Bom, é meu aniversário. De novo.
Acordei neste quarto sem graça, sem vida. Sabe aqueles dias em que você desperta e nada parece interessante? Pois é. Outra cidade, outra casa, outra escola. Meu pai vive se mudando, e eu nunca entendo por quê. Eu gostava da nossa antiga casa, em **Valedourado**. A cidade era linda, cheia de campos e praças, cheia de histórias. Mas, acima de tudo, cheia de amigos. Pelo menos, eu tinha isso.
Lembro pouco de lá. As lembranças vêm em flashes. Um jardim, um dia ensolarado, risadas misturadas com o cheiro da terra úmida. E ela.
Eu tinha uma amiga. Ou pelo menos achava que tinha. Ela era idêntica a mim... mas o inverso. Meus olhos verdes brilhavam nela como castanhos, e o meu cabelo negro se refletia nos fios loiros dela. Era como olhar para um espelho distorcido, uma versão invertida de mim mesma. Mas toda vez que meu pai aparecia, ela desaparecia. Como se nunca tivesse existido.
Não, eu não tenho irmãos. E minha mãe? Bom... nunca a vi. Meu pai evita falar sobre ela. Diz que fez de tudo para me proteger, mas que ainda a ama. Me pergunto se adultos realmente entendem o que é amar alguém.
Suspiro. Melhor começar o dia. Escovo os dentes, me arrumo. O moletom velho é o de sempre, um conforto em meio ao desconhecido. Quando desço as escadas, encontro meu pai já à mesa.
- Bom dia, Dora. Hoje é um dia especial, hein? - Ele sorri, enquanto um café da manhã impecável me espera.
Todo ano ele faz isso. Nunca falha. Todo aniversário, um café da manhã perfeito. É a forma dele de tentar fazer tudo parecer normal. Dou um sorriso de canto, tentando corresponder ao esforço dele.
- Bom dia, pai.
Ele me encara por um instante, como se quisesse dizer algo a mais, mas apenas suspira.
- Filha, hoje eu tenho que trabalhar, mas no fim do dia vamos fazer algo especial. Afinal, não é sempre que se faz dezesseis anos.
Dezesseis anos. Caramba.
E, de novo, sou a novata na escola. A garota nova, a estranha, aquela que precisa recomeçar tudo outra vez. Olho pela janela. A cidade desconhecida lá fora parece me observar de volta, silenciosa, à espera.
Vamos lá.
A ida até escola foi estranhamente silenciosa. Pela manhã, com meu pai, tentamos puxar assunto. Ele parecia ter algo no olhar, um brilho amarelado que não consegui entender. Será que é só porque fiz 16 anos?
"Tá aí, filha. Sua nova escola. Eu sei que começar de novo é difícil. Ainda mais... numa data tão importante pra você. Mas a gente precisa sair de Vale Dourado. Eu sei que prometi ficar por perto, mas já estava na hora de irmos. Você está ficando mais velha e... Bom, um dia você vai entender. Não vou falar sobre isso agora. Tenho... meus problemas", ele disse, sem terminar a frase.
Fiquei confusa. Não entendia o que ele queria dizer, parecia que queria me contar algo, mas estava escondendo. Ele se calou, e o resto do dia passou em um estranho silêncio.
Cheguei à escola, que já estava em pleno semestre. Todos me olharam assim que entrei. Me senti deslocada, como uma figura estranha que acabou de aparecer no meio de algo que não compreendia. Sentei no canto da sala, tentando me esconder, mas era difícil. Eu era uma garota diferente, não conseguia passar despercebida.
Foi então que Nuri, uma menina que eu ainda não conhecia, puxou conversa. Não perguntou de onde eu era, mas logo começamos a conversar. Ela tinha um jeito animado, um sorriso contagiante . O nome dela era diferente, e sua risada também. De alguma forma, me senti um pouco mais à vontade.
Durante o intervalo, fomos almoçar juntas. Enquanto comíamos, meu olhar foi atraído para o outro lado do pátio. Sem saber porquê, meus olhos se encontraram com os de um rapaz. Ele era... diferente. Seus olhos eram verdes, mas não eram verdes comuns. Eles eram verdes como os meus, com um brilho que me fez questionar se aquilo era possível. Nunca tinha visto ninguém com aqueles olhos.
E seu cabelo... castanho, com um tom acobreado, caindo de forma desordenada, o que me deixou curiosa. Mas foi quando percebi uma cicatriz que ia do queixo até o pescoço dele que meu coração acelerou. Algo nele parecia estranho, e, ao mesmo tempo, familiar.
Ele me observava de um jeito intenso, como se tentasse me entender, me conhecer mais de perto. Mas, ao sentir aquele olhar pesado, desviei o meu. Que estranho. Como se ele me conhecesse. Ou como se, de alguma forma, eu já o conhecesse.
Nuri, que tinha percebido tudo, olhou para mim com um sorriso travesso.
"Nem tenta, amiga", ela disse. Eu dei uma risada sem graça e respondi: "Tá doida?"ela continuou "Esse garoto é o mais popular daqui. O nome dele? Gabriel. Todas as meninas estão atrás dele. Mas eu vou te contar um segredo: ele não dá bola pra nenhuma. É como se ele fosse de outro mundo. De vez em quando, ele me manda um oi. Mas é só isso. Mais nada."
Nuri não parecia convencida com minha resposta. Ela me observou por um momento, como se estivesse tentando decifrar algo em mim. Fiquei desconfortável com o olhar dela, mas ela apenas sorriu e mudou de assunto, como se a conversa anterior nunca tivesse acontecido.
"Você viu aquele garoto lá na frente, no corredor? Ele parece estranho. Já reparou nele?" Nuri perguntou, inclinando a cabeça de forma curiosa.
Eu a olhei, mas só consegui pensar em Gabriel. Seus olhos verdes. Como se tivessem algo de... enigmático. Era como se eles guardassem um segredo, algo que eu não conseguia compreender. E a cicatriz. Havia algo sobre ela que me incomodava. Mas eu não podia explicar o porquê. Era como se aquele garoto tivesse uma história que se cruzasse com a minha, sem que eu soubesse exatamente como.
"Qual garoto?" respondi, tentando parecer despreocupada.
Ela riu. "É, sei. Você está preocupada com o Gabriel. Não se preocupe, ele não vai dar bola para você. E, sinceramente, quem quer a atenção de um garoto como ele? Ele é o tipo que gosta de ser o centro das atenções."
Tentei ignorar o que ela disse, mas as palavras de Nuri não saíam da minha cabeça. Quem quer a atenção de um garoto como ele? Não sei por que, mas uma sensação estranha tomou conta de mim. Uma sensação de que havia algo mais por trás daquela história toda. Algo além da superfície.
Ao longo do dia, as palavras de Nuri ficaram ecoando na minha mente, mas o que me inquietava ainda era Gabriel. Quando a aula terminou, tentei sair rapidamente, evitando o olhar de todos. Mas, antes que eu pudesse alcançar a porta, vi de novo aqueles olhos. Ele estava ali, de pé, observando-me à distância. Seus olhos não saíram de mim. E, por um momento, senti como se o tempo tivesse desacelerado. Como se, naquele instante, houvesse algo de estranho entre nós dois.
Tentei afastar o pensamento, mas não consegui. Era como se eu fosse atraída para ele por uma força invisível. A minha mente gritava para eu sair dali, para esquecer aquela sensação desconfortável, mas algo dentro de mim me impelia a ficar.
Então, sem pensar duas vezes, comecei a caminhar na direção dele. Não sabia o que estava fazendo, mas sabia que precisava fazer isso. Cheguei mais perto, meus passos pareciam ecoar no silêncio do corredor. Quando estava quase à sua frente, ele me olhou diretamente nos olhos. O mesmo olhar penetrante.
E foi nesse instante que ele falou.
"Eu sabia que você viria."