Eles arrancaram um dos meus rins.
O homem que prometeu me proteger, que eu pensei ser meu salvador, arrancou um pedaço de mim por um crime que não cometi. O amor que eu sentia por ele morreu naquela mesa de operação.
Quando acordei, ele estava sentado ao lado da minha cama e me disse que nosso casamento ainda estava de pé.
Ele achou que tinha me quebrado. Ele estava errado.
Ele não sabe que eu tenho um plano. Não sabe que estou indo embora.
E nunca mais vai me ver.
Capítulo 1
O burburinho sobre a filha adotiva da família Lacerda, Flávia, e seu súbito interesse pelo meu irmão, era o assunto do nosso círculo social. Todos sabiam que Flávia Lacerda conseguia o que queria.
Mas meu irmão, Caio, não estava interessado.
Os rumores eram apenas um ruído de fundo até meu celular vibrar. Era um vídeo de um número desconhecido.
Meu dedo pairou sobre a tela, um arrepio gelado subindo pela minha espinha.
Eu apertei o play.
O vídeo tremia, filmado no que parecia ser um beco úmido e escuro. Caio estava no chão, o rosto machucado, suas mãos de músico dobradas em ângulos anormais. A voz de um homem, rouca e baixa, vinha de trás da câmera.
"Ele devia ter sido mais legal com a Flávia. Agora olha só as mãozinhas bonitas dele. Não servem mais pra tocar violão, não é?"
Minha respiração falhou. Meu coração martelava contra minhas costelas.
Então, meu celular começou a tocar. Era uma chamada de vídeo do mesmo número. De Heitor.
Meu benfeitor. O homem que eu amava.
Minha mão tremeu ao deslizar para atender. Meu corpo inteiro parecia envolto em gelo.
O rosto de Heitor preencheu a tela. Ele parecia perfeito, como sempre, sentado em sua cadeira de couro no escritório, com os arranha-céus de São Paulo brilhando atrás dele. Ele nem estava olhando para a câmera. Estava olhando para algo ao lado.
"Você tem uma hora, Alana. Venha para a cobertura. Sozinha."
Meu corpo estava rígido, minha voz era um sussurro engasgado. "Heitor, o que você fez?"
"Não se preocupe", disse ele, o tom casual, como se estivesse discutindo o tempo. "O Caio é importante para você."
Lágrimas escorriam pelo meu rosto. "Ele é meu irmão. É tudo o que eu tenho."
Heitor finalmente se virou para a câmera. Seus olhos estavam frios, desprovidos do calor que um dia eu tanto amei. "E a Flávia é tudo o que eu tenho. Ela está muito chateada. O Caio feriu os sentimentos dela."
"Ele não fez nada! Ele só não queria sair com ela."
"Não foi a história que ela me contou", disse Heitor, a voz impassível. "E a Flávia não mente." Ele gesticulou para fora da tela. "Encontre a Flávia. Peça desculpas a ela. Convença-a a te perdoar. Então, talvez, eu deixe seu irmão ir."
A câmera na outra ponta do vídeo, a do beco, se moveu. Uma bota pesada pisou com força na mão já quebrada de Caio.
Um grito rasgou minha garganta, cru e desesperado. "Pare! Por favor, eu faço qualquer coisa! Pare!"
Lembrei-me de um Heitor diferente. Um homem que me encontrou, uma garota de orfanato assustada com uma alergia mortal a amendoim e um talento para a arte. Ele patrocinou minha educação, minha moradia, minha vida inteira.
Ele garantiu que cada cozinha que eu usasse fosse limpa e livre de amendoim. Ele contratou tutores, comprou os melhores materiais de arte e elogiou meu trabalho com um sorriso genuíno que fazia meu coração disparar.
Ele pegou uma garota quebrada e a fez se sentir inteira.
Ele me prometeu o mundo, um futuro, um lar. A única coisa que pediu em troca foi minha mão em casamento. Eu concordei sem pensar duas vezes. Eu estava tão apaixonada por ele.
Um de seus amigos uma vez brincou com ele: "Você olha para ela como se fosse a única coisa na sala." E ele apenas sorriu, me puxando para mais perto. Parecia um conto de fadas.
Então Flávia voltou de seu internato na Suíça.
De repente, senti o abismo entre nós. Flávia era uma Lacerda, adotada em uma família tradicional, uma verdadeira princesa. Eu era apenas um caso de caridade que Heitor havia acolhido.
Sua atenção mudou. As longas conversas que costumávamos ter foram interrompidas. Os toques casuais desapareceram. Ele estava sempre com Flávia, acalmando-a, satisfazendo todos os seus caprichos.
Eu finalmente entendi. Seu amor, ou o que eu pensava ser amor, havia seguido em frente.
Eu era um animal de estimação do qual ele se cansara. Flávia era seu tesouro.
Saí cambaleando do meu apartamento, minha mente um borrão de pânico e um único objetivo claro. Encontrar Flávia.
Cheguei à cobertura, minha chave ainda funcionando, e a encontrei na sala de estar, esparramada no sofá de seda. Heitor não estava lá.
Sua fachada doce e frágil havia desaparecido. Seus olhos estavam duros, seu sorriso, afiado. "Então, você veio."
"Onde está o Caio?", implorei, minha voz falhando.
"Você o quer de volta?", perguntou ela, examinando suas unhas perfeitamente feitas. "Então você sabe o que tem que fazer. Deixe o Heitor. Diga a ele que nunca o amou, que só o usou pelo dinheiro dele."
Lembrei-me de todas as vezes que Flávia "acidentalmente" derramou coisas no meu trabalho. As vezes em que meu remédio para alergia sumiu bem antes de um grande evento. As vezes em que Heitor ficou com raiva de mim por mal-entendidos que ela claramente havia criado.
Era tudo ela. Tudo.
A devoção de Heitor por ela era absoluta. Certa vez, ele deu um soco em um cara em uma festa por olhar para Flávia por tempo demais. Ele a via como frágil, como algo a ser protegido a todo custo. Uma proteção incestuosa e possessiva que eu só agora começava a entender.
"Eu vou fazer isso", sussurrei, as palavras com gosto de cinzas na minha boca. Eu não tinha escolha.
Os lábios de Flávia se curvaram em um sorriso presunçoso e satisfeito. Ela pegou o celular e digitou uma mensagem. "Boa menina."
Um momento depois, Heitor ligou. Sua voz estava leve, quase alegre. "Ele está no galpão velho no cais, Alana. Vá buscá-lo."
Dirigi como uma louca, minhas mãos tremendo no volante. Encontrei Caio encolhido em um canto, quebrado e tremendo.
Eu o abracei, minhas lágrimas encharcando sua camisa. "Me desculpe, Caio. A culpa é toda minha."
Ele apenas gemeu, seu corpo atormentado pela dor.
"Nós vamos embora", eu disse a ele, uma nova e dura determinação se formando em meu peito. "Vamos sair daqui. Eu prometo."
Levei-o ao hospital, e os médicos confirmaram que suas mãos precisariam de múltiplas cirurgias, sua carreira musical agora um sonho frágil e incerto.
Assim que ele se estabilizou, peguei meu celular e liguei para a única pessoa em quem sabia que podia confiar.
"Jonas?"
"Alana? O que aconteceu?" Sua voz era firme, uma rocha no meu mar de caos.
"Preciso da sua ajuda. Lembra daquele programa de intercâmbio que você falou para o Caio?"
Jonas, agora um advogado de sucesso, cresceu no mesmo orfanato que eu e Caio. Ele sempre cuidou de nós. Meses atrás, ele havia sugerido um prestigioso programa de música no Canadá para o Caio.
Caio recusou, não querendo me deixar sozinha.
E Heitor nunca me deixaria ir. Ele era meu dono.
Mas isso foi antes. Agora, eu tinha coragem. A coragem nascida do terror absoluto e do coração partido.
Eu estava indo embora. E ia levar meu irmão comigo.