Era irritante. Como confiar em alguém quando o mundo inteiro parece ter se virado contra você? Ainda assim, algo me dizia que Ayla estava ligada ao meu destino, de um jeito que eu não podia evitar.
O vento mudou, e foi aí que senti.
Aquele cheiro... metálico, acre, inconfundível. Sangue.
Levantei-me de um salto, todos os meus sentidos em alerta. Não era um cheiro qualquer; era fresco, próximo, e vinha acompanhado de algo mais sombrio. Eu sabia o que significava. Algo estava lá fora. Algo caçando.
- Algo está vindo - murmurei para mim mesmo, mas Ayla, como se sentisse o mesmo instinto que eu, abriu os olhos num piscar. Eles encontraram os meus em um instante.
- O que foi? - ela perguntou, a voz ainda rouca de sono.
- Fique aqui. - Já estava indo em direção à saída da caverna quando ouvi os passos dela me seguindo. Claro que ela não ficaria parada. Por que ficaria? Ayla não sabia o que era obedecer.
- Você está brincando, certo? - Ela estava atrás de mim, pronta para discutir. - Eu não vou ficar sentada enquanto você enfrenta seja lá o que for sozinho.
Parei, girando sobre os calcanhares para encará-la. - Ayla, isso não é um jogo. Seja lá o que está lá fora, está caçando.
- E eu também. - A resposta dela veio tão rápida quanto uma lâmina. Ela cruzou os braços e me olhou como se estivesse desafiando tudo o que eu achava que sabia sobre ela. - Não acha que já está na hora de parar de me subestimar?
Meu sangue ferveu. Um rosnado baixo escapou da minha garganta antes que eu pudesse controlar. Meus olhos se estreitaram, dourados, refletindo a luz do fogo. Eu queria gritar com ela, fazer com que entendesse o perigo, mas algo me segurou. Talvez fosse aquele maldito brilho de determinação nos olhos dela.
- Só não se coloque no meu caminho - foi tudo o que consegui dizer antes de sair.
Ela me seguiu, é claro. Porque Ayla nunca sabia a hora de recuar.
A noite estava viva, mas não de uma forma acolhedora. Saímos da caverna juntos, eu à frente, Ayla logo atrás, e a floresta parecia diferente. Escura, densa, quase sufocante. A lua cheia estava alta, mas sua luz mal conseguia atravessar as sombras que pareciam se mover por vontade própria. Eu estava atento, cada som, cada movimento, tudo era uma ameaça em potencial. Ayla, no entanto, parecia despreocupada - ou pelo menos fingia estar.
- Então, o que estamos enfrentando? - Ela quebrou o silêncio, tentando, talvez, aliviar a tensão.
- Ainda não sei. - Minha voz saiu baixa, tensa. - Mas posso te garantir uma coisa: seja lá o que for, não é humano.
O cheiro de sangue ficou mais forte. Meus instintos rugiam, avisando que algo estava errado, muito errado. E então, chegamos à clareira.
Nunca vi nada assim.
No centro da abertura, havia corpos dispostos em um padrão deliberado, perturbador. Um círculo macabro, com símbolos que pareciam antigos, riscados no chão com precisão. Senti meu estômago revirar, não pelo sangue - isso eu conhecia bem -, mas pela intenção por trás daquilo. Algo ou alguém havia feito isso com propósito.
- Isso não é normal. - Ayla sussurrou, e eu percebi que ela estava olhando para a cena com a mesma mistura de horror e fascínio que eu sentia. Mas o que mais chamou minha atenção foi o símbolo em sua mão, brilhando com mais intensidade, quase como se estivesse respondendo.
Me ajoelhei perto de um dos corpos, analisando as marcas no chão. Reconheci os símbolos. Não porque já tivesse visto algo assim antes, mas porque os anciões falavam disso, em histórias que eu sempre achei que fossem apenas isso - histórias.
- É uma invocação. - Minha voz saiu mais grave, enquanto me levantava e olhava para Ayla. - Alguém está tentando trazer algo para este mundo.
Ela não disse nada por um momento, mas pude ver que estava tremendo. Não de medo, exatamente. Era mais profundo do que isso, como se algo dentro dela estivesse se movendo, despertando.
- E se já estiver aqui? - A pergunta dela bateu como um soco.
Antes que eu pudesse responder, o som veio. Um ruído cortante, algo se movendo rápido entre as árvores. Não era humano. Isso eu sabia. Era mais rápido, mais silencioso, e trazia consigo uma sensação de frio que parecia cortar até os ossos.
Me virei para Ayla, empurrando-a para trás instintivamente, enquanto minhas garras e presas surgiam sem que eu precisasse pensar.
- Fique atrás de mim. - Minha voz era um rosnado.
- Já ouvi isso antes. - Ela rebateu, teimosa como sempre, mas dessa vez fez algo que eu não esperava. Ela ergueu a mão, e o símbolo brilhou tão forte que iluminou toda a clareira.
Foi quando eu vi.
A criatura saiu das sombras, grotesca, com olhos vermelhos que pareciam consumir tudo ao seu redor. Era feita de pura escuridão, uma massa de sombras que mudava de forma a cada segundo. Avancei antes que pudesse hesitar, minhas garras cortando o ar enquanto eu tentava derrubá-la. Mas cada golpe era inútil. A coisa simplesmente se recompunha, como se não pudesse ser ferida.
- Rick! - Ayla gritou, e eu pude ouvir o pânico na voz dela. - Você não pode enfrentá-la assim!
- Então me diga o que fazer! - Retruquei, lutando para manter a criatura afastada.
Ela não respondeu imediatamente. Olhei de relance e vi que estava com os olhos fechados, murmurando algo em uma língua que eu não conhecia. Era estranho, mas poderoso. A luz em sua mão começou a pulsar, crescendo, até que toda a floresta parecia reagir a ela.
A terra tremeu.
A criatura hesitou, e eu aproveitei, agarrando o que parecia ser sua forma principal e a segurando com toda a força que eu tinha. - Ayla, seja o que for que você está fazendo, termine logo!
O símbolo na mão dela brilhou com uma intensidade que quase me cegou, iluminando cada canto da clareira. A coisa - aquela criatura feita de sombras e terror puro - congelou no lugar. Pela primeira vez, parecia hesitar. Parecia sentir medo.
Eu queria gritar para ela correr, mas Ayla não parecia compartilhar do meu desespero. Ela abriu os olhos, agora brilhando com a mesma luz do símbolo. O olhar dela me prendeu no lugar, quase me fazendo esquecer do perigo. Então ela ergueu a mão.
- Volte para onde você veio! - Sua voz cortou o ar como uma lâmina, carregada de uma força que eu nunca tinha ouvido antes.
A luz explodiu. Não era só um brilho. Era como se o mundo inteiro estivesse desabando sobre nós. Eu caí de joelhos, a dor em meu corpo me forçando a mudar de volta para a minha forma humana. Enquanto lutava para respirar, ouvi o grito da criatura, um som agudo e horrendo, antes que ela desaparecesse. As sombras que a formavam se dissiparam no vento, como fumaça.
Eu levantei o olhar e vi Ayla. Ela estava sentada no chão, parecendo exausta, o símbolo agora apagado. Mesmo assim, havia algo nela - algo no jeito que ela segurava a si mesma, como se estivesse acostumada a carregar o peso de tudo.
- O que foi isso? - Minha voz saiu rouca, quase um sussurro. Eu sabia que a pergunta era idiota. O que eu realmente queria saber era: o que ela era?
Ela olhou para mim por um instante, como se estivesse decidindo se valia a pena responder. Então suspirou, deixando o corpo cair contra o tronco de uma árvore.
- Isso foi só o começo.
O começo de quê? Eu não sabia. Só sabia que ela estava certa. O cheiro de sangue ainda impregnava o ar, misturado ao silêncio que seguia uma batalha. Olhei para a clareira destruída e senti, pela primeira vez, o peso real do que tínhamos pela frente.
Ayla me encarou de volta, e havia algo nos olhos dela que eu não conseguia decifrar. Força, talvez. Resiliência. E algo mais profundo, mais perigoso. Eu nunca confiei em ninguém, mas Ayla... Ayla era diferente. Eu podia sentir isso.
E, por mais que não quisesse admitir, talvez ela fosse a única coisa que nos manteria vivos.
Voltamos para a caverna em silêncio. O som de nossos passos parecia ecoar em meus ouvidos, mas minha mente estava longe, presa nas imagens da batalha que acabáramos de enfrentar. A criatura desaparecera, mas a sensação de que aquilo era só o começo ainda pesava em meu peito. E, pelo jeito como Ayla me olhava de soslaio, ela também sentia isso.
Ela finalmente quebrou o silêncio, sentando-se numa rocha próxima à entrada.
- Você está pensando no que vem a seguir, não está?
Olhei para ela, meus olhos ainda ardendo com a energia que a transformação sempre deixava para trás.
- Sempre.
Ela inclinou a cabeça, me observando como se tentasse decifrar algo. Havia uma força em seu olhar, mas também uma dúvida, talvez até medo. Ou seria curiosidade? Era difícil dizer.
- O que foi aquela coisa? - Ela perguntou, mas eu sabia que havia mais na pergunta do que ela deixava transparecer.
Cruzei os braços, encostando-me à parede áspera da caverna.
- Uma criatura das sombras. Rara, mas mortal. Não deveria estar aqui.
- Mas estava. - Ela olhou para a própria mão, onde o símbolo brilhante agora era apenas uma marca apagada, quase um fantasma na pele. - E parecia... conectada a isso.
Franzi o cenho.
- Você sabe mais do que está me contando.
- Talvez. - O tom dela era desafiador, mas havia algo vulnerável em seus olhos quando ergueu o olhar para mim. - E você também.
Bufei, impaciente.
- Não estamos jogando, Ayla. Se você sabe algo, preciso saber também.
Ela desviou o olhar para o fogo que eu havia acendido no centro da caverna. As chamas lançavam sombras nas paredes, dançando como se zombassem de nós. Quando ela finalmente falou, sua voz era mais baixa, quase hesitante.
- Esse símbolo sempre esteve comigo. Desde que me lembro. Eu nunca soube o que era ou por que o tenho, mas sei que é importante. E hoje, pela primeira vez, senti como se ele estivesse vivo.
Eu a observei, tentando entender o que ela não estava dizendo. Não havia mentira em suas palavras, mas a verdade parecia maior do que ela podia compreender - ou admitir.
- Ele está ligado à magia - falei, por fim.
- Magia? - Ela soltou uma risada seca, sem humor. - Eu não sou nenhuma feiticeira, Rick.
- Talvez não. Mas você não é completamente humana, Ayla.
Ela me olhou, surpresa. Seus olhos estavam arregalados, a confusão estampada em cada traço de seu rosto.
- O que quer dizer com isso?
Dei um passo à frente, mantendo meu olhar fixo no dela.
- Seu cheiro, sua presença... tudo em você é diferente. Eu sabia disso desde o momento em que te vi. Você não é como os outros humanos.
Ela balançou a cabeça lentamente, como se tentasse negar o que eu estava dizendo - ou talvez tentasse negar a si mesma.
- Eu não sei o que sou, Rick. Passei minha vida tentando entender, mas tudo o que sei é que esse símbolo está ligado a algo antigo. Algo poderoso.
Assenti, minha voz baixa, quase um sussurro.
- E perigoso.
Ela ficou em silêncio, mas seu olhar confirmou que ela sabia disso tão bem quanto eu.
Eu me encostei novamente à parede, tentando ignorar o peso que pairava sobre nós. A sensação de que não estávamos sozinhos, de que o que quer que fosse aquilo - o símbolo, a criatura, o destino de Ayla - não estava terminado.
E, no fundo, eu sabia que as respostas dela poderiam ser tão perigosas quanto as perguntas que estávamos evitando.
Respirei fundo, tentando juntar as peças soltas em minha cabeça. Eu nunca fui fã de incertezas, e Ayla era a personificação de tudo o que eu não conseguia controlar. Ela era um enigma ambulante, uma força que parecia tanto perigosa quanto... fascinante. E ainda assim, algo dentro de mim dizia que eu precisava protegê-la, mesmo sabendo que ela era mais do que capaz de se defender sozinha.
- Você disse que estava me procurando. - Minhas palavras saíram baixas, mas firmes. - Por quê?
Ela me encarou com aqueles olhos azuis, brilhantes e cheios de uma intensidade que eu não sabia decifrar.
- Porque, de alguma forma, eu sabia que você poderia me ajudar. Que nós dois estamos conectados.
Conectados. A palavra carregava mais peso do que eu estava pronto para lidar. Eu sempre vivi pelo instinto, e meu instinto dizia que ela estava certa. Mas isso não significava que eu gostava da ideia. Estar preso a um destino que eu não escolhi? Não era do meu feitio.
- Conexões não significam confiança, Ayla. - Minha voz saiu mais fria do que eu pretendia, mas era a verdade.
Ela inclinou a cabeça e sorriu levemente.
- Não. Mas são um começo.
Ficamos em silêncio, o som do fogo estalando entre nós, preenchendo o vazio que nossas palavras não alcançavam. Havia algo nela, algo que não me deixava desviar o olhar por muito tempo. Eu sabia que precisava entender mais sobre Ayla e o que estava acontecendo. Mas o que mais me incomodava era a curiosidade crescente dentro de mim. Curiosidade sobre ela. Sobre nós.
E isso me deixava desconfortável.
- Descansamos por enquanto. - Minha voz voltou ao tom prático, tentando retomar o controle da situação. - Amanhã, começamos a descobrir o que está atrás de você... e de nós.
Ela assentiu, mas havia algo nos olhos dela, um brilho, que dizia que ela sabia mais do que estava disposta a compartilhar.
Virei-me em direção ao fundo da caverna, pronto para me afastar daquele olhar que parecia me despir de todas as minhas barreiras. Mas antes de dar o primeiro passo, parei.
- Ayla.
- Sim?
Olhei por cima do ombro, tentando manter minha voz firme.
- Não me faça me arrepender de confiar em você.
Ela sorriu, um sorriso de lado que era tanto provocador quanto tranquilizador.
- Isso vai depender de você.
Eu não respondi, apenas me afastei. Mas enquanto me afastava, algo dentro de mim mudou. Pela primeira vez em muito tempo, eu não estava apenas lutando para sobreviver. Eu estava lutando para entender.
E Ayla, quer eu gostasse ou não, agora fazia parte desse mundo. Meu mundo. E eu sabia que, seja lá o que estivesse vindo, isso era apenas o começo.