Naquela noite, o bar "Estrela do Norte" estava mais agitado que o comum. Mesas de madeira rangiam sob o peso de copos cheios, risadas ecoavam entre os habitués, e o rádio tocava uma música sertaneja antiga, quase abafada pelo burburinho. José, um homem de trinta anos, magro, com olhos fundos e uma barba rala que escondia as marcas de noites mal dormidas, enxugava o balcão com um pano puído. Ele era conhecido no bairro: um sujeito quieto, mas com um sorriso fácil que conquistava os clientes. Mas quem o conhecia de verdade sabia que José carregava um peso invisível, algo que às vezes fazia seus olhos vagarem para o vazio, como se ele estivesse esperando algo - ou alguém.
O sino da porta tilintou, cortando o barulho do bar. Três figuras entraram, e o ar pareceu mudar. Os clientes mais atentos baixaram o tom de voz, e até o rádio pareceu perder força. José congelou por um instante, o pano parado no balcão. Ele conhecia aqueles homens. Não precisava olhar duas vezes para reconhecer o jeito de andar, as roupas escuras, os olhares que cortavam como lâminas. Eram capangas de Miguel, o homem que controlava as entranhas de Vila Nova com mãos de ferro e um sorriso frio.
O líder do trio, um homem corpulento chamado Vargas, com uma cicatriz que atravessava a sobrancelha esquerda, se aproximou do balcão. Os outros dois, conhecidos apenas como Tito e Rato, ficaram um passo atrás, os olhos varrendo o ambiente. Vargas se inclinou, os antebraços apoiados no balcão, e falou baixo, mas com uma autoridade que não deixava espaço para réplicas.
- José, meu amigo. Quanto tempo, hein? - A voz de Vargas era rouca, quase amigável, mas carregava um veneno sutil. - O chefe tá perguntando por você.
José engoliu em seco, o pano escorregando de suas mãos. Ele tentou manter a compostura, forçando um sorriso que não convencia.
- Vargas. Não esperava vocês por aqui. - Ele limpou as mãos no avental, mais por nervosismo do que por necessidade. - O que o Miguel quer agora?
Vargas riu, um som curto e seco, como se a pergunta fosse uma piada. Ele se inclinou ainda mais, o rosto tão perto que José podia sentir o cheiro de cigarro e uísque no seu hálito.
- Você sabe o que ele quer, José. Não se faz de bobo. - Ele fez uma pausa, deixando o peso das palavras pairar. - Aquela dívida não vai sumir sozinha. O chefe tá ficando impaciente.
José desviou o olhar, os dedos tamborilando no balcão. Ele sabia do que Vargas falava, mas o que exatamente era essa dívida? Algo em seu passado, algo que ele tentava enterrar, mas que sempre voltava para assombrá-lo. Ele abriu a boca para responder, mas Tito, o mais magro dos capangas, com um olhar viperino, o interrompeu.
- Duas horas, José. - A voz de Tito era afiada, cortante. - Você tem duas horas pra entregar o que deve. E não é dinheiro que o Miguel quer dessa vez.
José sentiu o sangue gelar. Ele olhou de Vargas para Tito, depois para Rato, que permanecia calado, mas com um sorriso torto que era mais ameaçador que qualquer palavra. O que Miguel queria? Por que agora? E por que a menção a algo além de dinheiro? José pensou em Alaz, seu filho, dormindo tranquilo em casa, e um calafrio percorreu sua espinha.
- Eu... eu não sei do que vocês estão falando - gaguejou José, mas sua voz tremia, traindo-o.
Vargas se endireitou, batendo as mãos no balcão com força suficiente para fazer os copos tremerem.
- Não testa a paciência do chefe, José. Duas horas. E é melhor que seja o que ele pediu. - Ele se virou, fazendo um sinal para os outros dois. - A gente volta. E você não vai querer que a gente volte bravo.
Os três saíram do bar, deixando um silêncio incômodo no ar. José ficou parado, o coração disparado, as mãos trêmulas. Ele sabia que não podia ignorar a ameaça. Não com Miguel. Não com aqueles homens. Ele jogou o pano no balcão, gritou para o ajudante que precisava sair e correu para a rua, o medo pulsando em suas veias.
...
Enquanto isso, em uma casa modesta no fim da Rua das Acácias, Clara cantarolava uma canção de ninar enquanto arrumava a pequena sala. Aos 28 anos, Clara era a definição de resiliência: cabelos castanhos presos em um coque frouxo, olhos gentis, mas com uma força que vinha de anos enfrentando dificuldades ao lado de José. Ela dobrava roupas, varria o chão e organizava os poucos brinquedos de Alaz, que dormia no berço no quarto ao lado. A casa era simples, mas cheia de amor: fotos emolduradas de momentos felizes, cortinas coloridas costuradas por ela mesma, e o cheiro de café fresco que ainda pairava no ar.
O som da porta da frente se abrindo com violência a fez parar. José entrou como um furacão, o rosto pálido, os olhos arregalados. Ele trancou a porta atrás de si e correu para Clara, segurando-a pelos ombros.
- Clara, pega o Alaz e arruma as malas. Agora! - Sua voz era um misto de desespero e urgência. - A gente precisa ir embora. Já!
Clara franziu a testa, confusa, o pano de prato ainda nas mãos.
- José, o que tá acontecendo? Por que essa pressa? Você tá me assustando!
- Não tem tempo pra explicar! - Ele quase gritou, correndo para o quarto e abrindo gavetas, jogando roupas em uma bolsa velha. - Pega o Alaz, Clara! Pega ele e arruma o que puder. A gente tem que sair dessa cidade agora!
Clara ficou paralisada por um instante, o coração apertado. Ela nunca tinha visto José assim, tão fora de si. Ele sempre foi calmo, mesmo nas piores crises. O que poderia ter acontecido no bar para deixá-lo nesse estado? Ela correu para o quarto de Alaz, pegando o bebê com cuidado. O menino resmungou, mas não acordou, aninhado nos braços da mãe. Clara começou a jogar fraldas e roupas em uma mochila, o medo começando a tomar conta dela.
- José, me diz o que tá acontecendo! - insistiu ela, voltando para a sala com Alaz no colo. - É dinheiro? É algum problema no bar? Fala comigo!
José parou por um segundo, os olhos cheios de angústia. Ele queria contar, queria explicar, mas como poderia? Como contar a Clara sobre o passado que ele jurou deixar para trás? Sobre os erros que cometeu antes de conhecê-la? Sobre o que Miguel realmente queria? Ele apenas balançou a cabeça, a voz rouca.
- Não é hora, Clara. Confia em mim. A gente precisa ir.
Antes que Clara pudesse responder, o som de pneus cantando na rua os fez congelar. José correu para a janela, afastando a cortina com cuidado. Três carros pretos, com vidros escuros, pararam em frente à casa. Portas se abriram, e vultos desceram, as silhuetas iluminadas apenas pelos postes fracos da rua. José reconheceu o jeito de andar de Vargas. Eles tinham voltado. E não tinham esperado as duas horas.
- Clara, vai! - José gritou, empurrando-a em direção à porta dos fundos. - Corre com o Alaz! Sai pelos fundos, agora!
Clara, com lágrimas nos olhos e o coração disparado, segurou Alaz com mais força.
- José, vem com a gente! O que tá acontecendo? - Sua voz tremia, mas José já estava pegando uma pistola escondida em uma gaveta da cômoda, um segredo que Clara nunca soubera que existia.
- Vai, Clara! Protege nosso filho! - Ele a empurrou suavemente, mas com firmeza, em direção à porta dos fundos. - Não olha pra trás!
Clara correu, os pés descalços batendo contra o chão frio. Ela abriu a porta dos fundos, o ar gelado da noite invadindo seus pulmões. Com Alaz apertado contra o peito, ela começou a correr pelo quintal escuro, o som de vozes graves e passos pesados ecoando da frente da casa. Então, o silêncio foi quebrado por disparos. Tiros altos, secos, que cortaram a noite como facas. Clara parou por um instante, o corpo tremendo, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela queria voltar, queria gritar pelo marido, mas o choro de Alaz a trouxe de volta à realidade. Ela precisava protegê-lo.
Os tiros ainda ecoavam no ar quando Clara desapareceu na escuridão, deixando para trás a casa, José, e todas as respostas que ela nunca teve. O que José devia a Miguel? Por que queriam seu filho? E o que aqueles tiros significavam? A noite engoliu Vila Nova, e com ela, o início de um segredo que mudaria tudo.