frente esperando seu pedido. Trocamos olhares por vários minutos até ele revirar os olhos e começar a falar tudo outra vez.

- Quero seis. Um de amêndoas, outro de pistache, dois de...

- Apenas Afonso, por favor. Eu preciso de alguma roupa, não posso fazer a reunião com os funcionários dessa maneira! - Dito isso, ele ultrapassou a porta de plástico que dividia os ambientes.

- Moça? - mais uma vez o cara me chamou atenção.

- Sim?

- Deixa quieto! - Ele então saiu da loja nervoso.

- O que pensa que está fazendo Emanuelly? - Palmer quase me engoliu com os olhos.

- Aquele homem, quem era? - segurei seu pulso pegando-a de surpresa. Essa mulher não devia ser tocada com frequência.

- Suelen, assume o balcão! - rosnou para a garota que anuiu. Para então me tirar dali praticamente arrastada até o vestiário. - Tire agora mesmo seu cavalinho da chuva, aquele é Afonso Renner, filho do prefeito e dono de toda franquia Burnaby Donuts, além de tudo é meu affair ouviu bem? Meu affair!

- Eu não estou nem aí pra affair minha filha, eu sou a doida que estava correndo na calçada, preciso da sua cobertura! - Seu maxilar despencou e ela perdeu a cor.

- Dar cobertura? Eu sou a porra de um donuts para dar cobertura? - Meus olhos se arregalaram ao ver o tal Afonso surgir atrás dela.

- Pelo amor de Deus. - Me escondi em sua frente agarrando seus pulsos e suplicando com o olhar.

- Não me toca! - vociferou. - Eu não sou paga pra isso, da meia volta agora e volta pro buraco de onde você nunca deveria ter saído.

- Está me demitindo?

- Não imbecil! Estou te dando férias com apenas seis semanas de trabalho. O que você acha? Pra começar você só estava aqui pelo favor que ele fez a sua amiguinha rica, e agora você me fez o favor de ferrar com tudo, então some, mas não fica ressentida não, considere isso um privilégio, eu no seu lugar, sairia correndo desse hospício

Um pigarrear a interrompeu. De ninguém menos que Afonso Renner, bem atrás dela.

- Ai meu Deus. - A mulher quase cambaleou quando o viu.

- Na minha sala, por favor - disse ele cruzando os braços. Antes de sair, ela ainda me lançou um olhar mortal. Ficamos apenas os dois de frente para os armários do pequeno vestiário encarando um ao outro. Ele com uma expressão divertida e eu coberta de vergonha.

- Sabe... - pensei se deveria completar aquela frase, mas eu já não tinha mais nada a perder. - Eu acredito muito em propósitos Sr. Renner.

O rapaz arqueou uma sobrancelha aparentemente sem entender.

- Se eu não estiver errada, o senhor estava com um copo de Starbucks na mão. Sendo assim eu fui, na verdade, um anjo te repreendendo e acho que o senhor deveria considerar isso como uma mensagem do destino.

- Que eu devo incluir ciclovias em Burnaby nas próximas campanhas políticas do meu pai?

- Não, e acredite eu já aprendi a lição, sabe, eu também captei minha mensagem, e já que você ainda não captou a sua eu te digo. Não alimentais a concorrência, pois se você faz isso, está desmerecendo seu próprio negócio, e se você não acredita no potencial do seu café, nós nunca seremos iguais ou maior que a rede Starbucks, e isso me machuca profundamente Sr. Renner, pois se o senhor não percebeu, eu estava correndo para chegar no meu horário, porque eu sim, visto a camisa da empresa! - fingi estar ofegante por tantas palavras improvisadas. Eu só não entendi onde estava a graça.

- Me aguarde aqui, você é a próxima na minha sala. - Soltei o peso dos ombros e revirei sutilmente os olhos derrotada. - Ah, só mais uma coisa. Eu realmente não entendo de sinais do universo, mas já que você entende, comece a refletir no que isso significa.

- Droga! - resmunguei fechando os olhos ao imaginar que eu seria a próxima demitida ao entrar naquela sala. - Quer saber?

Arranquei meu uniforme ali mesmo e me troquei com a roupa deixada na noite anterior, sai tão cansada daqui ontem que nem lembrei de me trocar, pior, eu ainda esqueci minha mochila com meu bem mais precioso.

Minha máquina fotográfica.

Ao abrir o zíper e constatar que ela ainda brilhava com tudo o que eu tinha de mais valioso dentro, senti aquele friozinho na barriga.

- Ele não vem querida! - a voz da Donatella praticamente me fez pular do lugar.

- Ele quem? - Me fingi de desentendida. Recebi dois tapinhas no ombro de cumplicidade.

- Se soubesse o quanto te conheço, saberia o quanto me ofende achar que pode esconder algo de mim - piscou com um sorriso traiçoeiro.

- Se me conhece tanto quanto eu sei que conhece, saberia o quanto me ofende achar que eu seria capaz de esconder alguma coisa de você.

- Tem razão. Isso é algo que você esconde até de si mesma. Principalmente de si mesma! - a encarei ainda lutando para acreditar. Me recusando na verdade. - Você não o convidou, lembra?

- Eu já sabia que ele não viria.

- Mas não sabia que enviaria seu presente de aniversário, e por isso está a festa inteira de olhos cravados na porta de entrada. Sua esperança é meu tormento - suspirou pesadamente.

- Madrinha... por que diz isso? - Fiquei de frente para ela capturando sua tentativa de sorriso. Falhou miseravelmente.

- Porque eu também ainda espero que ele volte - eu queria acreditar que ela falava do filho, mas não. E se tem uma coisa que aprendi com Donatella, é que as vezes apenas amar, não é o bastante.

Confesso que só aprendi essa lição muito tempo depois. Muito, mas... muito tempo depois, não sei dizer exatamente quando. Apenas me lembro de acordar um belo dia, sentir esse mesmo frio na barriga ao comemorar mais um aniversário, que durou alguns passos até a porta de entrada. Ao abri-la, não tinha nenhuma visita inesperada, apenas algo que subiu para o topo da minha lista de prioridades, lista essa que só tem um título: "problemas."

Desde então eu nunca mais esperei, por nada, nem ninguém.

                         

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