Ela estava sentada perto da entrada da caverna, os olhos fixos no horizonte, como se estivesse procurando algo que apenas ela podia ver. Sob a luz do dia, ela parecia diferente. Ainda carregava aquele ar enigmático, mas havia algo novo - um cansaço profundo que ela escondia bem à noite. Algo que, de alguma forma, fazia sentido agora.
Por um momento, hesitei. Ayla era um enigma. Cada movimento dela era calculado, cada palavra carregava um peso que eu não podia decifrar. Ela guardava segredos. Segredos que podiam tanto me salvar quanto me condenar. E o pior de tudo era que eu não sabia de que lado ela estava.
- Você sempre acorda tão cedo? - perguntei, minha voz rouca quebrando o silêncio.
Ela virou o rosto na minha direção, um sorriso suave brincando em seus lábios, mas seus olhos carregavam algo mais sombrio.
- Difícil dormir quando você sabe que algo ou alguém pode estar te caçando - respondeu ela.
Um arrepio subiu pela minha espinha. A forma casual como ela disse aquilo era desconcertante.
- Então você sentiu? - perguntei.
- Sim. - Ela apontou para a floresta com um movimento de cabeça. - Algo está se movendo lá fora.
Minha mente entrou em alerta. Levantei-me, indo até ela, cada sentido meu afiado. O cheiro de terra molhada e folhas preenchia o ar, mas havia algo além disso. Algo que eu não conseguia identificar, mas que fazia meus instintos gritarem.
- É diferente de ontem à noite - continuou ela, levantando-se devagar. - Não é como aquela criatura. É mais... fraco, mas constante. Como se estivesse nos observando.
Eu cerrei os dentes, sentindo a irritação tomar conta. Havia algo sobre esse jogo de ser caçado que estava me desgastando. Não era medo. Era a impaciência de não saber.
- Seja lá quem ou o que for, não vai durar muito se resolver aparecer - resmunguei.
Ela riu baixinho, mas seus olhos continuaram sérios.
- Gosto da sua confiança, Rick. Mas talvez devêssemos descobrir o que é antes de atacarmos.
Por um instante, pensei em contrariá-la. Meu impulso sempre foi resolver as coisas rápido, sem rodeios. Mas, por mais que eu odiasse admitir, Ayla tinha razão. Não dava para lutar contra algo que eu nem entendia.
- Tudo bem. Vamos caçar. - Apontei para a floresta, sinalizando para que ela me seguisse.
Caminhar ao lado de Ayla era como dividir espaço com uma fera selvagem. Ela era silenciosa, precisa, como se fosse parte da floresta. Cada movimento dela parecia natural, enquanto eu me forçava a ignorar o som das folhas sob minhas botas.
O silêncio só foi quebrado quando ela perguntou:
- Você sempre foi assim?
- Assim como? - perguntei, sem olhar para ela.
- Intenso. Sempre no controle.
Eu ri, mas foi um riso seco, vazio.
- Controle é uma ilusão, Ayla. Eu faço o que é necessário. Só isso.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, mas eu senti que ela ainda estava me observando. Então, com uma suavidade que quase me desarmou, ela perguntou:
- E o que você quer?
Essa pergunta me atingiu como um golpe. O que eu queria? Fazia tanto tempo que eu deixara de pensar nisso que a ideia parecia quase estranha. Não era sobre o que eu queria. Nunca foi. Era sobre o que precisava ser feito.
- O que eu quero não importa - respondi, desviando o olhar. - Nunca importou.
Ayla não aceitou minha resposta como a maioria das pessoas faria. Em vez disso, deu um passo à frente, me obrigando a encará-la. Havia algo nos olhos dela, algo que parecia ver além das minhas palavras.
- Acho que importa, sim - disse ela. - Você pode fingir que está aqui apenas para sobreviver, mas ninguém luta tão ferozmente assim sem ter algo a proteger.
Ela estava errada. Ou pelo menos, era isso que eu queria acreditar. Não havia nada para proteger. Não mais. Meu passado era uma ferida cicatrizada, algo que eu havia enterrado junto com qualquer esperança de querer algo além de sobreviver.
Mas Ayla... Ayla era diferente. Ela não apenas sobrevivia. Ela procurava algo. Talvez fosse isso que me inquietava nela. Ela ainda acreditava que havia algo a ser encontrado.
- Vamos acabar com isso - disse finalmente, mudando de assunto.
A caminhada continuou, mas o silêncio entre nós agora estava carregado. Cada passo que eu dava parecia ecoar com as perguntas que Ayla plantara na minha mente. E o pior de tudo era que eu não sabia se queria as respostas.
A floresta explodiu em movimento, o som das criaturas avançando como uma tempestade rugindo em direção a nós. Eu já estava em minha forma lupina antes mesmo de perceber. Cada músculo do meu corpo estava pronto para o combate, os instintos ancestrais queimando em meu sangue.
Quando a menina saiu das sombras, eu fiquei paralisado por um instante. Ela parecia tão frágil, tão pequena, com os olhos enormes e assustados. Seus pés descalços estavam cobertos de terra, e o vestido que ela usava estava rasgado, como se tivesse corrido por dias sem descanso. Era impossível não notar o medo estampado em seu rosto, mas havia algo mais. Algo que me deixou inquieto.
Ayla estava atrás de mim, o símbolo em sua mão brilhando como um farol. A criança, ainda tremendo, agarrava-se à perna dela, mas não era medo o que eu via nos olhos da pequena. Era algo mais profundo - pavor misturado com conhecimento, como se ela entendesse o que estava prestes a acontecer.
As criaturas eram rápidas, suas formas negras se fundindo com as sombras da floresta enquanto se aproximavam. Eu avancei antes que elas pudessem nos cercar, minhas garras rasgando a primeira que chegou perto. O cheiro da substância negra que compunha seus corpos era horrível, ácido, queimando minhas narinas.
- Elas não param de vir! - gritei por cima do ombro, desviando de um ataque e derrubando outra criatura.
- Só mais alguns segundos! - Ayla respondeu, sua voz carregada de urgência. O brilho em sua mão aumentava, iluminando a clareira ao nosso redor.
As criaturas hesitaram por um instante, como se sentissem o poder emanando dela, mas isso só as deixou mais frenéticas. Elas começaram a atacar em ondas, tentando me sobrecarregar. Cada golpe meu deixava rastros no chão, mas por cada uma que eu derrubava, duas pareciam tomar o lugar.
Eu podia sentir o cansaço começando a pesar, mas a determinação de proteger Ayla e a criança me mantinha de pé.
- Ayla, seja lá o que você está fazendo, faça mais rápido! - rosnava, enquanto desviava de mais um ataque.
Ela não respondeu. Em vez disso, ergueu a mão para o céu, e o símbolo brilhou com tanta intensidade que quase cegou a todos nós. A luz explodiu em ondas, empurrando as criaturas para trás, como se algo invisível estivesse as afastando. Elas gritaram, um som horrível que parecia vir de outro mundo, antes de recuarem para as sombras da floresta.
Quando o silêncio caiu novamente, o brilho no símbolo diminuiu, e Ayla caiu de joelhos, ofegando. Eu voltei à forma humana, sentindo a exaustão me dominar, mas ainda atento a qualquer som.
- O que foi isso? - perguntei, meu tom mais duro do que pretendia. - O que você fez?
Ela olhou para mim, o rosto pálido e os olhos cansados, mas firmes.
- Proteção temporária. Não vai durar muito. Elas voltarão... e em maior número.
- Então precisamos sair daqui. Agora. - Eu olhei para a criança, que permanecia imóvel ao lado dela. - Quem é ela? O que ela quis dizer com eles estão vindo?
Ayla passou a mão pelo rosto, claramente tentando juntar seus pensamentos.
- Não sei quem ela é, mas acho que ela sabe algo sobre essas criaturas. Sobre por que estão nos seguindo.
A menina olhou para nós, os olhos arregalados e cheios de lágrimas. Sua voz era um sussurro, mas carregava o peso do medo.
- Eles querem o símbolo. E não vão parar até conseguirem.
Olhei para Ayla, meu estômago revirando. Claro que queriam. Sempre havia algo maior, algo mais perigoso. A questão agora era: quantas vezes mais eu precisaria lutar para proteger um segredo que nem sequer era meu?
- Isso está ficando pior. - disse ele, olhando para o vazio onde as criaturas haviam desaparecido.
Ayla assentiu, os olhos ainda fixos na menina.
- E estamos ficando sem tempo.