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Era um sábado ensolarado, e o calor já se fazia sentir desde o amanhecer. Como de costume, aos sábados à tarde, as crianças carentes da vizinhança se dirigiam à academia "Dançarte" para participar de aulas de dança e gincanas. Marjorie, uma das dedicadas voluntárias e talentosa professora de dança, acordou pensando nelas.
Às seis e meia da manhã, levantou-se e foi preparar um bolo de fubá com goiabada e uma torta cremosa de frango com requeijão. Distraída com vídeos de dança enquanto cozinhava, perdeu a noção do tempo e se atrasou. Apressadamente, tomou um banho, vestiu o uniforme da clínica e saiu com os cabelos molhados e os tênis desamarrados. Correu para o trabalho, carregando uma mochila volumosa e uma sacola de pano igualmente cheia. No ônibus, aproveitou as sacudidas para fazer uma maquiagem leve, evitando derrubar os potes de comida, e improvisou um coque displicente. Com os fones no volume máximo, embalada por funk e pagode, atravessou a cidade em dois ônibus. Ao chegar sorridente ao trabalho, foi recebida pela chefe, Danna, que estava absorta em um jogo no celular.
- Mah, querida, mais um pouquinho e você chega só para fechar! Seu paciente está esperando há trinta minutos. Ou será que ele já desistiu? Ah, passei de fase! Irruuuu, agora vou encarar o chefão!
Apressada, Marjorie riu sem graça e respondeu, escondendo a mochila sob a mesa.
- Eu sei, eu sei, mas trouxe bolo, e ele vai me perdoar, espero. Como ele está hoje? De zero a dez?
Danna arqueou as sobrancelhas e falou com um misto de desânimo e excitação.
- Quatro. Ele veio com o tio, e a mãe vai buscá-lo. Boa sorte!
O paciente era Leleu, um garoto que havia sofrido múltiplas fraturas ao cair do telhado enquanto empinava pipa. Ele acreditava que nunca mais andaria, e suas mudanças de humor eram frequentes e intensas. Esse padrão comportamental difícil era comum em pacientes com estresse pós-traumático, assustando muitos profissionais da saúde. Marjorie havia conseguido uma bolsa para a faculdade, mas pensou em desistir no meio do curso. A morte da mãe e a falta de recursos dos avós a fizeram continuar. Após a formatura, começou a trabalhar na clínica particular de Danna, inicialmente como faz-tudo, evoluindo para a área de fisioterapia com o tempo, geralmente atendendo os pacientes mais desafiadores, que ninguém mais queria. Leleu era um deles. Em seis meses, passou por diversas cirurgias e três fisioterapeutas renomados, sem sucesso. Há algum tempo, estava sendo atendido por Marjorie, a quem carinhosamente chamava de Mah. Antes de entrar na sala, Marjorie bateu e mostrou apenas um pedaço do bolo para ele, falando com voz infantil, escondida atrás da porta.
- Pedido de desculpas pelo atraso, senhor Leleu?
Com voz apática, ele respondeu:
- Mah, eu não sou tão fácil assim. Acha que um bolo qualquer vai me comprar?
Ela revirou os olhos, entrou na sala e disse com um tom divertido:
- Bobo? Uau, você não sabe o que está perdendo! Tem goiabada caseira, feita por mim mesma. Enquanto isso, preparei uma playlist novinha, especial para nós dois.
Entrando na brincadeira, ele perguntou se ela estava usando as meias "da sorte". Marjorie colocou a música, tirou os tênis e respondeu com ironia:
- Que meias? Eu uso qualquer uma, especialmente aos sábados. Vou abrir a janela e... um, dois, três!
Ela começou a dançar, fazendo-o rir e comer o bolo. Um pouco mais animado, ele realizou todos os exercícios enquanto ela dançava várias coreografias que precisava memorizar. Quando a mãe dele chegou, sentou-se na recepção e perguntou a Danna:
- Competição? De novo?
Danna largou o celular e respondeu:
- Não, audição para um programa de TV. Eu o ouvi rindo daqui, estamos progredindo, isso é ótimo! Vou avisar aos dois que você chegou!
A mãe de Leleu concordou, dizendo que era maravilhoso e que Mah estava sendo sensacional, com um carinho e paciência que nenhum outro fisioterapeuta havia demonstrado. Logo a clínica fechou, e Marjorie pegou carona com Danna até metade do caminho. Ao descer do ônibus, já perto da academia, atravessou a rua distraída com o celular e quase foi atropelada por uma moto de alta cilindrada que passou muito perto, cortando giro em sinal de repreensão. O susto foi tão grande que o celular caiu e a tela trincou. A sacola de pano também foi ao chão, e o pote de bolo se espatifou. Furiosa, Marjorie xingou o motoqueiro e mostrou o dedo médio, continuando a resmungar sozinha até a academia. Ao chegar, foi cercada pelas crianças que comiam antes das aulas, ouvindo música e fazendo algazarra. Gaia, a dona da academia, chamou Marjorie para informar que a vigilância sanitária estava no local para uma inspeção de rotina. Juntas, acompanharam os fiscais e souberam que haviam recebido várias denúncias anônimas sobre o fundo do quintal, alegando um matagal com infestação de ratos, baratas e escorpiões, além de um pouco de entulho. No entanto, aquilo não era verdade. A vigilância sanitária aconselhou que fechassem o local para realizar reparos, pintura, limpeza e dedetização, a fim de não perderem o alvará. Tiveram que dispensar todas as crianças, gerando grande revolta. Ao saírem para a calçada, viram o vizinho, dono do restaurante ao lado e dos imóveis da rua, rindo da situação. Ele queria que elas fossem embora, pois sua intenção era vender tudo para uma grande rede de restaurantes de luxo e, segundo ele, as crianças incomodavam seus clientes todos os finais de semana, causando brigas. Ele as chamava de marginais e pedintes, o que não era verdade.
Marjorie e Gaia perderam a paciência e discutiram acaloradamente na rua, enquanto o vizinho debochava, dizendo que estava tudo certo e que em breve se livraria delas. Revoltada, Mah entrou para arrumar o quintal, pedindo ajuda aos amigos. As duas retiraram todo o entulho e passaram o resto do sábado fazendo uma pequena reforma na academia. Ao anoitecer, notaram a chegada de carros luxuosos ao restaurante. Gaia comentou que estava havendo uma reunião dos interessados na compra e que, por isso, o vizinho havia dado um jeito de afastar as crianças, para que nada atrapalhasse sua exibição aos ricos. Enquanto espiavam pela janela, Gaia disse que era melhor desistirem, pois não teriam dinheiro para se manter por mais meses com o aumento do aluguel e as denúncias. Marjorie, com um sorriso malicioso, falou:
- E se a reunião for um desastre? A exibição for uma vergonha? Se a gente ferrar com o bairro e o restaurante, talvez eles desistam. Né?