Um sorriso curto, contido, mas satisfeito. Como se ele tivesse lhe contado um segredo que me excluía. Meu estômago embrulhou. E não era pela fome.
Ele saiu do escritório, e eu fiquei ali, tentando digerir não só o vácuo que ele me deixou, mas também o incômodo de não saber.
Para onde ele vai? Com quem? Por quê?
Claro que Carolina percebeu minha curiosidade. Ela não perde uma.
- Algum problema? - perguntou, sem tirar os olhos do monitor, mas com aquele tom que pingava veneno.
Levantei da cadeira com um sorriso leve, como se eu não estivesse nem aí. Como se eu não tivesse acabado de ser ignorada como uma nota de rodapé.
- Só estou indo almoçar.
Ela arqueou a sobrancelha.
- Almoçar? Agora?
Olhei pro relógio. Era 12h17.
- Sim, Carolina. Algumas pessoas ainda comem nesta empresa. Acredite ou não.
- Alguém precisa ficar no setor. Lucas deixou pendências, e eu...
- ... pode muito bem ficar, já que você é a funcionária perfeita. - Cruzei os braços. - Ou prefere que eu caia morta aqui de fome pra cumprir seu protocolo?
Ela franziu os lábios, mas não respondeu.
- É o que eu pensei - finalizei, pegando minha bolsa. - Se alguém ligar, diga que fui respirar.
Saí do escritório com a leveza de quem largou uma granada e fechou a porta atrás.
Não sabia exatamente pra onde ia. Só sabia que não queria almoçar no restaurante lotado do prédio nem encarar mais uma hora da Carolina medindo meu batom com os olhos.
Então tive uma ideia. Talvez estúpida. Talvez impulsiva. Mas era minha.
Fui até a sala da minha avó.
A secretária, uma mulher de meia idade arrumada demais, olhou pra mim com aquela expressão de quem finge simpatia, mas já ouviu falar de mim pelos motivos errados.
- Angel, posso ajudar?
- Vim ver se minha avó quer almoçar comigo. Estou tentando ser... sociável - sorri. - Quase uma cidadã funcional.
Ela hesitou.
- Dona Iolanda saiu há alguns minutos. Está em reunião de negócios com os empresários coreanos. Levou o senhor Lucas com ela. Mas você deve saber disso.
Pronto. A resposta que eu não pedi em voz alta, mas implorei em silêncio.
Lucas. Reunião. Coreanos.
Então era isso. Sorri, genuinamente dessa vez.
- Entendi. Então vou ter que almoçar sozinha. Obrigada!
A mulher pareceu confusa com a minha alegria repentina. Mas não era pra ela entender.
Desci o elevador mais leve. Sem Carolina, sem Lucas, sem olhar julgador. Só eu. E a leve suspeita de que, de algum jeito, ainda que ele não quisesse... Lucas estava exatamente onde eu precisava que ele estivesse.
Longe o suficiente pra eu respirar.
Mal atravessei os vidros fumês do saguão do Grupo Figueiredo, meu celular vibrou.
Joana.
- Angel, querida, estou na Daslu com Marcela. Você some há séculos! - a voz melosa da minha melhor amiga ecoou no meu ouvido.
Lembrei que tínhamos nos visto ontem e sorri com a maneira exagerada de Joana.
- Não posso. Estou trabalhando, - falei, sentindo o constrangimento me invadir.
- Mentira. Você odeia trabalho. Vem cá, estamos no café do shopping. Tem um vestido que é a sua cara.
Respirei fundo. Uma hora. Só uma hora.
- Beleza. Mas já aviso que estou de tailleur.
- Isso se resolve em cinco minutos, - ela riu.
Joana sempre soube me corromper. E sem parar para pensar nas consequências das minhas ações, consegui um táxi e fui direto para onda as minhas amigas me esperavam.
E o vestido era mesmo perfeito. Vermelho como o batom que Lucas quase beijou, decotado o suficiente para fazer Iolanda ter um troço se me visse.
- Você tem que comprar! - Marcela insistiu, segurando seu martini no café ao lado da loja.
- Nem olhei o preço, - brinquei, sabendo muito bem que meu cartão não teria limite recusado.
Joana sorriu, batendo palmas.
- E agora, sapatos. Um salto alto resolve quase todos os nossos problemas!
Rimos, e pela primeira vez em horas, eu me senti... leve. Só eu, minhas amigas e o champanhe gelado que não parava de chegar.
(Restaurante Varanda – 21h15)
O champanhe estava gelado, as risadas altas e o vestido vermelho que Joana me obrigou a comprar colava perfeitamente no corpo, como uma segunda pele. Eu já não lembrava mais da manhã infernal no escritório, da cara de veneno de Carolina ou do olhar pesado de Lucas quando saiu para a reunião com os coreanos.
- E então ele disse: 'Isso não vai acontecer'! - eu contava, imitando a voz grave de Lucas para as minhas amigas, que riam como loucas.
- Ele é gostoso demais pra ser chato assim, - Marcela lamentou, brindando.
- E você é burra demais pra não pular nele, - Joana completou.
Meu rosto queimou, mas não de raiva. Porque elas não estavam erradas. O problema nunca foi não querer. O problema era querer demais.
Naquele momento, a minha atenção foi desviada para a entreda de dois rostos familiares, que rapidamente invadiram nosso cantinho privativo.
- Parece que a festa tá boa e ninguém me avisou, - Tony anunciou, já puxando uma cadeira ao meu lado. Seu sorriso era contagiante, o cabelo castanho despenteado como sempre.
- E eu que pensei que vocês estariam trabalhando, - Anton completou, mais contido, mas não menos charmoso, com seu blazer de linho e o jeito cínico de sempre.
Joana abriu um sorriso vitorioso.
- Trabalhar é pra quem não tem dinheiro, Tony. Nós, felizmente, temos.
Rimos, e mais uma rodada de drinks chegou. Tony, por algum estranho motivo, limitou-se a um whisky, mas Anton mergulhou de cabeça nos cocktails coloridos, contando histórias hilárias de sua última viagem a Ibiza.
- E então a modelo russa sumiu com meu relógio! - ele contou, fazendo Marcela gargalhar.
O tempo passou num borrão de música, luzes e copos que nunca esvaziavam. Quando me dei conta, o restaurante estava quase vazio e minha visão já não estava mais tão nítida.
- Alguém precisa levar a Angel pra casa, - Tony disse, observando meu estado com preocupação. - Ela tá a um passo de cair da cadeira.
- Eu estou ótima, - protestei, embora minhas palavras tenham saído enroladas.
- Claro que está, - ele riu, pegando minha bolsa antes que eu pudesse argumentar. - Vou chamar meu motorista. Anton, cuida das meninas.
Anton, já tão bêbado quanto eu, apenas acenou com a cabeça, abraçando Joana e Marcela, que riam de alguma piada interna.
Tony me ajudou a me levantar, seu braço firme em volta da minha cintura enquanto me guiava para fora. O ar noturno me acordou um pouco, e logo estávamos no banco traseiro do carro dele.
- Tony... a gente está indo para onde? - perguntei, confusa, quando o carro parou.
- Pra sua casa, princesa, - ele respondeu, suave. - Acho que você já envergonhou sua família o suficiente por hoje.
Eu abri a boca para responder, mas a visão da fachada da mansão Figueiredo me fez engolir em seco.
Merda.
Tony apertou minha mão, como se lesse meus pensamentos.
- Vai ficar tudo bem. Só não esquece de tomar um café antes da reunião de amanhã.
Sorri, grata, e dei meus passos trôpegos em direção à entrada. Até que o hall iluminado revelou a silhueta que eu menos queria ver naquele momento.
Lucas.
Parado no meio do saguão, os braços cruzados, o olhar negro fixo em mim - e em Tony, que ainda estava na escadaria.
- Boa noite, Figueiredo, - Tony cumprimentou, educado, mas sem se intimidar.
Lucas não respondeu.
Tony olhou para mim, depois para ele, e eu quase pude ver os pensamentos girando por trás daqueles olhos astutos.
- Bem, minha missão acabou, - ele anunciou, voltando a sorrir. - Cuida dela, Silva. Parece que ela precisa.
E, com um último aceno, ele se foi, deixando-me sozinha com o homem que, em questão de segundos, fechou a distância entre nós e me agarrou pelo braço.