Ele me encurralou contra a parede, seu beijo áspero e cruel, e murmurou que me ferir era sua maneira de punir a mulher que amava. Essa se tornou a rotina da nossa vida. Além de dar a Camila uma cópia do presente mais precioso deixado por minha mãe falecida, no aniversário da morte do nosso primeiro filho, ele me abandonou em luto para consolar a mulher, cujo gato havia morrido. Ao regressar, atirou às chamas os sapatinhos de lã que eu mesma havia tricotado para nosso bebê.
Mais tarde, outra gestação foi interrompida - gêmeos, dessa vez. No hospital, ele me deixou sozinha para jogar tênis com ela, alegando que a distração dela era mais urgente que minha dor.
O limite foi ultrapassado quando Camila espalhou ao vento as cinzas dos nossos gêmeos. Ele presenciou meu sofrimento, escutou meus gritos, mas ainda assim a protegeu.
"Dano não intencional não constitui crime, Joice", ele declarou.
Foi nesse instante que a mulher chamada Joice deixou de existir. Engoli os comprimidos que a silenciariam para sempre, permitindo que eu - Iris - emergisse e tomasse o controle.
Capítulo 1
O mundo acreditava que Cadu Almeida, o imponente CEO do Grupo Almeida, vivia preso em um romance fadado à tragédia. As colunas sociais e as revistas de celebridades alimentavam esse enredo com cores vívidas: um homem ligado por dever a uma esposa gentil e discreta, Joice, enquanto seu coração batia, na verdade, pela ousada e orgulhosa Camila Coutinho - chamavam isso de uma história entre obrigação e desejo.
Diziam que Cadu era um verdadeiro cavalheiro, zelando por sua esposa frágil contra as durezas de seu universo, ao mesmo tempo em que, sob os holofotes, oferecia a Camila uma corte pública - um espetáculo doloroso do amor impossível que poderia ter sido.
Eu, Joice, também me deixei enredar por essa ilusão. Acreditei na narrativa que Cadu arquitetara com tanto cuidado, para todos - e até para mim. Eu era a esposa silenciosa, a sombra obediente à qual ele estava amarrado, e achava que devia compreender. Seu apego a Camila era uma ferida aberta da juventude, e se a minha dor era o preço da sua paz futura, eu estava disposta a suportá-lo, porque o amava com devoção.
Hoje era nosso aniversário de casamento e preparei seu prato favorito. O aroma de rosbife se espalhava pelos corredores frios de nossa mansão moderna em São Paulo. A mesa, ornamentada com o cristal reservado às ocasiões especiais, aguardava.
Esperei. O relógio ultrapassou as sete, depois as oito, depois as nove. A cada hora, minha esperança minguava, e a refeição, cuidadosamente preparada, esfriava intocada.
Finalmente, ouvi a porta da frente. Cadu entrou com seu terno impecável e, sem lançar um olhar à mesa, passou direto, subindo as escadas, a expressão mascarada por uma indiferença glacial. Logo atrás, surgiu Camila Coutinho, triunfante, apoiada no batente da porta, seu vestido vermelho rasgando o monocromático corredor como uma ferida aberta.
"Bem, isso foi divertido, você realmente sabe como entreter uma mulher, Cadu", disse ela, carregando sarcasmo na voz.
Meu coração se contraiu ao perceber que ele já havia partilhado o jantar com ela.
Cadu parou na escada. Seus olhos percorreram Camila, depois a mim, pousando por fim na mesa posta. Um lampejo fugaz - talvez de irritação - atravessou seu rosto antes de ser disfarçado. Ele então desceu as escadas, se aproximando com movimentos pesados, ameaçadores.
Seus dedos se fecharam sobre a toalha branca e puxaram. O barulho de cristal e porcelana estilhaçando contra o mármore ecoou pela casa. Molho e vinho se espalharam em respingos vermelhos como sangue.
Eu me encolhi, um suspiro escapando sem controle. O rosto de Cadu era uma máscara de fúria selvagem, uma tempestade violenta e repentina quando avançou na minha direção, esmagando cacos de vidro sob os sapatos, e agarrou meu braço, o aperto de ferro.
"Por quê? Por que insiste em fazer esse tipo de coisa? Em me lembrar do que quero esquecer?", ele sibilou, a voz baixa, áspera, mais aterradora que um grito.
Não consegui responder, pois o medo apertava minha garganta.
Camila observava da porta, braços cruzados, o sorriso se alargando. Não precisava dizer nada - a vitória já era dela. Com um olhar de desprezo, ela se virou e foi embora, os saltos ecoando no asfalto molhado.
A fúria dele, porém, não cessou - ele me puxou ainda mais perto e segurou meu queixo, não com ternura, mas com crueldade. O beijo que me impôs foi brutal, uma violação, com gosto de vinho e de cinzas, um castigo destinado a humilhar.
"Agora entende, Joice? É assim que torturo ela, lhe mostrando o que nunca poderá ter, o que você faz", ele murmurou contra meus lábios feridos, o hálito impregnado de álcool.
As palavras não faziam sentido. Torturá-la ao me destruir?
No dia seguinte, as manchetes exibiam fotos dele e Camila em um leilão beneficente. Lá estava ele, colocando um colar caríssimo no pescoço dela, sob flashes incessantes. A legenda estampava: "A Devoção Eterna do CEO Cadu Almeida."
Enquanto isso, eu estava no consultório médico. As paredes brancas pareciam se fechar ao meu redor enquanto aceitava a receita - pequenos comprimidos brancos em um frasco âmbar.
"É um tratamento experimental, senhora Almeida, Pode auxiliar nos episódios dissociativos, permitindo integração... ou, em seu caso, facilitando uma transferência permanente de controle", disse o psiquiatra.
"Eu entendo", respondi, em voz quase inaudível. Mas eu não buscava integração, mas sim apagar Joice para sempre, permitindo que Iris emergisse. Era a única saída que me restava.
Naquela noite, Cadu não voltou trazendo desculpas, mas sim uma caixa elegante. Dentro, repousava uma caixinha de música encomendada sob medida - uma cópia perfeita daquela que minha mãe, já falecida, havia me presenteado, o objeto que ele sabia ser o mais precioso para mim. "O aniversário de Camila é semana que vem. Ela sempre gostou da caixinha da sua mãe. Mandei fazer uma réplica para presenteá-la", ele disse, sem olhar para mim.
Naquele instante, compreendi: ele estava sacrificando a memória da minha mãe em favor de Camila, e aquilo que eu guardava como o meu bem mais sagrado estava sendo reduzido a uma imitação destinada a outra mulher. No dia seguinte, ele jogou fora o cachecol de tricô que levei semanas confeccionando, alegando que a cor não lhe caía bem. Mais tarde, vi Camila exibindo, com orgulho, uma echarpe de caxemira exatamente da mesma tonalidade - um "presente de um admirador anônimo".
No aniversário da morte do nosso primeiro filho, acordei com a dor familiar que sempre me atormentava naquela data.
Cadu, que não estava em casa, simplesmente enviou uma mensagem, fazendo meu celular vibrar. "Cami está arrasada, o gato dela morreu. Vou levá-la ao litoral norte para animá-la. Não me espere."
Tarde da noite, ele retornou, impregnado de sal e perfume e me encontrou encolhida no quarto de bebê nunca usado, segurando a foto de ultrassom emoldurada. Vendo minha dor, os olhos dele endureceram.
Camila havia acabado de ligar, reclamando que a viagem não bastara, que ainda estava triste.
Sem uma palavra, ele caminhou até o pequeno berço branco, pegou os sapatinhos de lã que eu mesma havia tricotado, e os lançou na lareira.
Um grito despedaçado escapou de mim, depois, silêncio. Na manhã seguinte, acordei sozinha na cama fria.
Outra mensagem: "Desculpe por ontem. A Cami precisava de mim. Vou compensar você."
A hipocrisia me atingiu como um golpe físico. Horas depois, um motorista chegou para me levar até o prédio do Grupo Almeida, onde Cadu estava esperando alguns documentos.
Quando cheguei, a porta do escritório estava entreaberta.
Ouvi a voz melosa de Camila: "Cadu, meu colar quebrou. Você poderia consertar para mim?"
Espiei - Cadu estava de joelhos diante dela, curvado em reverência, cuidando do fecho como se fosse algo precioso. Seus gestos eram delicados e ternos, um cuidado que jamais me oferecera.
O sorriso presunçoso dela se alargou, até que, entediada, afastou o colar. "Deixe pra lá, não quero mais."
Um lampejo de frustração cruzou o rosto dele, mas foi rapidamente disfarçado.
Nesse momento, um pânico súbito me tomou ao tocar meu pescoço e me dar conta de que o medalhão que minha mãe me dera, com a pequena foto do ultrassom do meu bebê, havia sumido. Eu devia tê-lo deixado cair.
Ignorando o motorista, ignorando tudo, saí correndo do prédio. Eu precisava encontrá-lo. A chuva despencou, fria, castigando meu corpo já dolorido. Refiz os passos, a cabeça latejando, até a entrada do edifício.
E lá estavam eles - Cadu, sob um grande guarda-chuva, protegia Camila, que resmungava sobre os sapatos arruinados.
"É só água, Cami", disse ele, em um tom inexplicavelmente terno.
A cena me atravessou como uma lâmina, pois era idêntica ao dia em que perdemos nosso primeiro filho - chovia assim e Cadu me abraçara, protegendo-me da tempestade, jurando que tudo ficaria bem. Fechei os olhos com força, sufocada pela lembrança.
Quando tentei me afastar, Camila me viu. Seu rosto se contorceu em zombaria ao perguntar: "O que faz aqui, Joice? Perseguindo seu próprio marido?"
Ela se aproximou, os saltos estalando no asfalto molhado, cravou as unhas no meu braço e cuspiu: "Você é patética."
Na outra mão, ela trazia algo - meu medalhão.
"Procurando por isso?", ela zombou, o balançando diante do meu rosto. "É tão barato. É só isso que ele te dá?"
Assim que terminou de falar, ela abriu a mão, derrubando o medalhão numa poça de lama. Um carro passou por cima, o esmagando com um estalo seco. Só existia ali o pedaço de prata destruído - o último vestígio do meu bebê, o último fragmento de minha mãe. O mundo silenciou, com tudo perdido.
Algo se partiu dentro de mim. Sem pensar, avancei e empurrei com toda a força Camila, que tombou na rua.
A chuva cessou de repente, e o sol rompeu as nuvens, derramando uma luz cruel sobre a cena.
Camila tremia no chão, convulsionando, um som gutural lhe escapando da garganta.
Cadu correu até ela e a ergueu nos braços enquanto gritava pelo nome dela. Então se voltando para mim, exigiu: "O que você fez com ela?"
Ele a embalava, murmurando ternura, como se eu não existisse.
Despertei no hospital. Cadu estava ao meu lado, o rosto mascarado de preocupação.
"Me perdoe, Joice", ele disse, sua voz suave como seda. "Camila sofre de uma condição rara e o estresse desencadeia convulsões. Foi um erro trazê-la. Nunca mais acontecerá."
Olhei para o homem que um dia amei e, pela primeira vez, não senti nada, apenas o vazio. Me lembrei do medalhão esmagado e da forma como ele olhou para mim.
Quando ele estendeu a mão, me afastei. Ele acompanhou meu olhar até uma pequena caixinha de veludo na mesinha de cabeceira e a abriu, mostrando um medalhão novo, cravejado de diamantes.
"Comprei outro para você, esse é melhor, não acha?", comentou ele, como se pudesse consertar as coisas.
Fitei a joia brilhante. Ele não compreendia, nunca compreenderia...
Ele acreditava que meu coração poderia ser substituído por um diamante...
Inclinando-se até que seu hálito quente roçasse minha pele, ele reduziu a voz a um sussurro venenoso: "Não se preocupe, Joice. Camila não passa de um instrumento. Estou apenas usando-a para acertar as contas com a família dela pelo que fizeram à minha. Quando tudo terminar, vou descartá-la. Sempre amei você."
Mas suas palavras eram velhas demais, gastas demais, e eu já não ouvia a melodia.