Minhas botas afundavam na terra úmida, e o cheiro de musgo e pinho invadia minhas narinas. Eu sempre me refugiava na solidão da floresta durante as luas cheias. Aqui, longe de olhares humanos, era mais fácil manter o controle. Ou pelo menos era isso que eu costumava pensar.
Mas naquela noite... algo estava errado. Não era o vento, nem os uivos. Era outra coisa. Algo que mexia com cada fibra do meu corpo, algo que fazia o ar parecer mais denso, quase elétrico. E então eu senti. O cheiro. Doce, amadeirado, com um toque de algo indefinível, mas irresistível. Meu peito apertou, meus sentidos ficaram alerta como se eu fosse um predador prestes a encontrar sua presa.
Minha fera interior silenciou por um instante, surpresa. Mas logo veio o rugido, um grito interno tão possessivo que quase me fez tropeçar. Meus olhos brilharam, a luz dourada refletindo nas sombras da noite. O rastro daquele aroma não era apenas um convite. Era um chamado.
E eu sabia, mesmo antes de encontrar a origem, que minha vida mudaria para sempre.
A poucos metros de distância, lá estava ela. Uma mulher, sentada perto do riacho, como se a natureza inteira tivesse escolhido aquele momento para moldá-la. Seus cabelos escuros caíam soltos, dançando com a brisa leve. Os pés estavam submersos na água, traçando pequenos movimentos que geravam ondas suaves, como se até o riacho não quisesse perturbar sua paz. Mas não era paz que ela emanava. Não, havia algo quebrado ali, uma melancolia que parecia carregar o peso de mil segredos.
Meu instinto dizia para manter a distância. Mas minha fera... Ela sussurrava o contrário. Era como se ela tivesse encontrado algo que procurava há muito tempo, algo que nem eu sabia que estava perdido.
Dei um passo à frente, os galhos sob meus pés denunciando minha presença. Ela virou a cabeça lentamente, e aqueles olhos... Deus, aqueles olhos. Um azul tão profundo que parecia carregar uma tempestade. Eles me prenderam antes mesmo que eu pudesse dizer algo.
- Você costuma perseguir mulheres na floresta, ou hoje é um dia especial? - Sua voz era firme, com um toque de sarcasmo que desarmaria qualquer um. Qualquer um, menos eu.
Sorri de canto, cruzando os braços. - Não é todo dia que encontro alguém como você.
Ela riu, mas não com suavidade. Era uma risada carregada de algo que eu não conseguia decifrar. Desafio, talvez? Curiosidade? Não importava. Minha fera estava intrigada. E isso era raro.
- Alguém como eu? - Ela arqueou uma sobrancelha, desafiando-me com o olhar.
Não respondi. Porque a verdade era que eu não sabia o que ela era. Humana, sim, mas algo nela... algo gritava que havia mais. Minha fera, que sempre sabia discernir entre presa e predador, estava confusa. Fascinada.
- Quem é você? - Minha voz saiu mais grave do que eu esperava.
Ela se levantou, deixando a água escorrer por seus pés descalços. A luz da lua caía sobre ela, delineando cada curva como se fosse feita para ser admirada.
- Ayla. - Simples, direta. Mas o nome ficou gravado em mim como uma marca. - E você?
- Rick.
Ela me estudou por um momento, como se quisesse decifrar algo que só ela conseguia enxergar. Então, sorriu. Um sorriso carregado de ironia e... algo mais.
- Bem, Rick, você não parece o tipo que passeia por aí admirando a natureza. O que você realmente quer?
Eu não sabia como responder. Não ainda. Mas, olhando para Ayla, sob a luz da lua cheia, uma coisa ficou clara: o mundo acabava de mudar. E eu sabia que não haveria mais volta.
Eu não sabia o que responder. As palavras dela - simples, diretas - mexeram com algo que eu mantinha enterrado há anos.
O que eu queria?
A resposta estava presa na garganta, sufocada por anos de negação e pelo peso de uma vida que nunca foi realmente minha. Por muito tempo, acreditei que queria liberdade. Mas agora, sob o olhar dela, eu não tinha tanta certeza.
- Talvez eu esteja apenas curioso - disse, tentando manter a voz firme.
- Curioso sobre o quê? - Ela inclinou a cabeça, o brilho nos olhos desafiando cada instinto que eu tinha.
- Você. - A palavra saiu antes que eu pudesse pensar. Direta. Honesta. Perigosa.
Ayla me encarou em silêncio, o sorriso nos lábios revelando algo que eu não conseguia decifrar. Ela não tinha medo. Isso me intrigava e me desconcertava ao mesmo tempo. Humanos sempre sentiam algo: medo, nervosismo, até mesmo reverência. Mas ela não. Ayla era diferente.
- Esse lugar não é seguro para você - murmurei, quebrando o silêncio. Minha voz saiu mais grave do que eu pretendia.
Ela ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços. - E o que faz você pensar que não estou segura?
- Porque você é humana. - Minha resposta foi automática, quase mecânica. Mas, naquele instante, algo na expressão dela mudou.
- E o que faz você pensar que sou só humana? - Ayla perguntou, o tom calmo, mas com um peso que me atingiu como um soco.
Eu hesitei. Algo nela gritava que havia mais do que eu podia ver ou entender. Antes que eu pudesse responder, o som de folhas se movendo interrompeu o momento. Um rosnado baixo e ameaçador ecoou pela clareira. Meu corpo inteiro reagiu antes mesmo que minha mente processasse o que estava acontecendo.
Me movi instintivamente, posicionando-me entre Ayla e a ameaça invisível. - Fique atrás de mim - ordenei, sem desviar o olhar da escuridão à frente.
Ela não disse nada, mas eu podia sentir que ela não estava assustada. Quando a criatura finalmente emergiu das sombras, meu coração acelerou. Era um lúpus sombrio. Grande, poderoso, com olhos vermelhos brilhando como brasas. Minha fera despertou de imediato, rugindo dentro de mim, pronta para lutar.
A transformação foi rápida. Meus ossos queimaram, a pele rasgou, e em segundos, eu não era mais um homem. Era um lobo, maior que o normal, com pelos acinzentados e olhos dourados reluzentes. O lúpus avançou, mas eu estava preparado. Nos chocamos com força, e o som de garras e dentes cortando o ar encheu a clareira.
A luta foi intensa, mas eu era mais rápido. Mais forte. Minha mandíbula se fechou no pescoço do lúpus, e ele caiu, seu último rosnado ecoando antes de tudo ficar em silêncio.
Eu me virei para Ayla, ainda em forma de lobo, esperando vê-la fugindo ou paralisada de medo. Mas ela estava lá, imóvel, olhando para mim com uma mistura de curiosidade e... admiração.
Quando voltei à forma humana, ela deu um passo à frente, como se o que acabara de acontecer fosse algo banal.
- Impressionante - disse ela, com aquele sorriso desafiador. - Mas, se tivesse me dado um minuto, eu podia ter ajudado.
Franzi o cenho, tentando entender. - Ajudado? - perguntei, incrédulo. - Aquela coisa quase arrancou sua cabeça.
Ela deu de ombros, erguendo a mão. Um brilho estranho iluminou sua palma, revelando um símbolo que parecia vibrar com energia. O vento ao nosso redor mudou, carregado com algo que eu não conseguia explicar.
- Eu não sou tão indefesa quanto você pensa, Rick.
Eu fiquei imóvel, encarando-a. De repente, tudo fez sentido. O cheiro que me atraiu até ela, a falta de medo, a pergunta sobre sua humanidade. Ayla não era apenas diferente. Ela era algo que eu nunca havia encontrado antes.
Ayla e Rick têm uma relação de desconfiança mútua, mas também um reconhecimento instintivo de que suas histórias estão conectadas. Ayla é misteriosa, mas mantém uma postura provocativa, o que deixa Rick em dúvida se ela é uma aliada ou uma ameaça. Esse jogo de poder cria uma tensão crescente entre eles, misturando atração e desconfiança.