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Lençóis e segredos

erikasilva5539
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Capítulo 1 Entre livros e silêncio

O relógio marcava 6h04 quando Rebeca Nunes, 20 anos, pulou da cama com o coração acelerado. A luz suave da manhã invadia seu quarto pequeno, dividido entre a escrivaninha abarrotada de livros de Direito e um guarda-roupa com mais esperanças do que roupas. O celular vibrava sem parar com o alarme insistente. Ela esticou o braço e desligou sem nem olhar. Sabia que tinha pouco tempo. A prova era às 14h, mas o dia começava cedo - cedo demais para quem dormiu tarde, revisando jurisprudências e resumos de última hora. Rebeca morava numa quitinete perto da universidade, num bairro simples da cidade.

Trabalhava meio período numa livraria do centro desde os 17, e com o que ganhava pagava o aluguel, a comida e uma parte da mensalidade da faculdade. O resto, a vida dava um jeito - ou ela mesma dava, com força, disciplina e uma fé silenciosa no futuro. Naquela manhã, o café era preto e sem açúcar. Era tudo o que restava na despensa. Ainda precisava passar no mercado, mas já fazia duas semanas que adiava. Contava cada moeda antes de sair de casa. Sabia exatamente o que podia ou não comprar. Luxo, pra ela, era um bombom depois da aula. Enquanto tomava os goles rápidos, revisava mentalmente os tópicos da matéria de Direito Penal que cairia na prova daquele dia. Crimes dolosos, culposos, teoria da imputação objetiva, e uma dorzinha de cabeça insistente por dormir mal demais. Vestia uma calça jeans surrada, camisa branca e um cardigã cinza. Cabelos presos num coque improvisado, um batom claro e o velho tênis de sempre. Rebeca era bonita sem esforço, com olhos castanhos atentos e uma postura sempre alerta - o tipo de garota que chamava atenção sem querer. Ela tinha um charme silencioso, discreto, que nascia da sua determinação. Ela nunca tinha namorado. Nunca sentiu que tinha tempo pra isso. Ou talvez... nunca tenha deixado ninguém se aproximar o bastante. Rebeca era virgem, não por timidez, mas por escolha. Sonhava com algo que fosse mais do que desejo - queria ser tocada com verdade, não com pressa. Queria alguém que entendesse seu mundo sem tentar mudá-lo. Antes de sair, pegou sua mochila pesada. Os livros ocupavam mais espaço que os cadernos. Levava também uma garrafinha d'água e um pacote de bolachas - seria o almoço. Suspirou e encarou o espelho, prendendo uma mecha de cabelo teimosa atrás da orelha. "Vamos lá, mais um dia." Ao sair de casa, o vento frio da manhã a envolveu. Andou até o ponto de ônibus com o fone de ouvido tocando algo instrumental - dizia que músicas com letra atrapalhavam seu raciocínio. O trajeto até a livraria durava 40 minutos. Era seu momento de pensar, sonhar, criar diálogos internos com advogados fictícios e imaginar audiências que ainda nem existiam. O ônibus veio cheio, como sempre. Sentou num dos bancos do fundo, com as pernas cruzadas e o livro aberto no colo. As outras pessoas mal percebiam sua presença. E ela gostava disso. Era melhor ser invisível do que ser julgada. Ao descer no centro, caminhou rápido pelas calçadas esburacadas até a livraria, onde já a esperava um monte de caixas com títulos novos para cadastrar. Rebeca adorava o cheiro de livro novo misturado ao de café passado. Era o único lugar do mundo onde ela se sentia calma. As histórias nas prateleiras pareciam sussurrar que tudo era possível - até mesmo os sonhos dela. A manhã passou devagar entre os livros e clientes apressados. Atendeu estudantes, professores, gente perguntando por romances baratos e senhoras procurando livros de autoajuda. Sorriu, indicou seções, organizou capas e até leu algumas sinopses escondida, nos minutos de folga. Quando deu meio-dia em ponto, Clara desligou o computador da livraria, guardou os materiais na bolsa e saiu correndo - a aula da tarde começaria em quinze minutos e ela ainda precisava pegar o ônibus. O transporte atrasou, como sempre. A cidade parecia conspirar contra quem tinha pressa e poucos recursos. Quando finalmente desceu no ponto da universidade, já faltavam dois minutos para o início da aula. - Droga, droga, droga... - murmurou, apertando o passo pelos corredores movimentados. A bolsa escorregava do ombro, os livros pesavam, e ela tentava se equilibrar entre os corpos apressados que iam e vinham. Queria apenas chegar na sala, respirar e fazer a prova. Nada mais. Foi então que virou no corredor do terceiro andar - e tudo aconteceu em segundos. Esbarrou com força em alguém. Livros caíram. A bolsa deslizou pelo chão. O impacto fez Rebeca perder o equilíbrio e quase cair de costas, se não fosse pelas mãos firmes que a seguraram pela cintura no último instante. - Me desculpa! - ela disse rapidamente, ainda sem levantar os olhos. - Eu... eu tava atrasada, não vi... Silêncio. As mãos dele demoraram um segundo a mais do que o necessário para soltá-la. Quando o fez, Rebeca finalmente olhou. E congelou. Ele era alto, de terno escuro, expressão fechada e olhos que pareciam estudar cada detalhe dela. Não parecia um aluno. Não parecia um professor. Parecia... deslocado daquele ambiente. Mas ao mesmo tempo, parecia dono de tudo ao redor. Ela sentiu o rosto corar, o coração bater rápido - não só pelo susto, mas pela intensidade do olhar dele, que a atravessava como se lesse sua alma em silêncio. - Você está bem? - ele perguntou, com a voz grave e calma. - Sim... tô, sim... desculpa mais uma vez, eu... - ela se abaixou rapidamente para pegar os livros, sem saber exatamente por que sentia tanto nervosismo. Ele não disse mais nada. Apenas observou, depois se virou e saiu pelo corredor com passos lentos e firmes. Rebeca o seguiu com os olhos até ele sumir atrás da porta da coordenação. Ela não sabia seu nome. Não fazia ideia de quem era. Mas alguma coisa nela dizia que aquele não seria o último encontro dos dois. E estava absolutamente certa.

            
            

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