(AVISO: *PARA LER ESTE LIVRO, PRECISA LER O PRIMEIRO PARA SE ENTENDER A HISTÓRIA.*)
"O amor não se vê com os olhos, mas com o coração." - William Shakespeare
(AVISO: *PARA LER ESTE LIVRO, PRECISA LER O PRIMEIRO PARA SE ENTENDER A HISTÓRIA.*)
"O amor não se vê com os olhos, mas com o coração." - William Shakespeare
Quando ligo o motor pela primeira vez após a restauração, o ronco baixo e constante do Bel Air ressoa pela garagem da tia Rouse como uma respiração que voltou aos pulmões. Meu peito se enche de algo que não sinto há anos - talvez seja orgulho, talvez seja só alívio de ver que consigo consertar o que está quebrado.
Dou a primeira volta pelo quarteirão com as mãos trêmulas no volante, o motor respondendo a cada toque do acelerador como se nunca tivesse estado parado. O carro conversa comigo através das vibrações familiares, do som particular de cada marcha engrenando. Papai dizia que cada carro tem uma personalidade própria. O Bel Air tem a dele - teimoso quando está frio, mas leal quando aquece.
Este não é meramente um carro que restaurei. É um pedaço do meu pai que consegui trazer de volta à vida. Cada parafuso apertado, cada peça substituída, cada hora passada debaixo do capô foi como costurar de volta uma parte de mim que achei que tinha se perdido para sempre.
❤️🌻❤️
Agora, dirigindo pela primeira vez de volta para casa, sinto o peso de cada quilômetro que me separa do passado nas costas. O Bel Air não é só meu meio de transporte - é minha declaração. Passei anos provando para mim mesma que posso reconstruir coisas. Talvez seja hora de tentar reconstruir outras.
Dirijo pela estrada sinuosa, sozinha na escuridão que engole tudo além do alcance dos faróis. O motor do Bel Air ronca baixinho, uma conversa íntima entre metal e combustão que aprendi a decifrar durante os meses que passei desmontando cada peça dele. Minhas mãos conhecem cada vibração no volante, cada mudança no som do motor - é como dirigir uma extensão de mim mesma. O couro do banco, rachado em alguns pontos, mas ainda macio ao toque. Moldou-se ao formato do meu corpo durante as longas horas de estrada que me trouxeram até aqui.
O ar da noite entra pela janela entreaberta, trazendo o cheiro de terra úmida misturado com sal marinho e algo que não consigo identificar completamente. Talvez sejaunicamente o cheiro de casa, aquele aroma que só reconhecemos quando voltamos depois de muito tempo longe - uma mistura de memórias e nostalgia que se infiltra pelos poros da pele. Meus dedos tamborilam no volante, seguindo não a música country baixinha que toca no rádio, mas um ritmo próprio, nervoso, ansioso. Sete anos. Sete longos anos fugindo deste lugar, de conversas inevitáveis, desta decisão que venho adiando desde que soube da notícia.
A cada quilômetro percorrido, o nó no estômago se aperta mais, como se meu próprio corpo estivesse me alertando sobre o que estou prestes a enfrentar. Porque voltar para casa deveria ser fácil, natural, reconfortante - mas não é. Não quando você saiu da pior forma possível, com palavras que não pode mais retirar. Não quando deixou tanta coisa quebrada para trás, tantos pedaços espalhados que talvez nunca consiga juntar novamente.
A estrada sobe íngreme entre as árvores que se fecham como paredes escuras de cada lado. De repente, após uma curva mais acentuada, a paisagem se abre diante de mim como uma ferida antiga que ainda dói ao mais leve toque. O mar se estende até onde a vista alcança, suas águas escuras refletindo a luz prateada da lua cheia que pende baixa no céu estrelado. As ondas batem nas pedras lá embaixo com um som ritmado e hipnótico que costumava me acalmar quando criança, quando tudo era mais simples. Mas agora esse mesmo som parece estar me chamando de volta para algo que não sei se estou pronta para enfrentar, conversas que venho evitando há tempo demais.
Paro o veículo na beirada da estrada, numa faixa de terra batida que sempre serviu como mirante improvisado. Preciso de um minuto. Só um minuto para respirar, para preparar o coração para o que vem pela frente.
Saio do carro e me apoio no capô ainda quente, sentindo o calor do motor aquecendo minhas coxas através do jeans desbotado. A brisa marinha bagunça meus cabelos - os mesmos cachos castanhos e rebeldes que sempre recusaram qualquer tentativa de domesticação, que papai dizia ter herdado diretamente da vovó Moira, que morreu antes de eu nascer, mas que vive em cada foto pendurada nas paredes da casa.
"Cabelo de fada irlandesa", ele brincava, passando a mão na minha cabeça quando eu era pequena e reclamava que meu cabelo era impossível de pentear. "As fadas irlandesas são teimosas por natureza, Mally. É por isso que são tão especiais."
A lembrança surge sem avisar e me pega completamente desprevenida, como sempre acontece quando penso nele. Meu peito se aperta numa dor familiar que já deveria ter aprendido a carregar, mas que ainda me pega de surpresa em momentos como este. Cinco anos sem ouvir sua voz, cinco anos sem seus abraços que sempre conseguiam fazer tudo parecer menos assustador, menos complicado.
Respiro fundo, enchendo os pulmões com o ar salgado que carrega consigo todas as memórias desta costa que conheço como a palma da minha mão. Esta é a mesma lua que eu observava da janela do meu quarto anos atrás, deitada na cama antiga de ferro que rangia sempre que me mexia, planejando fugas impossíveis e sonhando com um mundo maior do que nossa pequena cidade litorânea. Era quando tudo ainda fazia sentido, quando o futuro parecia uma estrada reta à minha frente. Quando papai ainda estava vivo, ainda estava lá para me guiar quando eu me perdia. Quando eu ainda não havia estragado tudo com minha teimosia e meu orgulho ferido.
Uma estrela cadente risca o céu numa linha brilhante e efêmera. Instintivamente, fecho os olhos e faço um pedido idiota, infantil, como se fosse criança de novo e ainda acreditasse que desejos pudessem consertar o que está irremediavelmente quebrado. Como se o universo me devesse esse favor depois de tudo que aconteceu.
Fico ali por mais alguns minutos, deixando o vento bagunçar meus cabelos e levar embora parte da ansiedade que carrego no peito. A paisagem é exatamente como lembro - selvagem e bonita, indomável como as pessoas que escolheram viver aqui. Rochas pontiagudas se erguem da água como dentes antigos, e a espuma branca das ondas brilha fantasmagórica sob a luz da lua. É um lugar que nunca muda, que permanece igual enquanto nós, meros mortais, envelhecemos e nos transformamos e, às vezes, nos perdemos pelo caminho.
Finalmente volto para o automóvel. O Bel Air liga na primeira tentativa - sempre faz isso, como se soubesse instintivamente que preciso que pelo menos algo na minha vida seja confiável, previsível. O som do motor é como uma canção familiar, um acalanto mecânico que me acompanha há tantos quilômetros.
Encontrei este abandonado entre outras carcaças de metal enferrujado. Estava em estado deplorável - coberto de ferrugem alaranjada, com o motor praticamente morto, os bancos de couro rasgados e o para-brisa trincado. Mas era "dele". Reconheci imediatamente, mesmo depois de tanto tempo, mesmo transformado numa sombra do que havia sido. Era o mesmo Bel Air azul-marinho que papai vendeu durante o escândalo, quando precisava desesperadamente de dinheiro para pagar as dívidas e reabrir a loja. O mesmo carro em que ele me ensinou a dirigir nas tardes de domingo, suas mãos enormes cobrindo as minhas pequenas no volante de baquelite...
"Um carro tem alma, Mally", ele dizia, enquanto ajustava minha posição no banco para que eu alcançasse os pedais. "Você trata bem dele, respeita a máquina, e ele te leva onde precisa ir. Mas, o mais importante que isso - ele te traz de volta para casa."
Como ele estava certo. Como sempre, estava certo sobre essas coisas simples e fundamentais da vida.
Passei uns quatro anos e meio restaurando cada peça, cada parafuso, cada centímetro de metal. Tia Rouse me ensinou tudo que sabia sobre mecânica - como desmontar um motor peça por peça, como trabalhar com chapa e solda, como dar vida nova ao que outros considerariam somente lixo sem valor. Ela tem mãos de ouro para consertar qualquer coisa que tem motor, e paciência infinita para uma sobrinha perdida que foi para a sua casa toda desajeitada, que de alguma forma estava procurando um propósito, uma maneira de canalizar toda a dor e culpa que carregava.
Nas noites longas e silenciosas em que trabalhava até tarde na oficina dela, com as mãos sujas de graxa e o corpo dolorido de tanto esforço físico, eu conversava com o Bel Air como se ele pudesse realmente me ouvir e entender. Contava sobre os anos difíceis longe de casa, sobre a culpa que carrego como uma pedra no peito, sobre como sinto falta do papai todos os dias, sobre como ainda ouço sua risada ecoando em minha mente nos momentos mais inesperados. Falava sobre mamãe, sobre como o que ela pensaria de como fui covarde demais para voltar e enfrentar a tempestade.
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