Capítulo 3 III

Já deviam fazer 2 dias que eu estava aqui, dessa vez, nem água eu estava bebendo mais, nem da chuva, ou de alguma poça do chão, nada parecido. Se eu continuasse assim, meu corpo não iria aguentar, e essa era a minha inteção. Minha garganta estava tão seca, que só de respirar doía. Eu estava tão faminta que não sabia mais o que poderia doer mais do que a dor de sentir fome, além, é claro, da dor que habitava em meu coração.

Era uma luta constante, contra Ele e os meus instintos de sobrevivência para não correr atrás de algo para comer ou beber, mas nada iria superar a minha vontade de desaperecer, nada disso seria maior.

Como se não bastasse tudo que eu fiz, a marca precisava me lembrar e provar para todos do que eu era, do que eu me tornei, uma receptáculo sem conexão. Para todos os receptáculos que não conseguiam se conectar com a sua alma irmã, a alma do dragão, só lhe restavam a destruição, esse seria o seu rastro, e a marca mostrava quem eram eles.

Ela cobria minha mão inteira, era humilhante e difícil de esconder, a intenção de sua existência era exatamente essa, para que todos soubessem do mal que você causou. E toda vez que você perdia o controle, ela aumentava, e subia pelo seu braço, depois seu ombro, seu peito, seu rosto... até que tomasse conta de seu coração e de seu cérebro. Quando fui banida da minha vila, a marca havia aparecido e coberto minhas duas mãos... agora além delas, cobria também um dos meus braços, parando no cotovelo. Se nós não conseguirmos nos entender, estaremos fadados a existir apenas para destruição, os dois ficarão sem consciência, aprisionados em um corpo que se tornará um híbrido, metade humano e metade dragão, e jamais será completamente livre. A ideia me assustava, eu não queria isso para mim, para nós. Eu sabia de sua raiva, sabia de tudo o que ele quis e fez, a questão que ele fazia de matar, de tudo o que ele quis destruir... mas em alguns momentos em que nossos pensamentos se entrelaçavam, geralmente em alguma transformação, eu sentia, eu podia sentir sua dor. Ele a escondia de mim, ele não me permitia saber sobre ele, mas nesses momentos, onde nosso controle fugia, eu conseguia senti-la, levemente, como um sopro em meu coração... como eu poderia querer isso pra ele? Duas almas aprisionadas em um corpo sem controle, sem consciência... até que alguém destrua o seu físico. Eu posso não saber os motivos exatos, além do óbvio, ele odiava nós humanos, mas sentia sua tristeza, não havia como eu não compadecer de seu sofrimento.

Por isso o ideal era exatamente o que eu estava fazendo, me privar de alimento e água para que me corpo perecesse. Assim, quando o momento chegasse, estaria libertando nossas almas.

Na terceira noite, eu acordei com o som de alguém do lado de fora, se aproximando lentamente. Quando uma leve corrente de ar passou por mim, meu coração acelorou. O cheiro, o cheiro que veio junto dela, eu conhecia aquele cheiro, não era possível. Tentei levantar da cama para ir até ele, mas fui incapaz de conseguir me erguer, eu estava tão fraca, tão cansada, que eu não tinha mais forças, não tinha força nem pra levantar.

Fiquei olhando para a porta, escutando seus passos, sentindo seu cheiro; ele estava se aproximando. E então, ele apareceu, parando na entrada do cômodo olhou para mim

"Lana"

Ele sussurrou meu nome, e tudo que pude fazer foi me segurar para não cair em lágrimas desesperadas. Todos os sentimentos vieram de uma só vez, saudade, amor, dor, raiva, arrependimento, solidão, rancor... Eu não sabia o que sentir, o que fazer... as mémorias do que eu fiz tentaram me sufocar, mas lutei contra elas, implorei para que ficassem no fundo da minha mente. Eu não fiz nada disso, era só eu pensar assim, eu não fiz, não fiz, não foi consciente, foi tudo Ele, eu não tive culpa, menti para mim mesma. Não fiz nada, não, não fiz. Repeti isso em um mantra sem fim, até que elas sossegassem e voltassem para o fundo da minha mente.

Ele continuava tão lindo quanto da última vez que o vi. Sua pele azeitonada continuava sendo a minha cor favorita, seguida apenas pela cor dos seus olhos, que eram cor de mel. Seu cabelo negro estava todo bagunçado, como se ele tivesse passado dias ao vento, e estava um pouco maior também, chegando quase a tampar seus preciosos olhos. Eu amava tudo nele, seu rosto, seu sorriso, sua boca, seu corpo, a forma que ele sempre cuidou de mim... era o único homem em quem eu confiava, mesmo depois de tudo o que houve. Eu o amei, o amei até mesmo quando ele me deu as costas, e ainda o amava. Amava tanto que meu peito chegava a doer.

"Dhruva" tentei chamar, mas foi em vão, minha voz nem se quer foi capaz de sair.

Ele se aproximou, ficando de frente pra mim. O olhar de pena e tristeza que ele me dirigiu, só não foi pior do qual ele me deu na noite em que estraguei tudo. O olhar de dor e decepção.

"Ah, Lana, o que aconteceu com você?" Seus olhos estavam cheios d'água, as lágrimas estavam próximas de cair. Eu fiquei em choque, não sabia como reagir. Ele rapidamente virou de costas, passou a mão no rosto e respirou fundo várias vezes. Quando virou novamente para mim, seus olhos não estavam mais úmidos, mas eles estavam vermelhos. Dhruva se aproximou da cama, se ajoelhou e segurou minha mão

"Perdão por ter te deixado sozinha, Lana. Meu Deus, olha o seu estado, eu devia estar ao seu lado, me perdoa Lana, me perdoa." Seu rosto demonstrava tanta dor e remorso que fui incapaz de compreender, eu era a culpada disso tudo, queria falar pra ele, mas eu era incapaz. Então, apenas coloquei minha mão sobre a dele e apertei. Péssima escolha, percebi tarde demais. Quando pousei minha mão na dele, seu olhar recaiu sobre ela no mesmo instante, a marca, ela chamou sua atenção. Como fui idiota, e eu pensando que não tinha como eu me sentir mais humilhada. Seu olhar estava fixo e sem emoção enquanto a olhava. Sem perder mais tempo, tentei retirar a mão, eu pretendia escondê-la de baixo da manta, nós não precisávamos daquele lembrete...mas ele não permitiu, quando tentei movê-la, ele a segurou mais forte e voltou a olhar nos meus olhos.

"Eu tenho comida, eu trouxe bastante comigo. Tenho sopa também, é o ideal para você nesse momento, você precisa se alimentar." Só então ele soltou minha mão, indo pegar dentro de sua mochila uma garrafa grande. "aqui, vou dar para você". Ele colocou na tampa da garrafa a sopa e levou aos meus lábios lentamente, para que eu conseguisse engolir. Repetiu isso várias vezes até que eu estivesse satisfeita. E antes que eu pudesse perceber, tinha me permitido comer, Dhruva sempre conseguia me distrair e passar por cima de qualquer decisão que eu tomava, precisava prestar atenção.

"Pronto". Depois fechou a garrafa e a guardou de volta na mochila. "Eu vou cuidar de você, tudo vai se ajeitar, você vai ver! Eu tenho a solução.", falou carinhosamente, enquanto alisava meus cabelos. "Durma, eu não sairei do seu lado."

Ele disse que tinha a solução... não queria que ele se iludisse com essa ideia, nada jamais seria do mesmo jeito, não havia solução, ele nem se quer imaginava que a marca havia aumentando, que meu braço direito estava marcado até o cotovelo... mas eu não queria e nem tinha forças para responder. Eu apenas queria curtir aquele momento, ele estava comigo agora, queria pensar que tudo iria ficar bem, apenas por ele estar junto a mim, mesmo que isso não fosse verdade. Antes que eu pudesse perceber, eu havia adormecido enquanto ele afagava minha cabeça.

Quando acordei o sol iluminava todo o cômodo, tentei me levantar mas foi em vão, eu ainda não era capaz. Foi quando a situação de ontem voltou a minha mente... Meu deus, Dhruva estava aqui! E pensar que ele me viu dessa forma, sem roupa, apenas coberta por uma manta, esquelética e com certeza com o rosto fundo e com olheiras enormes. Bom, se fosse em outra situação, com certeza eu estaria desesperada por estar feia na frente dele, mas agora...nesse momento?! Não sei dizer o que sinto, a tristeza que tomou conta do meu peito, muitas vezes, faz-se presente a todo instante.

"Que bom, você já acordou" disse Dhruva, parando no batente da porta com um sorriso terno e tímido. "Eu achei uma roupa para você. Talvez fique um pouco larga, mas ela será apenas temporária"

Ele caminhou até mim com ela na mão e me mostrou, era um vestido de campo. "Eu sei o que você diz sobre vestidos, que são apenas para ocasiões especiais, mas, por favor! Se reencontrar esse seu amigo incrível aqui, não for uma ocasião especial, eu não sei mais o que seria!" brincou "E também..." sussurrou, se aproximando de mim "foi a única roupa que eu encontrei que serviria em você" completou, me dando o seu maior sorriso, aquele que estampava todo seu rosto, o qual ele usava logo depois de falar uma gracinha apenas para me fazer sorrir. E conseguiu, é claro, ele sempre conseguia me fazer sorrir.

Já não mais com o sorriso no rosto, ele se afastou e falou "nós precisamos conversar, é óbvio, temos muitas coisas para serem debatidas, não estou fazendo o doido" olhou para mim sério e com um ar preocupado, "mas nada disso importa nesse momento, e sim sua saúde. Primeiro vou cuidar de você, depois que você estiver forte o suficiente, conversaremos e seguiremos com o meu plano" seu olhar continuou a encarar meus olhos, apenas aguardando. Ele queria que eu respondesse, mas eu não podia, nem queria. Então como resposta, desviei os olhos e virei para o outro lado da cama, ficando de costas para ele.

"Lana" ele chamou as minhas costas, sua voz estava suave, me deu vontade de chorar.

"Eu não tenho palavras para tudo o que aconteceu, mas eu te perdoo, e peço o seu perdão por ter virado as costas para você quando você mais precisou. Todos nós sabemos das existências dos sem conexão, e o quão raros não são" riu debochado, "não devíamos termos virado as costas para você. Não estou justificando a ação deles, mas suas dores falaram mais alto, por isso não conseguiram fazer o certo, o que toda vila deve fazer quando há um sem conexão entre nós, ajudá-lo. Provavelmente nem a Xamã Curie devia ter percebido o quão forte era seu dragão antes que fosse tarde demais."

Sua menção a Xamã Curie foi como um soco no estômago. Me perdoar? Como ele poderia me perdoar, se eu mesma não havia me perdoado?!

"Você não teve culpa, Lana, você precisa de ajuda, Ele precisa de ajuda. Não negue isso a Ele e a você, não dê mais dor a vocês, dê uma chance, é para isso que estamos aqui, é para isso que nascemos almas irmãs, precisamos erradicar os pecados de nossos antepassados, e eles precisam erradicar os Deles. Eu nem sequer posso imaginar o quão grande deve ser sua dor, o que você deve ter aguentado e o que você deve ter feito para convencer a sua mente de que o certo fosse você ficar... assim" Sua voz engasgou ao terminar a frase. Escutei ele respirar fundo, acalmando a sua respiração, antes de continuar. Me abracei fortemente para me confortar. Suas palavras chegavam ao meu coração, e minhas lágrimas já escorriam silenciosas pelo meu rosto, mas como eu poderia? Como eu poderia seguir em frente?! Eu não confio em mim, não confio Nele, não quero machucar mais ninguém.

"Eu ainda sinto a perda, dói muito, não vou mentir, como tenho certeza que ainda dói em você. Mas eu percebi que perder você, para mim, era... bem maior, bem mais doloroso. Você é a minha melhor amiga, é a pessoa mais doce, carinhosa, honesta e forte que eu conheço. Sempre esteve ao meu lado, em todos os momentos, os melhores e os piores! Nós sempre nos apoiamos, e não vai ser agora que vou abandonar você, então eu te peço, te suplico, não abandone a si mesma.

Meu coração estava batendo muito acelerado, parecia que a qualquer momento ele iria pular do meu peito. E dessa, vez minhas lágrimas não conseguiram mais permanecer silenciosas, um soluço dolorido que eu estava tentando segurar, escapou dos meus lábios, meio rouco, meio alto demais, e não parou mais. Antes que eu pudesse perceber, ele tinha dado a volta na cama e estava agachado ao meu lado, olhando para mim, com aqueles olhos cheios de pesar, dor preocupação, e... parecia... amor?

"Oh, Lana" lamentando ele sentou na beirada da cama, ao meu lado, manteve meus braços enrolados em volta de mim mesma, que seguravam a manta, e me abraçou apertado, "me deixa te ajudar, por favor, me deixa te ajudar. Você é a última pessoa que merece estar nessa situação, por favor Lana, não desista" sussurrou com a voz embargada, seus braços nem se quer por 1 segundo afrouxando o aperto. Eu não sabia o que pensar, o que fazer, então decidi fazer o que o deixaria feliz, e o que meu coração queria acreditar, balancei a cabeça em confirmação. Ao perceber o meu gesto, ele soltou um suspiro de alívio e cochichou um "obrigado" baixinho. Pegou outra manta, nem sei de onde ele tirou essa, me cobriu por cima da outra e deitou o rosto em minha cabeça, relaxando, enquanto seu peito ainda dava pequenos soluços com o seu choro silencioso.

                         

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