Ele conhecia todos os defeitos de Carol. Começando pelo drama, ô menina dramática. A cada paixonite que ela tinha era um rio de lágrimas, a cada nota ruim mais lenços gastos com lágrimas. Ela ria e fazia um barulho engraçado, como se fosse um porquinho, quando ela gargalhava então... ele ria mais da risada dela do que da situação propriamente dita. Ela não tinha vergonha de nada, peidava na frente dele e se pudesse o prendia no local, para sentir seu fedor, enquanto gargalhava. Ela também tinha a mania de tirar todos os pedacinhos de cebola ou tempero verde da comida. Aquilo chegava a doer em Rafael, às vezes ele pegava só os temperos do lado do prato dela e comia. Mas o pior... era ela cantando, era uma taquara rachada gritando. Pelo amor de Deus! E tinha mais, ela não dividia comida, nem com ele, nem com ninguém! Era um poço sem fundo. Ela também falava demais, e como falava...
Mas ele também conhecia todas as qualidades dela. Ela era gentil com todos, independente se conhecia ou não, ela era fiel, nunca traía ninguém que amava, era verdadeira, não mentia nunca, nunquinha mesmo, nem por menor que fosse a situação, ela sempre falava a verdade. Ela defendia os amigos e todos que amava, como a vez em que ela enfrentou dois garotos que queriam bater nele quando ele tinha por volta dos nove anos, e ela acabou eles, e eles nunca mais incomodaram Rafael, e a outra vez que uma menina traiu ele e ela foi lá e arrancou metade dos cabelos da garota. Depois daquilo Rafael sabia que podia contar com ela pra tudo, e ela também poderia contar com ele para tudo. Mas além disso ela era caridosa, ela ia todos os sábados pela manhã em um asilo, só para conversar com os idosos, por vezes ela levava Rafael, ou outra amiga junto. Ela trabalhava meio período como estagiária na sua área de arquitetura, e fazia mais duas horas por dia de voluntariado em uma clínica psiquiátrica. Ela dizia que todos mereciam atenção, mereciam confiança e amizade. E era isso que ela ia dar a eles. Ela iluminava a todos com sua alegria e piadas sem graça, ajudava sempre que podia em todas as situações. E combinava tudo isso com uma bunda gostosa. Era demais pra um homem!
Rafael se revirava na cama. Porque? Porque não percebera antes que gostava dela ? Bem, ele sabia que amava ela, que faria de tudo por ela, tudo mesmo, só não sabia que era um amor além da amizade, que era um amor romântico... Mas e agora ele sabia disso ? Não! Nem mesmo agora ele sabia o que sentia. Sua cabeça estava uma confusão, e com quem conversaria? Se sua confusão era sua melhor amiga?
***
Carol passara boa parte da noite escrevendo, era um hobby. Se o dia era bom ela escrevia tudo para guardar na memória eterna de um papel, se fora um dia ruim, ela escrevia para por para fora toda aquela angústia. Carol sempre fora assim, ela brilhava para todos, menos para ela mesma. Todos os dias ela buscava fazer algo que fizesse alguém mais feliz. Mas no final do dia, antes de dormir ela escrevia todas as suas frustrações, que não eram poucas.
Ela tinha uma vida feliz com sua mãe e seu pai, até os cinco anos, quando seu pai faleceu. Mas a verdade é que ele não "simplesmente" faleceu. Ele se suicidou! Isso fazia com que se tornasse pior para ela. Porque ele não ficara doente, não sofrera um acidente. Ele não aguentava mais a vida, e se matou. Isso era terrível, ela queria ter evitado. Mas como ? Ela tinha apenas 5 anos. E sua mãe fez de tudo para criá-la e amá-la o máximo que pode. E ela sempre fora grata por isso. Mas também não se sentia completa, não falava com sua mãe sobre seu pai, pois sabia que sua mãe não superava aquilo, então fingiam que nada tinha acontecido, dia após dia. Mas isso também fazia ela se afastar de todos, menos de Rafael.
Ela o conhecera uma semana depois de seu pai falecer. Ela andava de balanço lá com seu pai, mas do nada, aquele menino ocupara seu balanço e não dividia com ninguém. Movida pela raiva ela foi lá e chutou ele. Sentiu uma grande satisfação no momento. Mas o que veio depois foi muito mais satisfatório. Ele voltou, e conversou com ela. Ele deu uma chance de conhecê-la. De ser amigo dela e ela nunca foi tão grata por algo na vida.
Rafael era seu melhor amigo, era seu porto seguro, ele era a viga de sustentação dela. Ele foi a única pessoa para quem ela contou a história de seu pai, ele não a julgou, mas a amparou e consolou. Ele defendeu-a na escola quando tudo parecia estar perdido. Carol se apaixonara por ele quando tinha por volta dos quinze anos, mais precisamente em sua festa de 15 anos, na valsa que ele dançou com ela, com aqueles olhos verdes claros grudados nos seus, com sua mão grande segurando a sua, no beijo na testa que ele lhe deu... Mas ela nunca disse, afinal, ele era seu melhor amigo, ela nunca arriscaria perder a amizade dele, que era um amor tão incondicional, por uma bobeira de paixão.
Por vezes ela teve esperanças, mas ele era um garoto bonito, ficava com várias meninas e ela se sentia atraída por outros garotos também, só que eles não tinham o seu coração como Rafael tinha. Com o tempo ela aprendeu a lidar com esses rompantes de paixão, e a amizade sempre fora colocada em primeiro plano. Assim eles nunca brigavam ou se afastavam.
No caderno atual, Carol escrevia sobre a estranheza de Rafael. Tentava recapitular tudo que fizeram desde aquele dia, para achar uma brecha. Mas nada fazia sentido. Bufou, olhou o relógio, quase quatro da manhã. Foi tomar uma água e voltou para cama. Guardou seu caderno e resolveu tentar dormir um pouco. Amanhã pela manhã ela iria no Lar de Idosos do bairro ao lado. Gostava de conversar com eles, ouvir suas histórias, e até fazê-los se sentir amados e importantes, visto que muitos não tinham visitas dos familiares.
***
Carol acordou atrasada, pulou da cama, já eram 8:30. - Droga! - Disse em voz alta, correndo para o banheiro para fazer a higiene matinal. Pegou a bolsa, e ia ligar para Rafael levá-la quando viu as mensagens de Rodrigo.
"Oi, Carol... Aqui é o Rodrigo tudo bem ? O que acha de sairmos para almoçarmos juntos hoje?" (06:37)
"Oi, sou eu de novo. Gostei muito de te conhecer... posso te buscar em casa se quiser... só me passar o endereço." (07:29)
"Oi, desculpa se estou sendo chato... hahaha, mas eu realmente não paro de pensar em você e nesses olhos esverdeados... aguardo seu retorno." (08:10)
Carol sorriu ao ler as mensagens dele. Lembrou do homem bonito que ele era, talvez devesse dar uma chance, já fazia um bom tempo que não saía com ninguém... E podia levá-lo no Lar, os idosos amavam visitas.
"Oi Rodrigo, tudo bem e você? Está ocupado agora?" - Enviou
A resposta veio quase imediatamente. "Não estou, não. :)"
"Quer ir comigo em um Lar de Idosos ? Só que tem que ser agora."
"Claro, me passa teu endereço."
Carol passou o endereço e aguardou na frente de casa. Ficou feliz de ele aceitar, não era todo mundo que queria ir com ela. Só Rafael e às vezes Amanda, sua amiga que aceitavam ir. Seu celular apitou, mostrando que tinha uma nova mensagem.
Rafael* Mostrava no visor. Carol abriu a mensagem.
"Bom dia Cá, quer almoçar aqui com a gente hoje?"
Carla sorriu. Quase todos os sábados e domingos passava com eles. Ela não tinha muitos parentes, e os poucos que tinha moravam longe. Luana, irmã de Rafael era maravilhosa, devia ser coisa de família, toda aquela família era especial.
"Oi Rafa. Rodrigo me convidou para almoçar *0* Posso passar aí mais tarde?"
Carol enviou a mensagem, vendo um carro Honda City preto virar a esquina. Seu coração deu uma leve acelerada ao perceber que era Rodrigo. "Meu Deus, de onde saiu esse homem tão bonito?!"
Ele tinha um ar de imponência, era como se dominasse tudo ao seu redor. Ele desceu do carro, e foi sorrindo em direção a ela. Carol sentiu um formigamento na barriga. Ele se aproximou dando-lhe um beijo no rosto, e colocando sua mão na cintura dela.
- Oi, Carol... demorei? - Disse ele, exalando um perfume de tirar o fôlego. Era forte e amadeirado, não chegava a ser enjoativo, era ideal para ele. Carol sorriu, pensando em como era difícil ela se agradar de perfumes, mas tinha se agradado do dele.
- Oi, Rodrigo. Não... você veio rápido. Obrigada. - Sorriu meio sem jeito. - Vamos...? Estamos em cima da hora.
- Claro! - Rodrigo abriu a porta do carro para ela, que entrou e percebeu os bancos de couro preto, tudo limpo e cheiroso. Sorriu internamente, estavam começando bem.
- Quem você vai visitar ? - Perguntou Rodrigo com atenção a estrada.
- Ninguém específico. Eu vou todos os sábados pela manhã em asilos para conversar com as pessoas que estão lá.
Rodrigo franziu o cenho. - Todos os sábados ? Pra quê?
Carol engoliu seco, não sabia porque mas se sentia estranha, como se quisesse a aprovação dele nisso. Mas ela nunca tinha medo de suas decisões, e essa era uma das coisas que ela mais tinha certeza na vida, que era alegrar as pessoas. - Bem... eu gosto de ir lá conversar com eles e... eles ficam felizes com a presença de alguém que os escute, lhes dê atenção... - Aos poucos, conforme falava, sentia seu coração normalizando as batidas, ela amava tudo que fazia, na verdade só fazia o que amava.
- Hummm... - Ele disse meio sério, meio sorrindo. - Que bizarro!
Bizarro? Era isso que ele achava? Como assim bizarro? Era uma coisa boa... ele podia achar que era cansativo, ou até sem necessidade, mas bizarro? Bizarro era ele!
Vendo a cara fechada de Carol, Rodrigo engoliu seco, pensando que falara besteira. - Quero dizer... é muito prestativo e caridoso da sua parte, ninguém ajuda mais ninguém no mundo né... às vezes o certo, até parece errado.
A expressão de Carol se suavizou. - É... - Ela dissera com um leve sorriso. Seu telefone vibrou, ela olhou. Mensagem de Rafael.
"Pode vir sim, te esperarei."
"Ok." - Ela respondeu.
Ao chegarem no Lar, Carol esqueceu-se de Rodrigo, de Rafael, ou qualquer preocupação, agora ela era só ouvidos e atenção a seus amigos do Lar.