O céu era uma tigela opaca, sem estrelas. O mundo parecia suspenso, contido. As montanhas não eram simples elevações: eram resquícios de um corpo mais antigo que o tempo. Asha sentia isso em seus ossos. Como se Aeolina a tivesse trazido ali não apenas para escondê-la, mas para lhe mostrar algo. Ou alguém. A teia de fogo que ela sentia sob a pele, desde que o fragmento do Coração do Templo pulsara em seu peito, pulsava com mais força agora. Era como se aquelas montanhas também fossem um nó. Uma pulsação adormecida da rede.
Kael mal falou durante a jornada. Seu braço direito, petrificado até o ombro, começara a perder temperatura. Asha o observava com o canto do olho, como se sua pele pudesse rachar com um olhar muito direto. Cada passo parecia lhe custar mais, mas ele não reclamava. Nunca reclamava. No entanto, o tremor em sua mão esquerda e a forma como sua respiração se condensava mais pesadamente do que a dos outros traíam o progresso da pedra. Às vezes, quando pensava que ela não estava olhando, ele pressionava os dedos contra o coração, como se tentasse sentir se ainda era humano.
Lirien liderava o caminho, guiando-os com a certeza de alguém que lera aquele caminho não em mapas, mas em sonhos. Ele usava uma túnica puída, sem insígnias. Ele havia mudado desde a queda do templo. Mais severo, mais silencioso. Mas também mais perigoso. Como uma tocha que sabe quando não queimar. Ele havia assumido a causa rebelde com uma intensidade que não deixava espaço para dúvidas ou luto. Todas as noites, ela estudava pergaminhos com a mesma ferocidade com que outros afiavam espadas.
Eles chegaram à beira de uma saliência coberta de líquen vermelho. Além dela, um vale se abria entre formações retorcidas que pareciam dentes de pedra. No centro, em meio a tênues nuvens de fumaça, erguiam-se as ruínas de uma fortaleza enterrada na rocha. Não era um refúgio. Era uma testemunha. O vento carregava um murmúrio estranho, como se as pedras se lembrassem de ter sido outra coisa: colunas de um templo esquecido ou os ossos de uma criatura extinta.
Uma figura encapuzada os esperava entre os pilares quebrados. Alta, ereta, como se o tempo lhe devesse respeito. Asha notou o símbolo em seu cajado: uma espiral quebrada cercada por fogo. Ela reconheceu a marca. Era dos Guardiões... mas invertida. O cajado também tinha uma rachadura escura, como se uma energia invisível o tivesse partido por dentro.
"Bem-vinda, chama da lembrança", disse a figura, sua voz como um trovão abafado. "Estávamos esperando por você."
Asha deu um passo à frente. Ela sentiu o fragmento do Coração do Templo pulsar sob suas roupas, contra sua pele. Ele pulsava com aquelas palavras, como se estivesse respondendo. Calor era uma linguagem. E falava de reconhecimento.
"Quem são eles?", perguntou Kael, com a voz rouca.
"Os Filhos do Fogo Quebrado", respondeu Lirien, sem olhar para trás. "Aqueles que sobreviveram à traição de sua própria espécie."
A figura assentiu. Ela abaixou o capuz. Era uma mulher com cabelos brancos como cinzas, pele escura marcada por linhas flamejantes que não eram tatuagens, mas cicatrizes cruas. Ou queimaduras que não doíam. Seus olhos eram de um âmbar antigo, quase sólidos. Ela não piscou. Parecia ver as palavras lá dentro.
"Você trouxe o primeiro fragmento", disse ela. "Então ainda há esperança."
Asha apertou os dedos em volta do fragmento escondido. Ela sentia tudo dentro dela queimando um pouco mais a cada dia e, ao mesmo tempo, algo estava se desintegrando. Não em seu corpo, mas em sua memória. Houve momentos em que ela confundiu as memórias de outras pessoas com as suas. As vozes de mulheres mortas falavam através de sua boca em seus sonhos.
"O império começou a caçar nós", disse Lirien. "Eles sabem que há mais corações. Mais memórias."
"E você é a única que pode segurá-las", acrescentou a mulher. "Se as cinzas forem confiadas àqueles que não se lembram... elas se tornam ruína."
Kael encostou-se a uma rocha. Não disse nada. Sua respiração estava lenta. As veias perto de seu ombro petrificado incharam. Asha não conseguia parar de olhar para o pescoço dele, como se a pedra pudesse escapar a qualquer momento. O coração de obsidiana, invisível sob sua pele, batia com uma frequência estranha. Não como um músculo. Como um aviso.
"Preciso aprender", disse Asha. A conter as memórias. A não me perder nelas.
"Então você veio ao lugar certo", disse a velha. "Mas o preço será alto."
Asha não desviou o olhar. O caco queimava um pouco mais forte em seu peito. Atrás dela, Kael murmurou seu nome. E o som daquela palavra pareceu acender algo nas ruínas. Várias tochas escondidas, apagadas há anos, tremeluziam como se atendessem ao chamado. Era a teia. Ainda viva.
Os Filhos do Fogo Quebrado os conduziram por uma passagem profunda, onde as paredes estavam cobertas de afrescos quase invisíveis: batalhas sem heróis, guardiões caindo por mãos humanas, chamas apagadas e depois reacendidas. Asha sentiu as imagens se moverem, só de olhar para elas.
Eles desceram para uma câmara circular onde a pedra vibrava com uma energia subterrânea. Lá, outros os aguardavam: homens e mulheres de todas as idades, com marcas semelhantes às da velha. Alguns jovens, outros tão velhos que pareciam esculpidos pelo tempo. Todos os olhares se fixaram nela. Não com devoção, mas com expectativa. Como se esperassem ser provados errados.
"Aqui vocês aprenderão a resistir ao colapso", disse a mulher. "Segurá-lo sem se virar. Lembrar sem desaparecer. Mas você precisa abrir mão de algo primeiro."
"O quê?" perguntou Asha, embora já temesse a resposta.
"Além das suas emoções", disse a mulher. "As cinzas respondem aos sentimentos. Se você sente demais... elas te arrastam para baixo. Se você não sente nada... elas te ignoram. Você precisa encontrar o equilíbrio. E isso só acontece quando se perde algo real."
Asha engoliu em seco. Pensou na mãe. Nas vozes nas cinzas. No momento em que tocara o Coração pela primeira vez. Tudo aquilo fora guiado pela emoção. Quem seria ela sem isso?
"Você terá que escolher", continuou a velha. "Uma memória para selar. Uma emoção para silenciar. Só então você poderá começar."
Kael tentou se sentar, mas seu corpo não respondeu. Ele caiu de joelhos e Asha correu para apoiá-lo. Sua pele já estava fria. Como pedra. Como uma estátua viva.
"Kael..." ela sussurrou.
Ele olhou para cima. Achava difícil falar.
"Não me deixe... desaparecer... sem você."
A velha os observou em silêncio. Então assentiu, como se algo tivesse ficado claro.
"O coração de obsidiana também tem um preço. Mas ainda há tempo. Se ela escolher bem."
Asha fechou os olhos. Sentiu a pulsação do fragmento. Sentiu a teia. Sentiu que o fogo não queria ser uma arma. Queria ser uma linguagem. E ela... precisava aprender a falar.
"Estou pronta", disse ela.
E o quarto se encheu de um calor profundo, como se as próprias montanhas respirassem pela primeira vez em séculos. A revolução não se ergueria com gritos. Começaria com cinzas sussurrantes. Novamente.