As xícaras de chá estavam tão sujas que me davam repulsa. É até engraçado lembrar disso. Eram peças de cristais raros com detalhes em diamantes e florins de ouro, mas olhar para elas só me causavam tristeza e raiva. Lembravam-me de tempos mais gloriosos e que tudo estava em seu devido lugar.
Esses tempos ruíram quando Avill surgiu tão especial com seu dragão cobra de mil cabeças.
Dores insuportáveis se alojaram em minhas pernas, meu decote antes robusto e atrevido, se tornou flácido e propenso a se dobrar sobre minhas roupas, sem se falar dos olhares que não pousavam mais em mim, só naquela criatura que me chamava de mãe. Aquela criaturazinha que de dentro de mim sugou toda a minha beleza e jovialidade, e até minha magia.
Como eu a odiava com todas as minhas forças. Só me forcei a fazê-la, pois os malditos pais do Cristovão iriam desfazer nosso casamento se eu não gerasse descendência, e eu não podia perder a glória que tinha de ser uma Noar.
Se eu não tivesse o meu lindo e perfeito Valentim, teria a certeza que ser mãe era uma das piores torturas que uma mulher podia sofrer em vida. Engravidar deve ser um contrapeso para as magias que só as mulheres podem fazer.
Eu sentia algo parecido com culpa quando pensava tal coisa sobre minha falecida filha, mas esse era o veneno que corria em minhas veias. Eu não suportava o que ela representava. Ela era tudo que eu fui e muito mais.
Eu me lembro da nossa última conversa antes que a perfeitinha fosse para um treinamento especial com os Doze. Isso foi antes do pai dela entrar para os Doze e minha vida melhorar sem os dois por perto.
Ela se sentou na cadeira em minha frente com seus cabelos negros enrolados perfeitamente caídos sobre os ombros, estava usando um vestido verde-água com uma jaqueta de algodão azul-safira que deixava seus olhos roxos tão lindos que doía olhar diretamente para eles. Se os deuses ainda falassem com os magruxeiros, ela seria a encarnação da deusa do poder e da perfeição.
Olhar para Avill me fazia lembrar de tudo que eu nunca seria e de tudo que perdi por causa dela. Pela primeira vez em quinze anos estávamos juntas bebendo chá de folhas verdes com pó de pérolas.
- Mã... - Ela recolheu os dedos delicados e com unhas perfeitas em tons nudes, lembrando-se que o único que podia me chamar de mãe era Valentim. - Madame Noar, eu estou com medo de ir com os Doze. - Disse com sua voz jovial e tremida.
- Isso pouco importa. - Cortei-a, com toda amargura que sentia toda vez que olhava para aquela pele de porcelana e ouvia aquela voz doce e meiga. - Espero que não envergonhe o nome dos Noar. - Havia mais rugas em minha face e sentia que meus cabelos estavam perdendo o brilho e a cor, maldita seja eu por ter casado e ter tido filhos. - Escute bem, você fará TUDO que eles pedirem. Entendeu? - Pontuei cada palavra.
Ela bebeu um gole de chá delicadamente. Seus lábios eram carnudos e de um vermelho intenso, uma boca que nunca tinha sido tocada. Seus movimentos eram tão perfeitos que tudo ao redor parecia dançar em torno daquela criatura.
- Sim, madame Noar. - Ela se levantou com gentileza e graça, seus cabelos balançaram ao vento sem bagunçar um fio. - Farei tudo que eles me pedirem.
Ela saiu com seus saltos verde-grama tocando uma melodia a cada passo. Sobre sua cabeça sobrevoava seu totem Tiamat, uma serpente-dragão com mil cabeças. Se você olhasse fixamente parecia ter apenas uma cabeça, mas se olhasse de canto de olho era possível, mesmo que rapidamente, ver elas mexendo e sibilando em mil direções diferentes.
Avill era mais que apenas uma criatura linda e perfeita em tudo, era extremamente poderosa, até mais que os Doze. Ela podia manipular todas as magias existentes e criar algumas que só ela poderia usar. Era insuportável tê-la na mesma casa, sempre ofuscando meu pequeno Valentim. Era uma completa metida e arrogante, herdando tudo de ruim da família do meu odioso esposo.
Um alívio tomou conta de mim ao vê-la ir embora, mas foi assim que começou toda maldição.
***
Se eu não tivesse meu querido Valentim, todos os meus filhos seriam puros fracassos, as primeiras panquecas maus feitas, as roupas fora de medidas. Desgraças que tive que castigar meu corpo para existirem. A primeira era uma dura lembrança do que nunca teria e o último a certeza do que eu mais odiava.
O mais novo nasceu a cara do pai, mas sem dom especial algum. Se Avill era um arco-íris, Shenraj era uma deformidade cinza. Eu não queria mais filhos, Valentim já era mais que o bastante, mas fui forçada pelo Cristovão e mesmo tentando de todas as formas me livrar dele, não consegui e tive que me esconder por mais nove meses da mesma forma que fiz quando engravidei de Avill.
O garoto nasceu chorando e continuou chorando por toda a vida, um choramingo incessante e ensurdecedor. Desde pequeno era uma grande decepção, demorou a andar, para falar e para poder usar magia. Avill era a única que conseguia fazer o pequeno verme plúmbeo sorrir e dormir, eu tenho certeza que ela usava algum tipo de magia e para me irritar tirava o feitiço para que chorasse quando estivesse comigo, era uma grande vergonha. O bom era que quem cuidava dele eram as babas, que eu trocava mensalmente para que ele não se apegasse a nenhuma, e é claro a odiosa da minha filha, eu o vi pouco, tinha que dedicar meu tempo ao que valia pena, meu Valentim.
Após a morte da irmã o garoto melhorou, aprendeu a ficar calado e trancado no quarto. Sumiu das minhas vistas, tinha sido a melhor coisa que fizera desde o nascimento. Era atormentado desde antes de nascer, os traços do sangue ruim da família do meu esposo. Quando perdeu o braço não senti nenhuma pena, foi até bom, pois ele ganhou algumas habilidades extras. E quando surgiram os boatos que ele tinha um totem Goblim, não me surpreendi. Não esperava nada menos dele.
***
São poucos Noar que alcançaram a grandeza, de três apenas um. Esse era o meu pequeno Valentim, sempre me dava orgulho, era belo e inteligente. Quando os Noar me cobraram um herdeiro para o nome, decidi que iria ter o filho perfeito. Fiz todos os feitiços de preparação, calculei as luas e as datas para se alinharem, me alimentei das comidas certas, tudo para que nascesse um menino, e por fim toquei meu corpo de todas as formas para prolongar o prazer e usei as sementes do Cristovão, pensando na perfeição que eu era e no que ele podia ser, e sozinha gerei o meu pequeno deus. Quando fiquei gravida exibi minha barriga em todos os lugares. Não senti dor em seu nascimento e o garoto nunca chorou. Era tão perfeito que seu totem era um grifo de pelos e penas douradas, o mais belo e mais rápido que existiu em Teran.
Me lembro como se fosse hoje, eu estava deitada em minha cama pronta para dormir com a minha pequena Flaer descansando em seu umbral ao lado do meu dossel, quando o quase homem entrou em meu quarto trajando um pijama escuro que salientava seu crescimento.
- Mamãe. - Ah, como era incrível ouvir a voz grave e juvenil do meu pequeno Valentim. - Tenho a impressão que o Shenraj está ficando louco e precisa com urgência ser preso em uma cela.
Era um pedido incomum, já que o meu pequeno príncipe ignorava a existência do irmão mais novo, o que me deixou um tanto alarmada.
- O que quer dizer com louco? - Perguntei sentindo uma preocupação pelo meu garoto Valentim e colocando meus brincos de perolas e canalizadores mágicos na mesa ao lado da minha cama. - O que aquilo está fazendo para você?
- Esses dias quando voltava da aula de combate...
Esse era o motivo que o deixava tão magnifico, ele sabia falar varias línguas, tinhas as melhores notas e recebia um prêmio a cada semana. Já tinha uma vaga para a escola dos nobres e iria servir a própria rainha. Seus olhos azuis frios e sérios se focaram aos meus que eram do mesmo jeito me arrepiando.
- Peguei-o dentro do quarto da Avill. - Seus cabelos loiros estavam perfeitamente penteados mesmo que fosse para dormir, assim como os meus. - Ele estava conversando com aquela criatura horrorosa que choraminga sem parar.
- Você escutou a conversa? - A pergunta fez o se encolher momentaneamente. - Está tudo bem meu filho lindo.
- Não queria, eu juro pelos Doze. - Mesmo com um porte tão másculo ainda tinha a inocência e a pureza da última infância. - Estranhei, pois por um segundo tive a impressão de ouvir a voz dela.
Meu coração martelou forte e senti todos os meus pelos se arrepiarem de forma estranha. Aquela bruxa maldita teria jogado alguma maldição tardia no demônio do irmão e isso estaria afetando meu pequeno deus, pensei tolamente.
- Não seja bobo meu príncipe, foi só o ruço do seu irmão. - Baguncei seus cabelos para tranquiliza-lo. - Os dois eram muito próximos e viviam se imitando. Não preocupe com isso, deite com a mamãe que se sentirá melhor.
Ele se aconchegou me abraçando por trás. Eu podia sentir seu corpo se encaixando sobre meu e o seu hálito em minha nuca. Por alguns segundos me senti tão jovem e adorada como fui em outro tempo.
Cochilei por algum tempo, até que fui despertada por um choramingo e soluços engasgados.
- Na.. Não... Não faça isso meu senhor. - A voz era esganiçada e infantil, e ao mesmo tempo velha e grave.
Desvencilhei-me dos braços fortes do meu querido Valentim. O quarto fedia a grama cortada e uma névoa pairava baixo sobre o chão. Isso me lembrou dos tempos que viajamos em família para o casarão de campo, eu odiava a cada dia, pois as crianças se divertiam muito.
A minha bela harpia soltou um canto baixo e triste que me fez olhar para trás, quando me voltei para frente era tarde demais.
Algo perfurou meu olho direito e rasgou o esquerdo, meu corpo ficou rígido e não saia as palavras que eu queria, todos os encantamentos sumiram da minha mente e meu canalizador magico não estava sobre a mesinha. Cobri o rosto com as mãos tentando aliviar a dor.
- Querido! - Consegui gritar enquanto tremia.
Nas minhas costas ouvi Valentim gritar de susto e depois de dor, o seu silencio já tinha me matado e doía muito mais do que o galho que penetrava entre as minhas pernas me rasgando por dentro.
Todo o calor do quarto tinha sumido, as últimas coisas que ouvi foram um choramingo baixo e ranhento, e um sibilar feliz e triunfante.