Capítulo 1 – Casamento em Ruínas
O relógio na parede da sala marcava 23h17 quando Júlia Park ouviu a porta da frente se abrir. Não era incomum Rodrigo chegar tarde ultimamente, era mais regra do que exceção.
Mas naquela noite, havia algo diferente no modo como ele fechou a porta: sem pressa, sem disfarce. Como se quisesse que ela soubesse que ele estivera fora.
Ela estava sentada no sofá, envolta num cobertor, tentando se aquecer do frio que vinha tanto de dentro quanto de fora. O chá de camomila em suas mãos já estava morno, esquecido, como tantas outras coisas em sua vida.
O casamento, o amor, a esperança. Tudo parecia se apagar lentamente, como um fósforo queimando até o fim.
- Ainda acordada? - Perguntou ele, tirando o casaco com um suspiro irritado.
Ela não respondeu de imediato. O observou em silêncio.
O perfume feminino que não era dela pairava no ar, doce e enjoativo. Por um momento, ela quase riu. Ele nem se dava mais ao trabalho de esconder.
- Estava esperando você -Disse finalmente, com a voz baixa, mas firme.
Rodrigo arqueou uma sobrancelha.
- De novo com isso? Vai começar uma cena às onze da noite?
Ela respirou fundo. Seus dedos apertaram a caneca como se precisasse se agarrar a alguma coisa.
- Você me deve, ao menos, a verdade.
Ele riu. Uma risada fria, quase debochada.
- A verdade? Júlia, se você quisesse a verdade, teria perguntado dez anos atrás. Agora? Agora você só quer um motivo pra me odiar sem culpa.
Ela sentiu algo quebrar por dentro. Dez anos de casamento. Dez anos de sacrifícios, de sorrisos forçados, de sonhos adiados. E agora ele falava com aquele desdém, como se ela fosse uma intrusa em sua própria casa.
- Estou doente, Rodrigo - Disse ela, e o silêncio caiu pesado entre eles.
Ele parou, os olhos fixos nela, mas sem emoção.
- Que tipo de doente?
- Câncer. Em estágio avançado.
Por um instante, ela viu algo passar por seu rosto. Não era choque. Não era tristeza. Era irritação. Como se a doença dela fosse... um incômodo.
- Isso muda tudo, né? - Murmurou ele, virando-se para a cozinha. - Como se eu já não tivesse problemas demais.
- Eu pensei que você fosse, pelo menos, fingir que se importava.
Ele pegou um copo d'água, bebeu devagar e respondeu sem olhar para ela:
- E eu pensei que você fosse forte. Não esperava que fosse desistir assim.
Ela se levantou, cada movimento um esforço. O tratamento já havia começado há meses, mas ela não contara a ele. Não por medo mas por decepção. Porque já sabia que ele não seria um apoio. E agora, diante da confirmação, sentia-se vazia.
- Há quanto tempo? - ela perguntou, cruzando os braços. - Você e a Bárbara.
Ele a encarou. Finalmente. E não disse nada. O silêncio dele era a resposta mais cruel.
- Eu confiei em vocês dois. Minha melhor amiga. Meu marido.
- Isso acontece, Júlia - disse ele, como se estivesse explicando a previsão do tempo. - Pessoas mudam. Sentimentos mudam.
Ela riu, um som amargo e sufocado.
- E a dignidade? Essa muda também?
Ele deu de ombros. Passou por ela como se fosse um móvel da sala. Foi até o quarto, bateu a porta. Ela ficou ali, parada, tremendo.
Naquela noite, sozinha na sala silenciosa, Júlia compreendeu que estava morrendo em mais de um sentido. O corpo, minado por uma doença cruel. A alma, destroçada por uma traição ainda mais implacável.
Mas antes que o sono chegasse, antes que a dor a vencese, uma ideia começou a crescer, silenciosa, sombria, potente:
"Se eu tivesse uma segunda chance... faria tudo diferente."