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Acordei com um som irritante de batidas na porta, que me tira do meu sono profundo. Resmungando, levanto da cama e me arrasto até a porta com uma expressão de mau-humor. A claridade do dia lá fora invade o quarto, revelando as rachaduras nas paredes e a pobreza do lugar que chamo de lar.
Um vento gelado entra pela fresta da porta, fazendo-me encolher. Hiveria, o reino gélido onde agora vivo, parece querer me lembrar de sua hostilidade. O ar frio corta a pele, e a ausência de calor é como um lembrete de que estou longe do lugar quente onde nasci.
Meus olhos se arregalam ao reconhecer a figura à minha frente. Isolde, com sua pele negra brilhando tanto quanto seu sorriso radiante, seus cabelos cacheados presos em um coque impecável e um vestido de veludo que realça suas curvas, me olha com olhos cheios de expectativa. Seu entusiasmo matinal é quase ofensivo, contrastando com meu estado sonolento e irritado.
Como ela consegue estar feliz tão cedo é um mistério para mim, sua aparência elegante destoa da realidade da rua lá fora, onde todas as casas parecem estar prestes a desabar. Suas joias e sua sofisticação parecem zombar das construções decadentes ao nosso redor.
- Bom dia, querida Ellara! - ela me cumprimenta com uma voz melodiosa que poderia derreter até o gelo mais duro. - Espero não tê-la acordado.
Resmungo alguma resposta incoerente, ainda tentando me adaptar ao fato de que já é manhã. Isolde, como sempre, parece viver em um mundo à parte, um lugar de vestidos maravilhosos e cortesias refinadas que estão muito distantes da minha realidade atual.
Seu olhar percorre o ambiente modesto, como se tentasse absorver cada detalhe. Não preciso de palavras para saber que ela está avaliando o cenário, talvez imaginando como pode trazer um pouco de beleza ao meu mundo sombrio.
Com um gesto gracioso, Isolde se dirige ao canto do quarto onde um espelho de corpo inteiro está encostado na parede. Ela examina sua própria imagem com um olhar satisfeito, ajeitando delicadamente o coque perfeito e alisando o vestido como se fosse uma obra de arte a ser admirada.
- Teve uma boa noite? - ela pergunta com olhos curiosos.
Conheci Isolde pouco tempo após começar a trabalhar na mansão de sua família. No primeiro encontro, eu realmente a odiei; para mim, ela era só mais uma filha mimada de um casal nobre. Oh! Como eu estava enganada!
A garota grudou em mim desde o primeiro dia e não descansou até eu aceitar sua amizade. Eu não me arrependo de ter feito isso, ela era maravilhosa, divertida e gentil, nunca se importou com o fato de eu ser apenas uma faxineira. E quando eu inevitavelmente lhe contei meu segundo emprego, ela também aceitou... não que gostasse, longe disso.
- Consegui roubar uns documentos - falo apontando para minha bolsa jogada em um canto - Cheguei cansada, então não dei uma olhada ainda.
Sua expressão se ilumina e um sorriso travesso surge. Isolde pode não aprovar minha carreira criminosa, mas gosta de viver as aventuras através de mim.
- Podemos? - pergunta, suas mãos inquietas com ansiedade.
- Sim, - concordo - Só irei me encontrar com o Raposo à noite.
Sentadas na beira da cama, a madeira rangendo sob o peso de nossos pensamentos compartilhados, minha amiga puxa a bolsa com um entusiasmo infantil, curiosa para explorar o fruto da noite anterior. A luz escassa do quarto destaca as moedas reluzentes em suas mãos.
- Roubando, Ellara? - Isolde indaga, lançando um sorriso maroto que reflete a intensidade da luz nos seus olhos.
Dou de ombros, mantendo minha postura, como se fosse apenas mais uma façanha rotineira.
Com gestos cuidadosos, abrimos os documentos sobre a cama simples. Meus olhos se arregalam conforme absorvo o que leio.
A tinta das palavras revela um esquema cruel e impiedoso, como se os segredos estivessem escritos em lágrimas diluídas. Lorde Alden, figura de prestígio na superfície, está mergulhado em atividades obscuras nos bastidores. O choque paira no ar enquanto Isolde e eu desvendamos a verdade sombria, e a penumbra do quarto realça o peso da descoberta.
- Essas pessoas... vendidas como escravos para outros reinos - Isolde murmura, seus olhos se alargando com incredulidade, sombras dançando em seu rosto.
A fúria cresce dentro de mim, uma chama alimentada pela injustiça e crueldade que permeiam os atos do Lorde. Eu sei que ele não vale nada, mas isso com certeza vai além de tudo que imaginei.
- Esse monstro deve pagar! - grito, a raiva ecoando em minha voz. Isolde, normalmente alegre, compartilha meu repúdio, e o quarto parece encolher em resposta.
Pego o documento com a lista das transações, meus olhos passando pela folha até parar em um nome conhecido. A meia-sombra do quarto destaca minha expressão, endurecida pela descoberta.
Um rugido ecoa em meus ouvidos, a raiva crescente ameaçando me consumir. Aperto o papel com tanta força que estou amassando as bordas.
Vinte e uma pessoas vendidas e enviadas a sua nova dona: Seraphina Briar, rainha de Prian.
Aquela desgraçada não deveria carregar o sobrenome da minha família e manchá-lo de tal forma. Meus pais jamais comprariam pessoas como se fossem posses. Prian era um reino próspero e acolhedor sob seu reinado, mas agora...
A dor se mistura à raiva, formando uma tempestade em meu peito. Sinto falta do meu lar, do meu povo, dos meus pais. Quero recuperar o que é meu por direito, mas não sei como. Sinto-me impotente e frustrada, e as sombras do quarto parecem engolir minhas esperanças.
Isolde percebe minha angústia e coloca uma mão reconfortante em meu ombro. Ela não sabe quem um dia já fui, apenas Thorne conhece esse segredo, mas minha amiga tenta me acalmar, mesmo sem saber a direção que minha raiva tomou.
- Ellara... - ela começa com uma voz suave, um contraste com a agitação que me consome.
A interrompo com um gesto brusco, me levantando da cama. Ando pelo quarto tentando respirar, me acalmar, enterrar bem fundo todos esses sentimentos. Eles são inúteis, não servem para nada. Porque a verdade cruel é que não posso agir, não agora, talvez nunca.
Não contra Seraphina, não para recuperar meu reino. Eu não sou nada, não sou ninguém, uma princesa perdida sem riquezas, sem exército, sem nada.
Isolde me segue, a preocupação estampada em seu rosto gentil. Frustração e impotência se misturam em mim.
- Ele vai pagar. - Ela garante, alheia ao que realmente me consome naquele momento. - Raposo pode ser um criminoso, mas Alden está em seu caminho e ele vai derrubá-lo.
Isolde passa para mim outro documento, que eu não tinha visto. Ela aguarda paciente enquanto leio, até juntar as peças.
- Ele... - eu não tenho palavras, conforme assimilo o que realmente aquele desgraçado faz.
Centenas de nomes estão cravados naquele papel, famílias que afundaram em dívidas em sua casa de apostas, famílias que não puderam pagar o aluguel, famílias que foram acusadas de algum crime... todas elas pagaram com a própria liberdade, ou entregando seus filhos. O quarto parece escurecer diante da crueldade estampada no papel.
Pior, muito pior do que eu havia imaginado. Eu sabia que Alden tinha uma rede para comandar tudo pela cidade. As casas dos bairros pobres lhe pertenciam, assim como a maioria dos negócios. Para quem não é nobre, onde vive, trabalha e compra, tudo é dele, depende dele.
O Lorde de Terfel tem uma única obrigação: gerenciar sua cidade. Os Reis comandam cada reino, mas ali, nas cidades, os Lordes quem deveriam cuidar de tudo, deixando para os monarcas se concentrarem em questões mais amplas.
A necessidade de um respiro se impõe, a busca por ar fresco torna-se imperativa. A escolha da vestimenta é casual, a calça que se ajusta ao corpo e uma túnica azul-marinho, como se tivesse extraído essas peças do manto noturno. Minhas mãos agarram a bolsa, enquanto a capa envolve meus ombros, oferecendo uma camada de proteção contra os ventos frios de Hiveria.
A porta range ao abrir, como se protestasse contra a urgência do momento. Passo pelo limiar com uma pressa determinada, cada passo ressoa no corredor, uma percussão apressada ecoando nas paredes descascadas.
- Ellara, espere! - Isolde chama com preocupação evidente em sua voz.
- Vou me encontrar com o Raposo, está tudo bem. Depois nos encontramos. - Ofereço-lhe um abraço breve.
O exterior me recebe com um frio intenso, a atmosfera carregada de promessas. Caminho apressada, meus pés batem no solo em uma cadência decidida.
Ao alcançar a esquina, o grito de Isolde me alcança. "Cuidado e boa sorte!" Bom, eu sempre tenho cuidado, já sorte...