THUNDER
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THUNDER
O frio de novembro corta-me a pele enquanto estou encostado à parede do Ringue Clandestino, no coração de Roseland. O bairro está cada vez mais degradado - prédios antigos, lojas fechadas, grafitis nas paredes e o som distante de sirenes a lembrar-me que a criminalidade nunca dorme por aqui. Há quem diga que Roseland já viu dias piores, mas basta andar pelas ruas para perceber que a esperança é um luxo raro. Vejo miúdos a correrem para a escola, sempre a olhar por cima do ombro, e velhos sentados nas escadas, a fumar cigarros baratos e a contar histórias de tempos melhores. Aqui, a vida é dura e ninguém confia em ninguém.
Acabo o cigarro, as mãos geladas e os dedos a tremer. Vendi a minha moto há uma semana - precisava do dinheiro - e agora sou mais um entre tantos no metro apinhado, a cheirar a suor e a desespero. Odeio esta sensação de ser só mais um. Sinto-me velho, cansado, zangado com tudo.
Respiro fundo, empurro a porta pesada do ginásio e entro. O cheiro a suor, sangue seco e desinfetante é quase reconfortante. Ali dentro, o tempo parece parar.
Mikhail Kournikova está sentado atrás do balcão, a beber café num copo de plástico. Tem 58 anos, é gordo, calvo, e tem um sotaque russo que nunca perdeu, apesar de viver em Chicago há décadas. O fato está amarrotado e a gravata mal apertada.
- Thunder! - diz ele, abrindo um sorriso amarelo. - Ainda não acredito que te rendeste. Um campeão como tu, fora do ringue? Que desperdício.
- Tive de definir prioridades, Mikhail. - A minha voz sai mais áspera do que queria.
Ele encolhe os ombros, como se não ligasse.
- Anda, vamos para o escritório. Aqui há ouvidos a mais.
Seguimo-nos por um corredor estreito, paredes cheias de cartazes de combates antigos. No escritório, Mikhail senta-se na sua cadeira de couro gasto e faz-me sinal para me sentar em frente dele.
- Então, Thunder, diz-me lá: porquê agora? Porquê quereres ser treinador, depois de tanto tempo fora?
Suspiro, olho para as mãos.
- A minha mulher pediu o divórcio há três meses. Agora moro sozinho num apartamento de cinquenta metros quadrados. O dinheiro que guardei está a acabar. Preciso de trabalho, Mikhail.
Ele observa-me com olhos pequenos e frios.
- E o que fizeste durante este tempo longe das lutas?
- Trabalhei numa concessionária de automóveis. Mas faliu há uns meses. Desde aí, nada de estável.
Mikhail abana a cabeça, pensativo.
- Sabes que não costumo dar segundas oportunidades, Thunder. Mas para ti... vou abrir uma exceção. Vais começar como treinador assistente. Tens uns meses para mostrares que ainda tens garra.
Levanto-me, agradecido.
- Obrigado, Mikhail. Não te vou desiludir.
Ele sorri, mas os olhos continuam frios.
- Espero bem que não. Agora vai à tua vida. Amanhã às oito, aqui.
Saio do ginásio com o coração apertado, mas pelo menos tenho um rumo. O frio volta a atacar-me quando apanho o metro para buscar o Leo à escola. O miúdo salta para os meus braços assim que me vê, sorriso rasgado.
- Pai! Hoje fiz um desenho de um dinossauro! E a professora disse que estava muito bonito!
- Aposto que estava, campeão. Mostras-me quando chegarmos a casa?
Ele abana a cabeça, entusiasmado.
- Sim! E também joguei à bola no recreio. Ganhei ao Miguel!
Riu-me, o orgulho a aquecer-me por dentro.
- És mesmo o meu filho.
Passamos o resto da tarde entre desenhos, legos espalhados pelo chão e risos. À noite, faço-lhe panquecas, porque é o seu jantar preferido. Enquanto o vejo adormecer no sofá, penso que, por mais que a vida me tenha dado pancada, ainda tenho motivos para lutar. E amanhã, no Ringue Clandestino, vou provar isso a mim mesmo.
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